Luiz Felipe Jardim
Quando não existiam as "escolinhas de futebol"
para ‘formar’ os jogadores e craques, tais como as ‘escolinhas’ e Centros de
Treinamentos de hoje em dia, eram as forças comunitárias, as forças sociais
dinâmicas ligadas ao esporte que cumpriam essa tarefa.
Simples assim. As pessoas queriam ver e se divertir com o
futebol. Para isso precisavam de bons jogadores. Para tanto, se envolviam e
moviam certas forças sociais no sentido de produzirem os jogadores, verem e se
divertirem com um bom futebol.
Assim nasceram muitos clubes por este Brasil a fora. Clubes
surgidos nos bairros, nas fábricas, nas colônias, nas escolas, nas mais
diversas associações, enfim, onde a mobilização das comunidades dava vida
material e espiritual ao fazer o futebol.
Nessa atmosfera surgiam os jogadores, os bons jogadores e os
craques.
Era o Bolinha filho da comadre Neném, que viria a encantar
os moradores do bairro com a magia de que era capaz com a bola nos pés.
Era o Zé Bezerra, mestre nos chutões bumba-meu-boi, que
divertia as torcidas no tempo das primeiras formações do Rio Branco Footboal
Club.
Era o Tinôco, mestre das defesas difíceis ou impossíveis,
que viria mostrar às nossas torcidas os desafios à gravidade que os homens
podem e sabem fazer.
Era o Zé Claudio, mestre na armação das jogadas que,
comandaria a construção dos desenhos geométricos (desenhos táticos) que os
times realizam com suas jogadas durante as partidas.
Assim fez-se o futebol acreano. Nutrindo-se das suas
próprias forças sociais, produziu seus jogadores em quantidade e qualidade, que
enchiam os campos por onde passava e os olhos das torcidas que o assistiam.
Segundo levantamento feito por Raimundo Fernandes, em
começos da década de 1970, Rio Branco tinha perto de 156 campos de futebol nas
suas áreas rural e urbana. Isso demonstra o poder comunitário que tinha o
esporte naqueles tempos. A partir dele pode-se imaginar a enorme quantidade de
pessoas envolvidas nas atividades preparatórias, paralelas, de apoio etc.
relacionadas ao futebol. Atividades que vão desde realização de arraiais, à
realização do baile tradicional do clube; desde campanhas de arrecadação de
fundos, a eleição de suas rainhas e madrinhas.
O resultado é inquestionável. O Acre produziu uma quantidade
enorme de bons jogadores. Isso se traduzia num crescente aumento do número de
pessoas nos estádios, na importância do futebol na sociedade... na produção de mais e bons jogadores.
Por isso nos meados dos anos 60, já com boa carga
hereditária embutida no nosso futebol - herança nos proporcionada pela
categoria de jogadores como Zé Claudio, Boá, Touca, Cidíco, Tinoco, Airton,
Fernando Diógenes, etc.- surgiam em Rio Branco, alguns jogadores que também
viríamos a chamar de craques, como Dadão, Rui e Euzébio.
Todos se destacavam, entre outras coisas, pela elegância com
que marcavam suas características principais. Como o arranque leve e fulminante
do Rui rumo ao gol com a bola aos pés. Ou os dribles quase sempre previsíveis,
mas quase sempre impossíveis de serem evitados, do Dadão.
Euzébio Abreu de Souza Foto Futebol do Norte |
Já Euzébio tinha uma elegância peculiar. Diferentemente de
Zé Cláudio, por exemplo, cujo centro de gravidade exigia seu corpo o mais reto
possível, o que lhe dava natural elegância, Euzébio tinha um centro de
gravidade que o inclinava ligeiramente mais à frente e exigia maior movimento
dos braços. Isso lhe fazia mais ofensivo, mais finalizador e mais hábil nos
dribles curtos.
Além disso, Euzébio
era mestre nas cobranças de faltas. A simplicidade com que as preparava
escondia a complexidade com que as executava. O olhar despretensioso que as
antecipava, dissimulava os complexos cálculos que fazia, onde milímetros de
ângulos eram imaginados e relacionados a graus de força nos pés. Onde o momento
psicológico da partida era relacionado às características psicológicas do
goleiro oponente. Onde a curva que a bola deveria fazer era medida em função da
posição e altura da barreira. Tudo ali, em poucos segundos, sem pranchetas ou
canetas, à vista de todos. Sem TV, mas ao vivo e em cores. O resultado era
impressionante. Se o gol acontecia - e geralmente acontecia - mais ainda. Mas,
mesmo que o gol não acontecesse, a carga de emoção, a satisfação que a cobrança
trazia à assistência, pela beleza plástica que proporcionava, e pela iminente
sensação de antevisão que sugeria, era enorme.
Por outro lado Euzébio era craque na distribuição de
jogadas. A característica movimentação dos seus braços, além de sua altura,
fazia dele um centro de referência natural que ele sabia utilizar com maestria.
Responsável por grande parte da armação das jogadas, usava sua natural
inclinação para frente (a que os zoólogos chamam de 'cara de ataque',
característica quase sempre presente nos líderes) para carimbá-las com a marca
ofensiva. Aliás, é esta a principal imagem que me ocorre quando me lembro,
ainda menino, de ver o meu Atlético Acreano jogar: a partida se iniciando e o Euzébio
no meio do campo partindo com a bola para o ataque... levando nosso time à
ofensiva...
Realmente nossa cidade produziu excelentes jogadores nos
seus campos de futebol...
E disso devemos nos orgulhar. Porque somente sociedades alegres, fortes,
inteligentes, com bons níveis de harmonia são capazes de produzir ídolos
igualmente harmônicos, inteligentes, fortes e alegres para se espelhar. Pois
nossos ídolos são como espelhos que nos mostram aspectos da fisionomia do nosso
espírito coletivo que de outra forma não veríamos com naturalidade. É por isso que ouvimos tanta música. Ou
ainda, é por isso que nos interessamos tanto por esportes como o futebol.
Porque vendo a nossos ídolos vemos a nós mesmos de maneiras diferentes. Vendo a
nossos ídolos vemos o rosto do nosso humor, vemos as diversas expressões da
nossa dor; vemos os vários semblantes da alegria, vemos detalhes das formas
infinitas do amor. Vemos aspectos de quem somos, de para onde vamos e do que
devemos fazer.
Euzébio, por ser um de nós, revelava para nós que o assistíamos
detalhes da nossa alma, aspectos da nossa fisionomia coletiva. Detalhes dos
mais valiosos, daqueles que trazemos fixos em nosso inconsciente e que nos
dizem, permanentemente, com voz profunda e hálito quente, que a vitória é possível.
E que mais possível é a vitória se formos à frente.
Valeu Euzébio, a mensagem está dada, a missão
cumprida. E dela nosso povo se lembrará enquanto memória tiver, enquanto tiver
vida.
* Luiz
Felipe Jardim é advogado, professor de História, músico e compositor
acreano.