quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

TRÍPTICO DO ESPANTO

Alencar e Silva (1930-2011)

 

I

 

Tudo traz sob a pele a sua morte:

a rosa e o sonho dançam sobre o abismo

as formas de uma só fatalidade

trabalhada em equívocos. Sereno,

contudo, é o meu semblante: este e o mesmo

que passeio entre as gentes. A amargura

é disposta em murais pelas paredes

do eu profundo – e me espia. Duro é vê-la

contemplando os meus gestos: de seus olhos

flui um rio de sono, um rio sem barcos,

onde bóia meu rosto repartido

em cartazes de espanto... Chove cinzas

sobre as asas de uma ave: e o canto, ausente,

talvez mudo se cumpra eternamente.

 

II

 

Amargar o teu peso e nunca mais

o sorriso que vem de não saber-te,

de ignorar teu mistério, de sentir-te

no que apenas supomos e não és.

Ah! o riso não cabe – e é vão o gesto

para colher o sonho decepado:

a mão ergue-se fria contra o vácuo

onde as sombras tropeçam seus enganos.

Nunca mais – e nos olhos e nas mãos

uma calma de angústias concentradas

ante barcos inúteis que se vão

sobre as águas do Letes... Resta apenas

a invenção de outros mitos: como um fruto

que um dia secará sobre um chão bruto.

 

III

 

Um rio corre surdo sob as horas

com seu lastro de cinzas e agonias.

Pesa-lhe sobre o curso um astro doido

que governa suicídios e naufrágios.

Uma lua também, por noite funda,

pende a face amarela sobre as águas

onde boiam pesados de silêncio

restos do que já foi – coisas que dormem

ou só derivam na corrente muda

seus corpos, ora belos, ora corpos

de mágoa e medo – sombras penduradas

em vértices de espantos... Nada conta

nesse rio que rola irreversível

carregado de sonho e de impossível.

 

SILVA, Alencar e. Lunamarga. 4ª ed. Manaus: Editora Valer, Governo do Estado do Amazonas, Edua, UniNorte, 2005. p.

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