segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

FRANCISCO MANGABEIRA: UM POETA BAIANO NA REVOLUÇÃO ACREANA - Isaac Melo

“É um dever sacrossanto manter vivas no pensamento figuras do porte de Francisco Mangabeira que, pelo seu talento, sua bravura, seus relevantes serviços prestados ao Brasil, deixou de se pertencer para pertencer ao mundo!”
Jorge Kalume


O paquete São Salvador havia deixado o porto de Manaus na manhã de 22 de janeiro de 1904. Em um de seus camarotes, o de número 40, estava instalado um jovem médico de apenas vinte cinco anos. No corpo agonizava as dores do impaludismo e no peito, a saudade de sua terra e de sua gente. Vez por outra perguntava ao enfermeiro permanente que o acompanhava ou a qualquer outra pessoa que o viesse visitar se já estava perto de sua terra natal. Certo dia, durante a viagem, algumas crianças se dirigiam ao camarote do jovem médico quando o encontraram de pé. Correram a chamar o enfermeiro. Este, ao chegar, indaga para onde ele ia. “Para o Acre!”, foi a resposta decidida, no delírio de uma febre.

Chegara o dia 27. Cinco dias depois do embarque em Manaus. O paquete já entrara em águas do Oceano Atlântico. Viajava a altura do Rio Gurupi, divisa natural entre os Estados do Pará e Maranhão. O sol dos trópicos a tudo abraçava e abrasava e acariciava com suas mãos fulgurantes. Porém, no camarote 40, ainda havia noite e havia frio. Uma flor emudecia em pleno viço. Naquela manhã acordara pensando em seu pai, em seus irmãos e irmãs. Sentira um aperto forte no coração. E tendo em mente os seus, exclamara condoídamente: “Como é que morre um poeta aos 25 anos!”. O coração bradava por vida, enquanto o corpo o negava. Recebera ainda algumas visitas. Quando a última o deixou agarrou-se a um ferro do leito, num último hino à vida, e murmurou: “Morro sem abraçar meu pai!”. Às duas horas da tarde desfalecia um dos mais festejados poetas, à época, e um dos grandes nomes da poesia do final do século XIX, cuja vida foi marcada pelo sonho e pela ousadia, pelo amor e pela aventura, sendo sua obra exaltada e comparada à de Castro Alves.

A vida. Francisco Cavalcante Mangabeira era o sétimo filho do casal Francisco Cavalcante Mangabeira, um farmacêutico alagoano, e Augusta Mangabeira. A Família Mangabeira até hoje é muito importante e tradicional no cenário político da Bahia e nacional: governadores, deputados, ministros são alguns exemplos que emergiram dela. Foi à rua Solar do Sodré, em Salvador, que viera à luz o pequeno Francisco, em 08 de fevereiro de 1879. Nessa mesma rua, sete dias antes, um dos maiores vates da poesia brasileira exalava o seu último suspiro, Castro Alves. Vidas diferentes, marcadas por uma mesma razão, a poesia. Francisco era uma criança recatada, dócil, sentimental, vivia a chorar, por isso fora apelidado de chorão pelos irmãos. Não havia completado ainda dez anos quando perdeu a mãe. Isso o marcou profundamente. Desde então ficara sob os cuidados permanentes de uma senhora, Sinhá Joaquina, ou Quinquinha como ele a chamava, contratada pelo pai, a quem o menino muito se afeiçoou e que exerceria grande importância em sua vida.

A escola. Foi no Colégio Marquês de Santa Cruz, aos seis anos de idade, a primeira vez que o menino fora a escola. Iniciava, assim, os primeiros contatos com os livros e outras pessoas que não fossem os seus irmãos. Imperava a pedagogia da palmatória, que dela, por seu comportamento recatado, livrou-se. A escola, depois da morte do administrador, um velho padre, fechara as portas. Fora então matriculado, juntamente com seus irmãos, no Colégio Malhado. O menino não gostara daí, um ambiente pertubador e bagunçado para uma alma quieta e solitária. O pai então matricula-os no Colégio Pedro II, onde ele alcança grandes progressos, porém, pouco depois tem que deixá-lo devido o agravamento da doença de sua mãe, que morreria pouco tempo depois. Ao retornar, conclui, no mesmo colégio, os três preparatórios principais. No ano seguinte, 1889, ingressa no Liceu Provincial, para finalmente concluir as matérias fundamentais no Instituto Oficial de Ensino Secundário. É quando integra o Grêmio Evolução, sendo um dos mais jovens integrantes do grupo. Aí começa o pendor do jovem para poesia. Está com quartoze anos.

A Medicina. 1894. Aos quinze anos Francisco matricula-se, por livre vontade, na tradicional Escola de Medicina da Bahia, fato que causou surpresa, sobretudo, a seus familiares. O primeiro ano fora entediante e difícil para alguém que estava destinado a cuidar do males da alma, não do corpo. Dedicara-se apaixonadamente à literatura, enquanto nem sequer pegara em um livro específico de seu curso. O pai ficara muito chateado com o desleixo do rapaz e a ele advertia que com versos não se ia ao açougue. Quer desistir. Então, o velho Mangabeira obriga-o a fazer os exames finais. É aprovado. No ano seguinte, no entanto, é reprovado. Todavia, é o ano em que começa a projetar-se e a ganhar fama de poeta, depois que o crítico e escritor riograndense, Múcio Teixeira, publica alguns entusiásticos artigos, na Bahia e no Rio de Janeiro, apresentando-o aos leitores como “um novo poeta baiano”. Das angústias desse ano surgirá a obra-prima do poeta.


Francisco Mangabeira
 à época em que partiu
para Canudos.

Canudos. Corria o ano de 1897 e desde o ano anterior, Antônio Conselheiro liderava um gupo de devotos sertanejos em defesa de seu arraial, a repulsar as forças do governo republicano, a quem eram contrários. Fora outra surpresa para a família Mangabeira quando receberam a notícia de que o jovem poeta, juntamente com seu irmão, estava pronto para partir com destino a Canudos, o que, de fato, ocorrera no dia 27 de julho de 1897. Cursava, então, o terceiro ano de medicina, e partira com um grupo formado por 24 estudantes, a integrar a famosa Brigada Girard, comandada pelo General Artur Oscar, para servir nos hospitais de sangue. As crueldades de Canudos marcaram profundamente o jovem poeta e médico. Fora uma guerra de irmãos contra irmãos, em que imperou a brutalidade do governo federal, republicano e sanguinário.

Dessa experiência surgirá um dos mais belos textos em versos, senão o mais, acerca de Canudos, o equivalente ao que foi o de Euclides para a prosa. Aliás, Francisco Mangabeira, em campo de batalha, se encontrara com Euclides da Cunha e fora o primeiro a reconhecer seu mérito literário incomparável, e a vaticinar o futuro glorioso de "Os Sertões", cinco anos antes de sua publicação, ao comentar acerca de um de seus poemas: “O assalto à artilharia é uma espécie de tradução para o verso de uma belíssima carta que o Dr. Euclides da Cunha escreveu de Canudos para o Estado de São Paulo, onde este meu saudoso amigo derramou tanta luz em belíssimas e magistrais correspondências, que, publicadas em livro, lhe garantiriam um triunfo literário”. O arraial de Canudos fora destruído. Tornara-se um amontoado de pedras e de cadáveres. Em 23 de outubro, três meses depois da partida, retornava o poeta trazendo no peito a repulsa da guerra e na cabeça os versos de a Tragédia Épica. Canudos fizera o poeta rever seu compromisso com os estudos. Tornara-se dedicado e, assim, em 18 de dezembro de 1900, defendendo a tese “Impedimentos de casamento relativos ao parentesco” fora aprovado e diplomado em medicina.

A profissão. Recém formado o poeta-médico precisava dá um norte a sua vida. Dirigiu-se então para o Maranhão no dia 16 de Março de 1901, onde fora contratado para trabalhar como médico da Companhia Maranhense de Navegação, que realizava o trajeto entre Bahia e São Luis. Mas aí permanecera pouco tempo. O Rio Amazonas o fascinara, embora tivesse lhe causado certa desilusão quando, pela primeira vez, estivera, por oito dias, viajando pelo rio mar. O Amazonas, a pátria das águas, o seduzira como se tivesse ouvido o canto irresistível das iaras. E para o Amazonas partira. Aí é contratado pelo governo amazonense para servir em comissões de saúde pelo interior, a percorrer “todo aquele mundo de rios, de florestas sem fim, exercendo a sua profissão em comissões pelos rios Negro, Juruá, Javari, Madeira, Purus...”. Porém, apegado que era ao pai, aos irmãos e irmãs, a saudade novamente viera abrigar-se em seu peito. Não resistiu aos apelos. E assim retornara à Bahia, ao aconchego dos seus, ao findar de dezembro de 1902.

O Acre e a Revolução. Algo inquietava o poeta, mesmo estando em meio ao aconchego de seus familiares e de sua terra. Quando estivera em Manaus ouvira falar muitas vezes dos acreanos e sua revolução. Um de seus amigos, Xavier Marques, narra que cotidianamente o poeta subia à sala do jornal Diário de Notícias e passava horas a falar dos acreanos e do extraordinário de seus feitos. Comentara o poeta, em carta, assim a um amigo: “Nada posso afirmar de novo sobre o Acre, enquanto para lá não partir! O que ainda não fiz por falta de vapores”. Como alguém que nunca estivera em meio aos acreanos poderia a eles se afeiçoar com tal devotamento? Francisco Mangabeira sentira o drama dos acreanos e vira nisso a oportunidade de oferecer seus serviços. Fora o jeito que encontrara para amá-los. O sobrinho biógrafo, Paulo Mangabeira-Albernaz, diz acerca do sonho de seu tio: “Nada o conseguira prender: nem a saudade inexpremível, nem o amor imensurável à terra do berço, nem a própria felicidade! O apelo do Acre vencera tudo!” E assim parte o poeta para Manaus, em abril de 1903, com destino ao Acre.

Em Manaus, onde já era muito estimado, o poeta partilhara com seus amigos o sonho que acalentava de ir para o Acre. Os amigos não viram com bons olhos essa proposta. Imperava a máxima de que poucos sobreviviam ou retornavam do Acre: local de difícil acesso, isolado e empestado de doenças tropicais e, agora, em guerra. Tentaram dissuadi-lo por vários modos, inclusive, recorreram ao governador amazonense Silvério Nery, que oferecera a Francisco Mangabeira uma comissão na Europa. Porém, nada dissuadia o poeta de seu firme propósito. De modo que, no dia 28 de maio de 1903, no navio Amazonense, como médico do 40o. Batalhão de Infantaria, comandado pelo Coronel Valadares, partia ao encontro de seu bem amado, o Acre.

Francisco Mangabeira
como médico e secretário
da Revolução Acreana.
Durante o percurso tivera o primeiro contato com os bolivianos: chegara a encontrar 53 soldados e 9 oficiais, entre os quais o poderoso chefe da expedição Coronel Rosendo Rojas, figura altaneira, que retornavam à seu país, após a derrota de Volta da Empresa. Mais adiante, em 02 de junho, encontrará pela primeira vez o chefe da Revolução, Plácido de Castro, que descia à Manaus depois que o General Olímpio da Silveira havia destituído o exército acreano. Ficara impressionado com o caudilho: “E então, pareceu-me que, ao brilho de energia extraordinária e impressionadora de seu semblante, ele crescia, e seu capacete se tornava de bronze e seu peito se recobria de aço”.

As águas baixaram drasticamente e, à boca do Pauini, o Amazonense não pode seguir adiante. O poeta prosseguiu, então, em pequenas lanchas, em canoa a varejão e, por fim, a pé, em varadouros por entre a mata: “A viagem a pé, quando havia um guia, era suportável, mas às vezes, era feita sem um mateiro, e imaginem 40 homens no mato, seguindo um trilho que de repente se bifurca, e mais adiante dava numa estrada de seringueiro de onde partiam três ou quatro caminhos! Uma vez andamos oito horas perdidos no mato e, para aumentar a aflição, uma chuva torrencial desabou sobre nossas cabeças”. A viagem fora uma epopeia. Mas finalmente chegara ao seringal Empresa, onde estava acampado o 27 batalhão de infantaria. Era agosto de 1903.

Hino acreano. Em 21 de março de 1903, o governo brasileiro, por meio do grande diplomata Barão do Rio Branco, juntamente com o governo boliviano assinaram um acordo de modus vivendi. Os bolivianos já haviam se rendido ao exército de Plácido. Cessara a luta no fronte, a batalha agora era no campo da diplomacia. O Acre encontrava-se politicamente dividido em duas administrações: Meridional, sob o comando de Plácido de Castro, e Setentrional pelo governo militar de Cunha Matos. Por duas vezes, como assevera o historiador Leandro Tocantins, o Barão do Rio Branco sugeriu ao Governo de La Paz, e este concordou, a extensão do prazo do modus vivendi, de 21 de julho até 21 de outubro. A ansiedade tomava conta de todos. Qual seria afinal o resultado dessas discussões diplomáticas? Que acordo seria firmado?

Francisco Mangabeira em frente
à sua barraca no acampamento
Boa Fé.
Enquanto isso, Plácido de Castro organizava seu exército em pontos estratégicos do Acre Meridional, pronto para nova luta conforme o resultado das confabulações diplomáticas entre os dois países. No seringal Capatará estava assentado o quartel-general de Plácido. Ao fundo do barracão erguiam-se as barracas de lona, a alojar os soldados. Numa delas está Francisco Mangabeira. Desde que cessara os combates aí passara a atender os feridos da guerra e à população ribeirinha que o procurava. É nesse ambiente, impressionado pela natureza, pelo ideal de liberdade, pelos combates e pelo sentimento da terra que o jovem poeta comporá, em 05 de outubro de 1903, o magnífico poema que se tornará o Hino Acreano.

Aproximava-se o término do modus vivendi. O poeta encontrava-se, com a tropa, acampado em Boa Fé. Estavam irriquietos e decididos: ou o Acre seria do Brasil, ou recomeçaria a luta. A tropa, a 21 de outubro, fora reunida diante do mastro do qual pendia a bandeira acreana. Conta, em carta, Francisco Mangabeira: “A meio dia, pouco mais ou menos, reunida a oficialidade, resolve-se mandar imediatamente cem homens para o Gavião. Antes disso, porém, com uma cerimônia tocante, foi lido o Hino do Acre”. Pela voz do próprio poeta pela primeira vez o Hino Acreano percorria as matas e o coração daqueles caboclos titânicos, num misto de alegria e esperança. O resultado das confabulações diplomáticas e, consequentemente, a incorparação do Acre ao Brasil só veio um mês depois, a 17 de novembro, quando em Petrópolis, com a genialidade diplomática do Barão do Rio Branco, fora assinado o Tratado de Petrópolis. Mangabeira tentara o máximo permanecer em solo acreano depois do término da Revolução. Porém, caira gravemente enfermo, e fora levado nos braços, no último dia de dezembro de 1903, até a embarcação que o conduziria a Manaus, aí chegando dia 10 de janeiro de 1904. Findava o sonho acreano do poeta da mesma forma que se aproximava o seu fim.

O legado. Francisco Mangabeira fora um homem marcado pela ternura e pelo ideal, pela saudade e pela ação. O poeta de “Hostiário”, diz Dante Alighieri Vita, é da mesma linha de um Junqueira Freire, de um Castro Alves, de um Fagundes Varela e, em elevado grau, com o sentido heróico e idealista de um Byron. As primeiras poesias de Mangabeira datam de 1894, o menino poeta tem apenas quinze anos de idade. É o crítico e escritor Múcio Teixeira, como vimos, muito afamado à época, que por meio de uma série de artigos publicados no Diário de Notícias da Bahia, em 1896, e no Rio de Janeiro, em 1897, que o lançara como poeta de expressão nacional.

Em 1898 vem a lume “Hostiário”, o primeiro livro de Mangabeira a ser publicado, embora não tenha sido o primeiro a ser escrito, considerado a obra-prima do poeta. O livro fora muito bem acolhido pela crítica. Publica, no ano seguinte, no Diário da Bahia, uma série de crônicas intituladas “Matinais”. Da sua experiência em Canudos escreve, em 1900, “Tragédia Épica”, livro de beleza singular e o mais social de todos, composto por vinte poemas. É provável que nenhum livro, em verso, acerca do episódio de Canudos se iguale a esse. Da sua vivência no Amazonas e no Acre escreve uma série de cartas intituladas “Cartas do Amazonas”, em 1903, para o Diário de Notícias da Bahia. Há uma riqueza de detalhes muito grande nessas vinte cartas acerca da saga revolucionária, material muito importante para a historiografia amazônico-acreana. Em 1905 surge a obra-póstuma “Últimas Poesias” e, no ano seguinte, em Portugual, aparece o único livro em prosa do poeta “As Visões de Santa Teresa”. Mangabeira, nas palavras belíssimas e sintetizadoras de Alighieri Vita, fora um poeta espontâneo, natural, cantante como um arroio de água cristalina na hora do amanhecer, mas como a própria natureza humana, às vezes melancólico, contraditório, de alma complicada e de tonalidade indefinida, igual aos crepúsculos nublados, distantes.

O futuro. Assim se expressara Andrade Muricy, num julgamento merecido acerca do poeta: “Nenhum dentre os poetas do simbolismo brasileiro teve existência tão agitada e heróica. Aos 25 anos já vivera intensa e gloriosamente. Francisco Mangabeira foi, sem dúvida, um verdadeiro vates, e o poeta do Norte de mais alevantado e vigoroso estro, depois de Castro Alves”. Apesar dessas palavras encorajadoras, estará Francisco Mangabeira fadado ao desaparecimento em obras raras, em coleções particulares ou entregue às traças em bibliotecas públicas? O Brasil ainda olha indiferente a alguém que está à altura de um dos seus mais festejados poetas, Castro Alves. Há mais de um século desaparecera o homem, porém o poeta sobrevive e persistirá pelo tempo, enquanto o amor for a mola propulsora da vida e a humanidade cultivar ideais justos e bons pelos quais viver e lutar. Eis o testamento imorredouro de Francisco Mangabeira.

***

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

- ALBERNAZ, Paulo Mangabeira. Francisco Mangabeira: sonho e aventura. Campinas: Livraria M. Teixeira, s/d.
- DINIZ, Almachio. Francisco Mangabeira: creação e crítica. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Profissional, 1929.
- KALUME, Jorge. Francisco Mangabeira: médico, poeta e herói. Brasília: Gráfica do Senado, 1981.
- TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica do Acre II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
- MURICY, Andrade. Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro (vol. II). Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1951.
- CASTRO, Genesco de. O Estado Independente do Acre e José Plácido de Castro: excerptos históricos. Rio de Janeiro: Typographia São Benedicto, 1930.

Nota: Fotos retiradas do Livro "Francisco Mangabeira: sonho e aventura" de Paulo Mangabeira-Albernaz. Campinas: Livraria M. Teixeira, s/d.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

CRÔNICA DA MINHA FILOSOFIA BARATA: O LOBO SEMPRE VENCE NO FINAL

Jairo Nolasco
Ontem tive a oportunidade, diria não muito desejada, de receber a visita do dono do alheio. Ele veio na madrugada no melhor do meu sono, aproveitando a noite de chuva invernosa _ só quando as nossas choupanas amazônicas ficam refrigeradas e deixam nossos sentidos mais dormentes _ para me aliviar de alguns bens adquirido pelo ofício. Quando despertei, repentino, do meu descanso já era sem jeito, o convidado non grata já se tinha ido. Restava apenas o latido agoniado do cachorro e o forte cheiro de enxofre deixado pela fumaça que encobria seus rastros.

Queria eu tê-lo encontrado? Não sei ao certo. A arma artesanal deixada na fuga, apresentada na imagem acima, demonstra que ele não estava muito a fim de papo. Queria, porém, parabenizá-lo pela empreitada. Ele é sortudo porque a lei e a moral não o restringe. Ele pode quebrar o Contrato Social de Rousseau. Ele não está preso ao que restou do compêndio do Richard Baxter e da ética puritana. Aliás, minha Visita Secreta não está preso a nada. Não é preciso da dedução ou da inferição "sherloqueana" para saber que aprendeu fazer aquele tipo de arma em uma alguma dessas unidades de recuperação social. E que recuperação!!

Gabaria sua condição privilegiada. Ele sempre estará um passo na frente. Eu nunca saberei quando virá novamente. Esperarei dias, meses, perdendo o sono. Ele dormirá tranquilo, me matará no cansaço da espera. Quando decidir, voltará a carga quando eu estiver novamente dormindo. E o seu lucro financeiro será grande. Cada coisa que ele levou, paguei os impostos nela's contidos. Ele conseguiu livre. Tudo é franqueado no furto. Sorte minha e burrice dele que só eram velhos cacarecos.

Enquanto cumpria minha carga horária escolar e de trabalho , me impunham a lei Draconiana, a moral e a ascese Calvinista e Capitalista, ele, coitado, era vítima de um tal de "sistema". Por isso aprendeu a manusear e fabricar armas, dilacerar a pele e espetar os órgãos internos dos corpos alheios. Seu porte de arma é garantido, a lei não o alcança. Está preparado para a batalha corporal, eis mais uma vantagem. O seu único horário é à noite. Ele está pouco preocupado se é o velho ou é o novo horário. Tanto faz ser às 03 ou às 02 da manhã. Só torce pela fina e fria chuva da madrugada. Há engenhosidade no plano.

Tenho por minha minha propriedade o direito fundamental garantido pela nossa misericordiosa Constituição Federal, desde que _ claro_ pague o IPTU. Mas o direito não é absoluto. Se sem cautela abro a porta que dá para a área de serviço onde o pobre coitado estava fazendo seu trabalho e ele revoltado me desferisse uma, duas estocadas com essa arma artesanal atingindo minha jugular ou carótida interna _ que ele aprendeu onde ficam, nas lições sobre a anatomia humana nas suas aulas de recuperação social _ seria eu só mais um pai de família, no lugar errado na hora errada a atrapalhar o serviço alheio. Será que dei sorte ?

Em espírito, não necessariamente em verdade, desejaria a ele que não voltasse mais vezes. Fosse procurar outras oferendas em outras propriedades, senão a dele mesmo. Vai homem livre das propriedades alheias, enquanto eu me preocupo em reforçar as grades e contratar um cão mais feroz que não tenha medo de água para vigiar melhor minha reclusão. O desvalido, se cair, ainda tem direito ao Auxílio Reclusão. Eu pago os impostos. Os defensores dos direitos humanos pensaram e pensam nele, em mim não. Quem mesmo leva vantagem no fim?

E no ocaso ficaria, como fiquei, com a rústica arma dele. Pediria que não me processasse. Diria: Sei que não foi uma troca justa. Vossa Senhoria trabalhou pesado para fabricá-la; as coisas das quais se apossou, eu já as recebi prontas, a minha mais- valia não estava ali posta. Peço desculpas pelo susto. Bom furto.

Já disseram que o homem é o lobo do homem? Pois, bem por via de dúvidas, eu não sendo o cordeiro da dupla _ me recuso a semelhante papel, trataria de dá-lhe no mínimo dois tiros, um de defesa e outro de garantia, quer ser lobo? Então que vá ser lá onde os raios o partam! Fez bem em fugir antes da minha chegada, o filhote das teorias humanistas. Da próxima vez não farei tanto barulho (proposital), para ter dar a chance de fugir, escravo do mal...

***

*JAIRO NOLASCO vive em Cruzeiro do Sul - AC. Dono de uma ironia-sarcástica requintada, que nos faz pensar num Machado de Assis, é impossível findar um texto seu sem aquele sentimento de incômodo e/ou deslumbramento. Fugindo da crítica fácil e medíocre, tão comum nessa nova onda blogueira acreana, Jairo Nolasco se diferencia de tudo o mais que se tem escrito  no Acre, pelo seu estilo próprio de contar-denunciar, em escrachar o verbo de forma poética, literária, profunda. Jurubeba é planta que amarga, cheia de espinhos... incomoda. Não é por acaso que seu blog se chama JURUBEBA JURUAENSIS.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

MARINA SILVA: UMA MUSA NA POESIA ACREANA


ODE À MARINA
Mário Maia


Do mulateiro tem a mesma cor,
encerras n’alma pura de menina
a beleza das estrelas diamantinas
e, de um céu enluarada, o esplendor.

Sim, ninfa selvagem. Sim Marina,
tu és a selva virgem viridente;
o fruto fecundado e a semente;
a água pura de fonte cristalina.

Anjo encantado e encantamento,
raro exemplar de vida; um destino.
Das novas gerações, um novo hino...
Verbo de fé, fiel ao juramento.

És tu Marina, lutadora altiva;
brava guerreira pela liberdade
do homem do campo e da cidade;
a mais autêntica dessa força viva.

Por isso te tomamos por bandeira;
estandarte de esperança renovada...
Archote clareando a nossa estrada
no pélago, a estrela timoneira...

És para nós o exemplo verdadeiro
de política sem corrupção.
És paradigma dessa geração
que não vende seu voto por dinheiro.

Assim, Marina, na oportunidade
do lançamento de candidaturas,
entre todas aquelas que são puras
teu nome nasce como uma claridade
após um temporal de noite escura.

Marina, permita que a nossa voz,
dos veteranos e da mocidade,
se ajunte à tua, para a liberdade
abrir as suas asas sobre nós...


Rio Branco, 27.06.1990 – Recitado no lançamento da Candidatura de Marina.
MAIA, Mário. Sombras siderais e outras sombras. Sem editora, 1990.

*

A MÃE DA MATA
Nilson Mourão


Ó Poronga linda
Acende tua luz,
Ilumina a nossa Estrada,
clareia os varadouros
para que a Mãe-da-Mata,
a seringueira,
misteriosa e forte,
continue dando o leite da vida.

Ó lamparina linda,
acende tua luz,
resgata a nossa vida,
renova nossa alegria
de viver na floresta,
com os animais e os rios,
com o sol, a chuva e as estrelas.

Ó lamparina infinita
acende tua luz...


Cruzeiro do Sul – Ac, 23.08.1997
MOURÃO, Nilson. Cantos de Fé e Amor. Rio Branco: Fundação Elias Mansour, 2004.

*

À MENINA MARINA SILVA
José de Anchieta Batista


Lá vem a menina,
franzina, morena,
selvagem, serena,
Sem medo de nada...
- da onça pintada,
- do mapinguari,-
- dos grandes mistérios
das coisas daqui.

Lá vem a menina
com seus desafios...
nascida no ventre
das terras do norte...
com alma gigante,
guerreira e pacata,
nos traz lá da mata
a seiva mais forte...

Lá vem a menina,
nas curvas do rio,
num barco de sonhos,
audaz, destemida,
remando nas águas
que a vida lhe trouxe,
com seu jeito doce
de ser atrevida.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

PARADIGMA, USOS E ABUSOS DO CONCEITO

Profª. Inês Lacerda Araújo*


Thomas Kuhn (1922-1996) publicou em 1962 um livro sobre história da ciência A Estrutura da Revoluções Científicas, cujo sucesso e repercussão foram enormes. Ele soluciona um problema crucial para se fazer história da ciência. Desde o nascimento da Física, com Galileu (séculos 16-17) até hoje teria havido um acréscimo de conhecimento, um acúmulo de teorias que aprofundariam o que se sabe sobre a natureza, o movimento, os átomos, a eletricidade, etc.

O problema é que essas teorias mudam, as explicações de Galileu e Newton foram suplantadas pela de Einstein, em muitos aspectos. Então, a teoria que está por vir será verdadeira e a de Einstein falsa? Como é possível trabalhar a partir de uma teoria falsa?

A história da ciência é história dos erros?! Se o historiador considerar que há um acúmulo, um acréscimo de teorias, cada vez mais aproximadas da realidade, tudo o que foi descartado pelos cientistas terá ainda que ser chamado de ciência?

A solução de Kuhn foi mostrar que a ciência não é acúmulo e sim mudança. Mas o que muda?

Os paradigmas é que mudam, isto é, as noções, conceitos, modos de fazer experiência, como e o que coletar para a pesquisa, as técnicas e métodos que se emprega, enfim, tudo o que uma comunidade de cientistas, em certa época, emprega, pode sofrer súbitas mudanças.

Kuhn, ao invés de procurar a causa dessas mudanças, limita-se a analisar o que ele chamou de ciência normal, as diferentes maneiras de resolver problemas, tal como se o cientista estivesse a resolver quebra-cabeças.

Resolvidos os problemas e obstáculos, um novo modo de ver o mundo surge, como resultado do esforço empregado na pesquisa. A nova teoria revoluciona, o novo paradigma consegue um ajuste com a realidade, diferente do paradigma anterior.

Exemplo: para Aristóteles o cosmo é fechado, finito, os astros são esféricos, perfeitos, não há noção de evolução. Para Galileu o cosmo é aberto, os astros se movem e não são esféricos. Ele usa a luneta, cálculos, faz experimentos. Isso é um novo paradigma, que revolucionou a ciência.

As mudanças de paradigma não se dão ao gosto do cientista! Ou devido a suas boas intenções!

Assim, quando se defende (como acontece em várias áreas das ciências humanas) que se deve mudar de paradigma, não se compreendeu o que quis dizer Kuhn.

Em ciências humanas (Sociologia, História) não há acordo quanto a método e objetivo (como e o que pesquisar), portanto, não há paradigma.

Conclusão: não passa de um modismo dizer que é preciso mudar de paradigma, ou quebrar paradigmas.
As tiras acima, são de Benett (Gazeta do Povo). Para melhor visualização busque no Google.

Obs.: se o emprego do termo for o usual, isto é, "paradigma' sinônimo de "modelo", pode-se entender a mudança de paradigma como renovação, mas não como uma revolução, no sentido de Kuhn.

***

* INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e doutora em Estudos Linguísticos.

VIDA - Fábio Júnior

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Série A POESIA ACREANA > MÁRIO MAIA

Entre as obras do médico, político e poeta acreano Mário Maia (1925-2000) destacam-se “Rios e Barrancos do Acre” (1968) e “Sombras siderais e outras sombras” (1990). Este em versos, aquele em prosa. A poesia de Maia não se limita a temática local, talvez por ter passado boa parte de sua vida fora do Acre. É o poeta do social e da dimensão cósmica do ser humano.

Para Romeu Jobim, o sonho e a poesia de Mário Maia nunca o tiraram da realidade, do firme chão em que sempre pisou, antes ao contrário, mais servindo para que melhor os apreendesse e dominasse, em todos os aspectos.

Acerca de Sombras Siderais, seu único livro de poesias, Maia afirma que esse foi criado num momento de grande angústia e sofrimento, os versos são flechas e lanças envenenadas penetrando no fundo d’alma do ser. Sobre o livro a importante jornalista e escritora Fátima Almeida comenta que nele assistimos o homem que parte desta esfera espaço-temporal para um encontro com o cosmo, sua dimensão superior, do qual ele próprio é um atributo.

Embora não seja extensa a obra poética de Maia, as páginas que deixou revelam um homem imbuído de grande sensibilidade, com uma visão universalizante do ser humano e do mundo. Passará o médico, o político, porém, permanecerá o poeta, pois este “deixou de ser pó e transformou-se em vida”.

***

O PRANTO DO SERINGUEIRO
Mário Maia

Não me derrube, seu moço, a seringueira...
O seu leite me serve de sustento.
Já estou velho; mas desde o nascimento
Que esta árvore é minha companheira...

Olhe, é irmã daquela castanheira
Cuja copa procura o firmamento...
Ela também me dá alimento
Que mata a fome da família inteira...

Ao dizer isto, emudeceu num canto
Com a tristeza que uma saudade encerra.
Foi tanto a dor e o sentimento tanto,

Quando feriu o tronco, a moto-serra,
Que o seringueiro sucumbiu num pranto
Tão orvalhado, que inundou a terra...

GÊNESE
Mário Maia

Como pode assim brotar do nada
o Plasmódio das Mixomicetas?
Quantas voltas nebulares foram dadas
nas espirais das Siderais Roletas
para que do feio das crisálidas
pudessem nascer as borboletas?
Nos primórdios dos tempos ignotos,
da metamorfose da geleia escura
sob a Sintética Vibração dos fotos,
emergisou da Hidrogenia pura
e com o Carbono, transformou-se em lótus
por entre as gretas duma Rocha dura.
Como um fantasma que sai do Cemitério
fugindo da Carcaça apodrecida,
de repente, transcendental Mistério:
da Crosta da Terra, a lama endurecida
qual uma imensa casca de ferida,
deixou de ser pó e transformou-se em vida.

Brasília, abril de 1984

ALMA AFLITA
Mário Maia

Caminhava eu na noite escura
pelo chão glacial da madrugada
no corpo, a poeira da estrada
no peito, o coração em pedra dura
por fora, a anatomia da estrutura
por dentro, uma alma destroçada.

Brasília, 01.06.1984

ETERNIDADE
Mário Maia

Voltar a ser nitrito e ser nitrato
transformar-se em inorgânico novamente
para que as plantas cresçam
e hajam flores...
Para que as aves cantem
e hajam ninhos...
E eu serei a planta, a flor
a ave, o ninho....

São Gonçalo – 29.08.1973

ECCE HOMO
Mário Maia

O céu engatava a estrela.
O orvalho molhava a flor.
Entre ambos o espaço,
a amplidão sem fim...
Contemplei a flor e a estrela:
semelhantes eram e de igual tamanho.
Uma irradiava luz.
A outra exalava perfume.
A que estava no céu, pulsava
a que vinha do chão, tremia.
O firmamento, de lá, cantava;
O jardim daqui, sorria.
Toquei a corola de pétalas
e a auréola de luz
com as mãos nervosas
de uma cruz
ao abraçar o infinito.
As plantas da terra se acordaram
as luzes do céu se incendiaram
ao ouvir meu grito.
Fez-se trevas.
Agora, sigo esses caminhos
causticados pelo fogo dos astros
pisando sobre cardos e espinhos.

São Gonçalo – 09.03.1970

***

MAIA, Mário. Sombras siderais e outras sombras. Sem editora, 1990.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

CENTRO CEARENSE DO TARAUACÁ - fragmentos de nossa história

Isaac Melo*


Para expressar o quão grande era a presença do cearense nestas plagas, o grande homem de letras, historiador e sociólogo Abguar Bastos (1902-1995) chegou a dizer certa vez que o Acre era uma extensão do Ceará. E num belíssimo prefácio à primeira edição de A Conquista do Deserto Ocidental (1924) de Craveiro Costa, dizia: “O cearense e o Acre eram dois destinos ainda sem comunicação com a vida: o primeiro à procura de uma terra que o recebesse, o segundo em busca de um povo que o tomasse. Ambos soturnos, ásperos, trágicos. Ambos libertando das costas um deserto agressivo. Um carregado de filhos. Outro carregado de rios”. Não há como negar, e nunca negamos, a importância, entre outros, dos nordestinos, sobretudo, cearenses, para a história acreana e para a nossa própria identidade e formação.

Os pais de meu pai eram cearenses. E, assim, no Acre, boa parte da população descende de um parente nordestino. Enquanto os sulistas se orgulham pela ascendência germânica, italiana, polonesa, ucraniana, etc. o acreano estufa o peito, satisfeito, ao dizer que seu pai ou avô era paraibano, maranhense, potiguar...

Um caso interessante, em torno da presença cearense no Acre, se deu em Tarauacá. É que ali, no dia 25 de Março de 1914, fora instalado, numa casa em que um dia funcionara o Conselho Municipal, o Centro Cearense do Tarauacá, por iniciativa de Júlio Pereira Rocque, João Frota Menezes e Francisco de Assis Bezerra Filho, cearenses, é claro!

O Centro Cearense do Tarauacá abrangia todo o departamento de mesmo nome. Funcionou de fato e com plena organização. Em seu estatuto regimental, o auxílio e proteção ao Ceará precediam a do departamento. Eis o primeiro artigo, ipsis litteris:

Art.1. O C.C. com sede em Vila Seabra é uma associação que tem por fim auxiliar e proteger o Ceará, o departamento do Tarauacá, os cearenses e os seus associados quando e como se fizer preciso e na medida de suas forças.

O segundo artigo, entre outras coisas, apregoava que admitia-se para sócios do Centro exclusivamente os filhos do Ceará. É importante lembrar que poucas pessoas, à época, eram naturais da região. Sendo assim, não há nada de anormal a ideia de um centro onde os patrícios pudessem se encontrar, manter suas tradições, etc. como ocorreu no Sul do país e em muitos outros lugares ao redor do mundo.

Entre outras funções, o Centro Cearense tinha como objetivo promover a criação de um Jornal, “O Cearense”; fundar uma sala de leitura e biblioteca organizada, o que de fato aconteceu; criar um curso noturno (aliás, aí deu aulas de português o Dr. Hugo Carneiro, que mais tarde se tornaria governador, à época exercia a advocacia em Tarauacá); um horto botânico e campos de aclimação de plantas; fazer plantios ordenados de seringueiras; organizar orçamentos e fazer plantas, etc. Sem dúvida, um trabalho pioneiro e ousado, para época e região, e que, na verdade, se tornou uma das primeiras experiências de organização da sociedade tarauacaense.

Conforme constava no artigo segundo do estatuto, o Centro funcionaria até 24 de Fevereiro de 1915. Sabe-se, no entanto, que o Centro Cearense do Tarauacá prolongou-se por mais algum tempo e tornou-se uma referência para a sociedade local da época.

Destarte, a afirmação de Bastos, no início do texto, não é de toda irreal, banal. No fundo, exprime que o acreano é um povo multifacetado, em que as diferenças não segregaram, ao contrário, ajudaram a formar o rosto do Acre. Para nós, portanto, ficou o exemplo de coragem e ousadia, e a certeza, como um dia dissera Bastos, de que “o Acre não seria cearense. Mas o cearense seria acreano”.

***

BASTOS, Abguar. A Conquista Acreana. Rio de Janeiro: SPVEA, 1960
Jornal “O Estado” (Orgão dos Interesses do Departamento) – 29 de Março de 1914, No.9.

A DIALÉTICA MARXISTA

Profª. Inês Lacerda Araújo*


Dia desses li um artigo de um professor universitário (Gazeta do Povo) em que ele atribui à divulgação do marxismo, o fato de o samba e outras manisfestações populares, passarem a ser valorizados pela classe alta.

É ainda bastante grande a influência que as ideias marxistas têm no ambiente intelectual e acadêmico de nossas universidades. A que se deve essa força? A dialética marxista, enquanto filosofia, ideologia e método de explicação/avaliação da realidade se justifica?

Resposta à primeira questão: Marx analisou o capitalismo nascente, e mostrou a violência e a injustiça que sofria a classe operária. Conclamou essa classe à luta política por um regime, o socialismo, no qual fábricas, maquinário, produção, distribuição, todo esse processo, estivesse nas mãos do proletariado. A revolução do proletariado seria o fim do capitalismo e o início de uma nova era para a história.

O método de análise do marxismo (de modo geral, pois há diversas correntes dentro do marxismo) é a dialética. A história se move por contradição, isto é, por forças antagônicas que se defrontam no momento em que a situação atinge um ponto máximo, por exemplo, as lutas de classe, e a mudança se dá devido a essa força que nega, que contradiz o momento anterior. O resultado é um novo momento histórico, em que essas contradições e lutas são superadas, são ultrapassadas. A cada ultrapassagem, há uma renovação.

A hipótese é a de que haverá o momento da total renovação, da ausência total de contradição entre o capital e o trabalho, cessarão as lutas de classe quando a classe oprimida detiver trabalho e capital.

Como se vê, a força dessa análise reside na promessa da justiça social pela revolução do proletariado, o que mobilizou boa parte de países europeus desde o início do século 20 e se espalhou a partir da antiga União Soviética para Cuba, China, alguns países africanos e latino-americanos.

Resposta à segunda questão: esse é um método de análise da história que privilegia o confronto de classes. Ora, a história dos povos e culturas se constitui com inúmeros outros fatores. Ainda não se viu o socialismo lidar com o fato de ter que produzir e distribuir com sucesso (o que produzir, com que tipo de mão de obra, a quem vender, como transportar, exportar o que, para quem, importar o que, de quem, etc., etc.). E mais, quem gerencia? Quem de fato porá a mão na massa?

O que se viu foi o poder acabar nas garras do Estado, com burocratas e mandatários por vezes cruéis e banhos de sangue.

A história se constitui por séries de acontecimentos, guerras, lutas pelo poder, opressão, crueldade, mas também por ideais, como pacifismo, libertação, justiça social.

Não é preciso ser marxista para enxergar a opressão. A ideologia da dialética marxista se resume no "acabar com a desigualdade". Como seria uma sociedade com todos iguais? Isso é desejável?

Sempre que se tentou essa pretensa igualdade foram os chefes (portanto, uma "classe") que precisou impor a todos um mesmo tipo de pensamento, de ação e de projeto de vida; e isso com censura e muita propaganda (saíram os ícones da religião ortodoxa na Rússia, e entraram as representações das figuras de Lênin e de Stalin).

Que tal abrir a cabeça de nossos sáuricos intelectuais de esquerda para outros modos de ver e de pensar? Modos de ver e de pensar que exigem, sim, luta permanente por melhoria de condições de vida para um número cada vez maior de pessoas, mas sem o ranço da estreita noção de classe opressora X classe oprimida?

Quanto ao professor intelectualizado citado no início, o que dizer? O samba conquistou espaço pela musicalidade, pela poesia, pela qualidade, e não por que as "classes superiores" , imbuídas de marxismo, passaram a olhar para o povão e decidiram que sambar é legal...

*

* INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e doutora em Estudos Linguísticos.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

SÉRIE A POESIA ACREANA

A partir desta semana damos início, no Alma Acreana, a série A Poesia Acreana, que visa divulgar a poesia e os poetas de nossa terra. O Acre é historicamente um estado jovem, porém, goza de importante maturidade e propriedade em suas letras, sobretudo na poesia, embora saibamos que ainda estamos em via de formação. Para poema de abertura, que resume bem o espírito de nossa poesia, selecionamos uma do cientista social Jacó Cesar Piccoli.

***

POESIA ACREANA
Jacó Cesar Piccoli


POESIA ACREANA
feita de vida
feita de amor

Protesto
diante da miséria...
Pranto
diante das derrubadas
Gritos de dor
diante da expulsão dos filhos da terra
índios
seringueiros
castanheiros
ribeirinhos...

POESIA ACREANA
palpitante,
selvagem,
popular.
Que evita os discursos demagógicos
e a ironia dos homens que exploram o HOMEM.

POESIA ACREANA
Versos que seduzem
Versos que desejam
Versos que teimam em construir
nestes tempos de desunião.
Versos de certeza
Versos de esperança
Versos de liberdade
Versos de Paz

Versos da Amazônia dos homens,
da Amazônia-natureza,
virgem fértil e bela
com que todos sonhamos,

POESIA ACREANA
feita na Amazônia
feita de vida
feita de amor

***

Antologia dos Poetas Acreanos 1986. Rio Branco: Fundação de Desenvolvimento de Recursos Humanos, da Cultura e do Desporto / Casa do Poeta Acreano, 1986.

MANDALAS COM ALMA ACREANA...

Quando recentemente estive em Rio Branco, tive a oportunidade de visitar, na Procuradoria Geral do Estado do Acre, a exposição “Mandalas da Floresta”, da artista plástica acreana Simone Bichara. A seu convite, estive um final de tarde em seu Espaço Gaya - Aldeia do Ser, onde conversamos sobre sua obra e outras coisas mais, e pude apreciar e conhecer melhor outros trabalhos seus. Simone faz uma arte primorosa em que reúne a sabedoria e as cores da floresta e os sentimentos mais profundos do ser humano. Expresso aqui o meu carinho e agradecimento à Simone pelo privilégio em ter desfrutado de seu trabalho, e de sua amizade, a quem oferto os meus, singelos e sinceros, versos.

Em cada mandala
há uma força divina
uma alma que fala
uma luz que ilumina...
Não é fruto do pensamento
não nasce da ilusão
é verdadeiro sentimento
que brota do coração...
Mandalas da floresta
nacos da alma acreana
doce cantar, linda seresta
à um povo que ama...
É vida, é cura, é amor
é esperança que brotara
radiante de fervor
da alma de Simone Bichara...

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

COMO A TRAIÇÃO CHEGOU À RÚSSIA

Rainer Maria Rilke é um dos poetas mais importantes de língua alemã do século XX. Quando contava 22 anos Rilke fez duas viagens que marcaram a sua juventude e a sua obra: a primeira, à Itália e a outra, à Rússia. Nessas duas viagens, em suas leituras, estudos e conversas o poeta colecionou histórias, que depois reuniu num livro belíssimo, “Histórias do Bom Deus”, em que deixa transparecer um sentido poético e livre de Deus e da religiosidade. Do livro, seleciono um excerto do conto “Como a traição chegou à Rússia”, uma das mais belas histórias do livro, a revelar a genialidade de Rilke.

*

(...) Enconstei na janela, e o paralítico fechou os olhos, como lhe agradava fazer quando uma história começava.

“O czar Ivan, o terrível, queria impor um tributo aos príncipes vizinhos, ameaçando uma grande guerra caso não mandassem ouro para Moscou, para a cidade branca. Os príncipes, depois que se aconselharam, responderam como uma única pessoa: ‘Nós lhe propomos três enigmas. Venha ao Oriente no dia em que tivermos determinado, até a Pedra Branca onde estaremos reunidos, e nos diga as três soluções. Se estiverem certas, entregaremos os doze tonéis de ouro que exige de nós’. A princípio, o czar Ivan Vassiljevitch parou para refletir, mas era pertubado pelos muitos sinos de Moscou, sua cidade branca. Então convocou os seus doutores e conselheiros, ordenando que levassem para a Praça Vermelha (exatamente o lugar onde construíram a igreja para Vassilij, o Nu) cada um que não fosse capaz de responder as perguntas, e que os decapitassem. Nesta atividade o tepo passou tão depressa que, de repente, ele se achou em viagem para o Oriente, até a Pedra Branca, onde os príncipes aguardavam. Não sabia a resposta para nenhuma das três perguntas, mas a cavalgada era longa, havendo sempre a possibilidade de encontrar um sábio; pois naquela época muitos sábios estavam e fuga, na estrada, já que todos os reis tinham o hábito de mandar cortar-lhes a cabeça quando não pareciam suficientemente sábios. De todo modo, nenhum desses homens mostrou o rosto, mas numa manhã o czar viu um velho camponês barbudo trabalhando na construção de uma igreja. Já conseguira chegar ao telhado, onde encaixava as pequenas ripas de madeira. Porém, causava estranhamento o fato de o velho camponês descer toda vez do alto da igreja para apanhar uma única pequena ripa, entre as que se encontravam lá embaixo cortadas, em vez de carregar várias juntas em seu longo cafetã. Assim, precisava subir e descer a escada o tempo todo, sendo impossível sequer imaginar que um dia chegasse a levar desta maneira todas as centenas de ripas para seus lugares. Por isso o czar ficou impaciente: ‘Cabeça dura’, gritou (muitas vezes chamam assim os camponeses na Rússia), você deveria carregar logo um monte da sua madeira e então ir agachado até a igreja, isso seria muito mais simples’. O camponês, que naquele momento se encontrva no chão, permaneceu parado, pôs a mão sobre os olhos e respondeu: ‘Deixe comigo, czar Ivan Vassiljevitch, cada um entende melhor do seu ofício; contudo, como você já está passando por aqui, queria dizer-lhe a solução dos três enigmas que vai precisar saber na Pedra Branca, no Oriente, não muito longe’. E inculcou-lhe as três respostas em sequência. O czar quase não pôde se restabelecer da surpresa para agradecer. ‘O que devo dar como recompensa?’, perguntou afinal. ‘Nada’, fez o camponês, pegando uma ripa e querendo subir a escada. ‘Pare’, ordenou o czar, ‘não pode ser assim, tem que desejar algo’. ‘Então, paizinho, já que você ordena, dê um dos doze tonéis de ouro que vai receber dos príncipes no Oriente’. ‘Bem’, concordou o czar. ‘Dou um tonel de ouro’. Então cavalgou com pressa dali, para não esquecer as soluções.

Mais tarde, quando o czar tinha chegado do Oriente com os doze tonéis, fechou-se em Moscou, no seu palácio, no meio do Hremlin de cinco portões, e despejou um tonel após o outro sobre o pavimento brilhante do salão, de modo que se formou uma verdadeira montanha de ouro, projetando uma grande sombra negra sobre o chão. Por esquecimento, o czar esvaziou também o décimo segundo tonel. Quis enchê-lo novamente, mas dava-lhe pena precisa retirar tanto ouro do magnífico monte. De noite ele desceu para o pátio, preencheu três quartos do tonel com areia fina, retornou silenciosamente para o palácio, pôs ouro sobre a areia e, na manhã seguinte, enviou o tonel por um mensageiro para a região da vasta Rússia onde o velho camponês construía sua igreja. Quando este viu o mensageiro chegar, desceu do telhado, que ainda estava longe de ficar pronto, e exclamou: ‘Você não precisa se aproximar mais, meu amigo, viaje de volta com o seu tonel que contém três quarto de areia e uma escassa quarta parte de ouro; não tenho necessidade dele. Diga ao seu senhor que até agora não tinha havido nenhuma traição na Rússia. Porém, ele próprio será o culpado quando notar que não pode confiar em ninguém; pois agora mostrou como se trai, e de século em século o seu exemplo encontrará muitos imitadores na Rússia. Não preciso o ouro, posso viver sem ouro. Não esperava ouro, mas verdade e justiça. Contudo ele me enganou. Diga isso ao seu senhor, ao terrível czar Ivan Vassiljevitch, que se senta na sua cidade branca de moscou com sua má consciência e uma vestimenta dourada’.

Após um momento de cavalgada, o mensageiro voltou-se novamente: camponês e sua igreja tinham desaparecidos. E as ripas empilhadas também já não estavam lá, era tudo campo vazio e plano. Então o homem precipitou-se, assustado, para Moscou, pôs-se diante do czar, sem fôlego, e contou-lhe, de maneira bastante incompreensível, o que ocorrera, e que o pretenso camponês não era ninguém menos do que o próprio Deus.”

***

RILKE, Rainer Maria. Histórias do Bom Deus. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. (p.27-30)