segunda-feira, 30 de julho de 2018

REZA MILAGROSA PRA CURAR DOR DE DENTE

José de Anchieta Batista

O poder da fé é algo de que não se deve duvidar. Quando Jesus se referiu à fé que transporta montanha, deixou bem claro que nossa mente está muito aquém de sua magnitude, e que quase não é exercitada. Vivemos aqui na Terra sob o poder de regras e leis que a Ciência vai aos poucos descobrindo. A cada passo que ela avança, a cada nova descoberta, avança também nossa estupefação, e sempre nos fazemos mais conscientes de que somos criaturas pequeninas, frágeis, estúpidas, ignorantes e metidas a conhecedoras do que não conhecemos. Diante desta maravilhosa amplidão, em que estamos inseridos, e que é toda preenchida por uma magia indescritível, ignoramos de onde viemos e não sabemos por que estamos aqui. Também nos é vedado saber qual será nosso próximo destino, depois do que chamamos de morte. Em suma, somos um bando de bestas em busca da verdade. E como não a alcançamos, cada uma das bestas inventa a sua versão e se compraz em se iludir. O Homem de Nazaré evidenciou nossa tamanha ignorância e pediu que buscássemos a verdade pois só ela nos libertará. Enquanto isso não acontecer, estaremos rastejantes, buscando forjar verdades particulares. E assim vivemos sob a batuta do que não é verdadeiro.
Dei um toque simples, nas linhas acima, em um assunto muitíssimo sério, para exordiar um “causo” verídico, que agora vou relembrar, e no qual fica evidenciado o poder da fé.
Barbosinha, companheiro de carraspanas e presepadas, em Campina Grande, convidou-me para passar um fim de semana numa fazenda perto do município de Ingá de Bacamarte. Lá moravam parentes de sua namorada, a Cidinha, naquela época estudante do curso de Ciências Econômicas, e com quem se casou algum tempo depois.
Enchemos o tanque do velho fusquinha azul e partimos para mais uma aventura etílica. Uma hora de viagem até Ingá e outra hora até a fazenda. Após o ritual de apresentações aos familiares, fomos agasalhar nossas mochilas num dos quartos do velho casarão, para depois nos dirigirmos a um banho de cacimba, na companhia de alguns primos da Cidinha.
Mais tarde, sentamo-nos ao redor da mesa do alpendre - éramos mais ou menos umas trinta pessoas - para saborear tira-gostos de todo tipo, com acompanhamento de algumas doses de cachaça. Foi quando um garoto trouxe um recado, avisando que o sanfoneiro não poderia vir para a noitada, por conta de uma dor de dente dos diabos. O forrozeiro estava com a cara redonda de tão inchada e o pobre coitado, lá em sua casa, gemia feito um doido e nem sequer conseguia falar. Dessa forma, também o forró da noite do sábado estaria comprometido. Todos se entreolharam decepcionados e externando alguma lamentação.
Naquele momento, lá me vem o Barbosinha com mais uma de suas maquinações.
- Onde é que mora esse sanfoneiro? Amanhã vai ter forró, sim! – sentenciou, pedindo que alguém o acompanhasse até o fusquinha.
- Que é que tu vais fazer, Barbosa? – indagou Cidinha sem entender nada.
- Ora, meu amor, vou rezar nele uma reza forte que meu avô me ensinou, e amanhã ele estará aqui para comandar nosso forró – respondeu, já entrando no carro, fazendo-se acompanhar por um familiar da namorada.
Eu e a Cidinha olhamos um para o outro, mas nem eu nem ela entendemos nada. Intrigado, pensei comigo: “
- Esse fio duma égua já vai aprontar mais uma.
Esperamos ansiosos por seu retorno. Não demorou muito. Foi chegando e desabafando em voz alta:
- Fiz minha parte. Agora depende do santo e da fé dele – falou com força, engolindo uma dose reforçada de pinga.
Todos se entreolharam, sem comentários, como se preferissem aguardar o outro dia.
Evitei externar minhas reais impressões, mas logo depois me aproximei dele e falei baixinho:
- Homem, deixa de ser sem-vergonha, cara! Você tá doido, é? Amanhã vai passar um vexame.
- Eu? Se der errado vou botar a culpa nele mesmo - respondeu-me com tranquilidade.
No outro dia, o forró foi um dos mais animados já acontecidos ali. O sanfoneiro estava sem dor de dente, sem inchaço na cara, e animou o rala-bucho até o sol raiar.
A partir de então, Barbosinha ficou com a fama de grande rezador. Sempre que aparecia por aquelas bandas, era procurado para rezar até contra dor de corno. Com o acontecido, eu mesmo fiquei com minhas dúvidas se não seriam reais os poderes do Barbosinha. Passei, então, a chamá-lo de “curandeiro”.
Certo dia, lá em Campina Grande, exigi a verdade:
- Barbosinha, você é meu amigo e vai me contar agora qual foi a sacanagem que você aprontou com aquela reza no sanfoneiro.
Ele, então, com a cara mais lambida do mundo, se abriu:
- Anchieta, não é pra falar a verdade pra Cidinha, pois ela pensa que sou mesmo o maior rezador do mundo. Até me pede para benzê-la também – disse com uma estridente gargalhada, fazendo uma pausa para tomar mais uma lapada.
Em seguida concluiu:
- Meu amigo, foi meu avô, que era bem mais sacana do que eu, quem me repassou a oração. Naquela noite, repeti umas vinte vezes, com o galho do pinhão roxo na bochecha do sanfoneiro. Escute aí como é poderosa:

É corno quem acredita
Nesta minha reza à toa...
Ô dente filho da puta,
Na boca dessa pessoa,
- Se quiser passar, que passe!
- Se quiser doer que doa!

quinta-feira, 26 de julho de 2018

TRÊS REPENTES DE CÍCERO FRANCA

JOÃO DO COCO

I

Seu João vendia limão
Morava na 6 de agosto
Pra mim sempre foi bom gosto
Eu ir lá pra conversar
E ver seu João com o pandeiro
Cantando versos maneiros
Pra quem gosta de escutar

II

Sua voz era bem grave
No mesmo instante macia
E com tal diplomacia
Pra poder se apresentar
Era gago de nascença
Mas fantástico é a ciência
De cantar sem gaguejar

III

Se tornava engraçado
Todo seu comportamento
Mas a sua expressão
Sempre foi no firmamento
Fosse calor
Fosse frio
Fosse chuva
Ou fosse vento

IV

Ele batia o pandeiro
E pontiava viola
Sem jogar conversa fora
Cantava pra animar
Falava muito do Acre
Das histórias do nordeste
De Lampião e os caba da peste
Que gostavam de cantar
Fazendo desafios
De repentes verdadeiros
E também são pioneiros
Desse povo justiceiro
Com a cultura popular

V

Seu João tem muito amor
E aqui aonde estou
Não tenho medo de falar
Que ele foi bom cantador
Por que nasceu pra cantar
E agora tá na lista
Lá no céu como artista
Que ele é bom repentista
Fez por onde se salvar

VI

Imagino que agora
Seu João se encontrou
Com Hélio Melo, e Cancão
O Mathias, e o Beija-Flor
E outros bons repentistas
Que estão na nossa lista
De ser um bom cantador

VII

Que deus abençoe sempre todos
Pra cantarem com alegria
E os que estão na terra
Com o dom da cantoria
Para sempre cantar firme
Com amor e harmonia p.17-18


HOMENAGEM A MATHIAS

I

Eu peço atenção da plateia
Prum causo que eu vou contar
De um amigo irmão artista
Nascido em Tarauacá
Levado pelo destino
Em Rio Branco veio morar
Se tornando um grande mestre
Da cultura popular

II

Travou lutas contra a desigualdade
Sentindo na pele
Que a arte em Rio Branco
Não teve apoio de qualidade
Apoio só tinha os de fora
Quando chegavam nessa cidade

III

Seu nome é José Marques de Souza
O popular Mathias
Descobriu nos movimentos
Que o teatro existia
E conseguiu muitas coisas
Com a sua valentia

IV

Pai de uma grande família
Com filhos inteligentes
Mostrou com dignidade
Lealdade consequente
Que o homem pra ter vitória
Também tem que ser valente

V

Valente no bom sentido
De se firmar no ideal
Lutando pela cultura
Mas sempre de bom astral
Com a espada justiceira
Que hospeda o bem
E espanta o mal

VI

Mathias por amor a arte
Com paz e disposição
Conseguiu com simplicidade
Reformar o barracão
Com a força do Grupo Saci
E apoio da federação

VII

O Grupo de Olho na Coisa
Já faz tempo que olhava
Um lugar para hospedar
A cultura abandonada
E zelaram o local
Que há muito não tinha nada

VIII

Montou peças e deu cursos
Pras crianças e adolescentes
Para sábios e ignorantes
Para sadios e doentes
Para moças e rapazes
E para velhos descentes

IX

No dia 1º de Janeiro de 1997
Quando menos se esperava
Partiu dessa vida pra outra
O nosso amigo camarada
Mathias nem se despediu
Pois nem ele sabia de nada
Só se sabe que a hepatite
Há muito lhe incomodava

X

Esta história que eu contei
Pra essa plateia querida
Toda palavra tava certa
Confirmada e conferida
E todos nós vamos ter
A hora da despedida
Mas Mathias partiu sorrindo
Porque sempre amou a vida

XI

Que sirva de Lição
Essa triste narração
Pra homens de cara dura
Sem amor no coração
Que sai pelo meio do mundo
Dizendo que é durão

XII

Siga o exemplo de Mathias
Seja um bom cidadão
Não fuja do compromisso
Muito menos da missão
Quando ver algum guerreiro
Lutando pela cultura
Não se passe por ingeno
Procure logo entender
Que quem sustenta a cultura
Está sustentando você. p.19-21


A CHEGADA DE HÉLIO MELO NO CÉU

Pra morrer e ir pro céu
E ter sua salvação
É preciso ter amor
Dentro do seu coração

I

Agora eu peço um favor
Que todos tirem o chapéu
Vou falar de Hélio Melo
E sua chegada no céu

II

Onde estava a grande alegria
E bonita recepção
De Bacurau e Mathias
Jorge de Nazaré e Nina da Fundação
E outros amigos da arte
Que lá no céu já estão

III

Beto Rocha e Maués
Da Costa e Bacural
Não chegaram
Nessa hora
Para o cerimonial
Mas já estão preparados
Para outro festival

IV

Hélio Melo grande artista
Com sua rabeca afinada
Pintor e compositor
Com suas histórias enfeitava
A lenda do Mapinguari
E para o povo ele contava

V

Mathias fez uma peça
Falando dos mitos daqui
A peça dá um recado
Para quem quer assistir
Seja honesto, seja simples
E ame os que estão aqui...
Faça sempre o que Deus quer
E o que Jesus lhe pedir p.23-24


FRANCA, Cícero. Resgatando Tradição. Rio Branco: FGB, s/d.

MINHA PASSARELA

Bruno Rodrigues
Tu, que brilhaste em terras queridas,
hoje não é mais enaltecida.
Debaixo do soberano sol,
e esquecida pelos que em ti caminhavam,
já não exuberas mais a elegância que de ti exalava.
Oh, minha passarela!
por que não és mais tão bela?
Onde está tua ternura?
E por que, à noite, tu ficas tão escura?
Oh, minha passarela! Aos estranhos que falei sobre ti,
hoje me envergonho de te exibir.

Oh, minha passarela! por que não és mais tão bela?
Arquitetada da forma menos singela,
por que não és mais tão bela?
Foste tão exuberante,
que mais parecia uma debutante,
 ao lado de tua prima velha,
aquela toda feita de metal,
que a sua engenharia foi esquecida de forma banal.
Oh, minha passarela! Por que não brilhas mais como antes?
Com o azul do teu dorso e os pontos amarelos flamejantes?

Sem esses brilhos tu perdes teus contrastes,
e passas a ser a mais posposta arte.
Tomada pelos bandoleiros que assustam teus admiradores,
me faz acreditar que, do meu passeio, tu não fazes mais parte.
Oh, minha passarela! Por que estás tão triste?
Será pelo cuidado que a ti não mais existe?
Ou será por que teus pés, que tocam o rio lá no fundo,
aquele que transporta todos os dejetos imundos?

Não podes ficar sorumbática,
tão próxima da flâmula mais carismática!
Que representa um povo viril,
que lutou para ser do Brasil!


Bruno Rodrigues é natural de Rio Branco.

segunda-feira, 23 de julho de 2018

O ACRE CABE TODO EM UMA SÓ ÁRVORE

José Roca

Então, como aprendi sem professor, pode me chamar de
pintor da floresta. Porque só quem viveu lá dentro é capaz de
descobrir os mistérios da natureza através de nossos irmãos
índios, donos da floresta
– HÉLIO MELO[1]

ESPAÇO

Na obra Estrada da floresta, do artista acreano Hélio Melo (1926-2001), um seringueiro se aproxima de uma grande árvore de extração de borracha, que a selva pode chegar a medir mais de 30 metros de altura e quase três de diâmetro.[2] O quadro não mente, não exagera; não se trata de uma licença pictórica: a realidade é mais contundente que a imaginação. Enfrentando a selva, onde o olhar ocidental vê somente um emaranhado verde impenetrável, o seringueiro estrutura um trajeto, o seu trajeto: um mapa mental de seu rotineiro perambular em busca de sustento. Quando o seringueiro vê a selva, ele vê as árvores na sua individualidade, já que as conhece como se fossem da família. No quadro de Hélio Melo, cada braço da árvore representa um caminho, uma trilha em meio à selva; a cada ramo, uma árvore a sangrar; a cada nó circular, uma oportunidade de descanso na extração do látex.

A partir da segunda metade do século XIX, a borracha foi matéria-prima essencial para o desenvolvimento industrial da Europa e dos Estados Unidos. Fazia parte da maioria das máquinas – válvulas, vedações, correias – e de todos os veículos. É importante lembrar que, até 1927, a fábrica de Ford produziu 15 milhões de carros Modelo “T”, a um ritmo de quase um milhão por ano. Alguns especialistas calculavam que cada automóvel precisaria de aproximadamente 45 quilos de borracha para compor diversos elementos, o que nos dá uma ideia da demanda que a borracha nativa chegou a ter no primeiro quarto do século passado. Como durante a Segunda Guerra Mundial o Japão assumiu o controle das áreas tropicais do Sudeste Asiático, onde estavam os grandes cultivos industriais de borracha, o látex americano tornou-se novamente um produto estratégico, proporcionando o ressurgimento do interesse político nas áreas dos seringais da Amazônia brasileira. É no mínimo irônico que o desenvolvimento daquelas que outrora fora consideradas tecnologias de ponta estivesse literalmente nas mãos de pessoas que tiram, de maneira artesanal, o precioso sangue da “árvore que chora”, de gota em gota. A implacável lógica do capital estendeu esse sangramento a toda comunidade que, sujeita às inconstâncias da geopolítica, viveu ciclos de desenvolvimento e crise por causa de um agente externo que nunca conheceu, em pôde controlar.

A árvore de Hélio é, portanto, um mapa; mas também uma crônica. É possível ler nessa árvore-caminho as razões da tragédia que foi a exploração da borracha na área em que hoje estão os territórios do Brasil, Bolívia, Peru e Colômbia.[3] O problema central da extração do látex na América está ligado a uma circunstância biológica. Nunca foi possível cultivá-la industrialmente de maneira eficiente, já que quando as árvores estão próximas, enfileiradas, tornam-se muito vulneráveis à ação de um fungo mortal. Ironicamente, os ingleses conseguiram formar grandes plantações de seringueiras na Malásia, graças às sementes coletadas em solo brasileiro. As árvores deram certo porque não havia inimigos naturais em seu novo habitat. As frustradas experiências do industrial automobilístico Henry Ford na selva brasileira nos anos 1920 e dos Estados Unidos no Panamá e na Costa Rica na década de 1940 evidenciaram que a única forma de explorar a borracha americana era a tradicional, recolhendo o látex das árvores nativas. No entanto, isso significava uma diferença essencial em termos de eficiência e rendimento, o que se traduzia em uma importante disparidade no preço de cada quilo produzido. Enquanto em territórios controlados pela Coroa inglesa era possível um homem sangrar sozinho mais de 400 árvores por dia, produzindo quase 18 toneladas de látex por ano, um seringueiro brasileiro tinha de percorrer centenas de metros dentro da selva, indo de uma árvore à outra, desafiando a espessa vegetação, as pragas, os animais e os demais perigos da selva para produzir um quinto dessa quantidade. Além disso, no auge do Ciclo da Borracha na Amazônia, havia uma pressão enorme para conseguir um bom rendimento – absurdo para aquelas condições de trabalho – sob pena de castigos físicos para o seringueiro e sua família. As dificuldades advindas da extração, adicionadas aos empecilhos do transporte da borracha desde as profundezas da floresta até os portos, e de lá até seus consumidores finais, significaram um custo muito maior, ou seja, mais de cinco vezes o custo de produzi-las em plantações.

Assim como a lógica capitalista clássica (a industrialização dos processos) não funcionou por causa da própria natureza da árvore, a única forma de tornar o negócio rentável era reduzir o preço na origem do processo, ou seja, no processo de extração. Já que não era possível otimizar o sistema de colheita – o que se tornou tradição desde a Revolução Industrial –, a única estratégia possível era ter mão de obra mais barata. O recurso disponível foi voltar à lógica pré-capitalista feudal, ou seja, empregar trabalhadores em condições subumanas – medida que rapidamente se transformou na servidão das mais desprezíveis – e escravizar índios. Por meio de um verdadeiro regime de terror, os magnatas da borracha primeiramente submeteram os camponeses do Nordeste brasileiro, já deslocados por causa das secas, a contratos de trabalho nos quais quaisquer tipos de transporte, moradia, insumos e ferramentas tinham de ser pagos com seu trabalho. Isso gerou uma espiral de empréstimos impagáveis, sendo que quanto maior o tempo de trabalho, menor a possibilidade de pagar a dívida. Quando nem sequer isso foi suficiente, comunidades inteiras de índios foram obrigadas a trabalhar na indústria, dizimando por esgotamento e por doenças os “donos da selva”, cuja tragédia foi estar justamente no caminho da empresa civilizadora.

O mapa de Hélio Melo mostra as estradas de floresta, que, nas palavras de Euclides da Cunha, são “tentáculos de um polvo desmesurado”, a “imagem monstruosa e expressiva da sociedade torturada que moureja naquelas paragens”[4]. A selva, como éden puro, tornou-se um inferno.

O seringueiro é sobretudo um solitário, perdido no deserto da floresta, trabalhando para se escravizar. Cada dia num seringal corresponde a uma empreitada de Sísifo – partindo, chegando e novamente partindo pelas estradas no meio da mata, todos os dias, sempre, num eterno giro de encarcerado numa prisão sem muros.[5]

TEMPO

Considerando que o seringueiro deveria seguir uma rotina precisa em seu trabalho de provisão de leite vegetal, a árvore de Hélio Melo é também uma medida de tempo: uma jornada de trabalho. No primeiro percurso, foram 43 árvores, no qual fazia as incisões no tronco e posicionava as tigelinhas, pequenas tigelas de lata na qual goteja o látex. No segundo, 50; no terceiro, 49. Mais tarde, logo após um breve descanso, fazia o caminho inverso recolhendo o conteúdo de cada tigela nos baldes. No final da jornada, a preocupação era defumar a borracha extraída para solidificá-la em grandes compartimentos chamados pelas. O quadro nos mostra que em um dia o seringueiro de Hélio sangrava quase 150 árvores. Não sabemos ao certo a distância percorrida. No entanto, de acordo com os botânicos, as seringueiras em estado selvagem estão normalmente separadas entre 100 e 150 metros umas das outras. Isso nos leva a pensar que em um dia um trabalhador poderia caminhar quase 50 quilômetros – distância necessária para atravessar a cidade de São Paulo atual – entre sangrar a árvore e recolher o produto, tudo sob um calor inclemente da selva úmida.[6]

O seringueiro leva um rifle, está armado. Este seringueiro-soldado é o próprio Hélio Melo, que foi um “soldado da borracha”.[7] Hélio é um dos quase 60 mil jovens brasileiros que participaram de um programa liderado pelos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Destinado a neutralizar os efeitos do bloqueio japonês sobre a produção asiática de borracha, foi colocado em prática na Amazônia com o concurso do Estado brasileiro. A batalha da borracha foi uma empresa motivada pelas necessidades da indústria da guerra, portanto uma empresa bélica; o seringueiro tornou-se, desta maneira, um soldado. Sua missão: elevar exponencialmente a produção de borracha, passando de meras 16 mil toneladas em 1941 para 70 mil toneladas anuais. Para um incremento tão importante era preciso mais de 100 mil trabalhadores, razão pela qual se lançou uma agressiva campanha de propaganda do programa. Os famintos do Nordeste, afetados por uma seca que parecia não ter fim, foram bombardeados por imagens tendenciosas, cartazes que mostravam o látex jorrando das árvores para ser coletado, sem esforço, em baldes. Imagens que ressaltavam o verde da Amazônia como se fosse o mítico el-dorado de exuberância e riqueza, em um Nordeste assolado pela seca. Sem ter tanto a perder, muitos se inscreveram no programa. Porém, nem sequer os incentivos econômicos foram suficientemente eficazes na captação do contingente humano necessário para tamanha empreitada, o que levou ao recrutamento forçado. Milhares de jovens nordestinos, maltratados pela pobreza, decidiram seguir esse rumo, confrontados pela alternativa de lutar no pelotão de frente do exército. Mas a troca teria valido a pena: dos 20 mil soldados que lutaram na Europa, morreram somente 454. Por outro lado, dos quase 60 mil soldados da borracha enviados para a Amazônia entre 1942-1945, quase metade morreu na selva sem ter disparado um tiro sequer. A exploração dos soldados da borracha repetiu, em todos os detalhes, o injusto esquema de trabalho do primeiro boom da borracha chamado de “sistema de aviamento”. O trabalhador sempre devia mais do que produzia, e como legalmente ele era impedido de deixar os seringais sem ter saldado a sua dívida, a viagem se convertia sempre em uma viagem sem volta, e o contrato de trabalho, um contrato de escravidão.

A forma circular do percurso proposto pela seringueira de Hélio é, então, o tempo circular: o eterno retorno (da tragédia).

ENERGIA

O quadro de Hélio Melo surpreende pela síntese e pela complexidade dos códigos que trabalha. De fato, apesar de ser autodidata em arte, Hélio não deve ser considerado um artista naïf. Suas representações da selva – seus usos, mitos e personagens – não são somente isentas de inocência, mas, devido ao profundo conhecimento do território físico e social que retratou, sua obra está repleta de referências ocultas, referências que somente quem conhece a selva pode decifrar. É uma representação feita a partir da experiência direta. Nascido e criado no seringal, Hélio aprendeu por si só a pintar no meio da selva, se consequentemente teve de desenvolver sua própria linguagem pictórica. Como afirmaria Eduardo Galeano, referindo-se a Evo Morales, “a única linguagem digna de crédito é aquela nascida da necessidade de dizer”.[8] Hélio desenvolveu uma linguagem muito particular, na qual as árvores se tornaram vacas e bezerros, os burros e tartarugas sobem nos galhos, as seringueiras transformam-se em caminhos e os seringalistas, donos da terra, são burros preguiçosos que olham os seringueiros trabalharem, observando-os da comodidade de sua rede. Entre os vários livros que Hélio publicou com meios precários,[9] um deles, escrito um pouco antes de morrer, foca na necessidade de salvar a selva, ameaçada pela exploração maciça de madeira, pela monocultura extensiva, pelas estradas e pelos efeitos do progresso capitalista imposto à realidade da floresta. A borracha foi cortada para liberar grandes áreas para a pecuária. Sem a árvore, comunidades inteiras ficaram sem possiblidade de subsistência.

Foi muito triste o destino do caucho, que lamentavelmente ficou sem história. Sabe-se de algumas coisas através de pessoas idosas, algumas dessas pessoas já partiram, mas deixaram depoimentos sobre a derrubada e o desaparecimento do caucho. O resultado é que ninguém se atreveu a escrever sua história. Por sorte, logo houve a descoberta da seringueira, no ano de 1880. Da mesma forma que o caucho teve um fim triste, os seringueiros têm uma história dolorosa. O leite da seringa foi e ainda é trocado pelo leite de vaca.[10]

A arte de Hélio não é a arte de um iluminado, no sentido dado a muitas produções do chamado art brut, mas sim a expressão visual de um inventário de práticas em via de extinção, pelas mãos de um personagem com plena consciência daquilo que está em jogo. Por outro lado, é sim uma “arte iluminada”. A luz particular das obras de Hélio Melo cativou muitas pessoas, entre elas o escultor Sérgio Camargo[11], que escreveu:

Caso de simbiose estética com a mata em que viveu? Assim se explicaria naturalmente esse fenômeno, sem dar conta todavia da sua motivação profunda em conhecer, pelo trabalho de arte, os meandros luminosos que soube perceber; por exemplo a imanência complexa da luz suntuosa, curiosamente definida com a maior precisão em desenhos de sábia naturalidade. Assim o limpo alvorecer, o lento achegar do escuro noturno, as travessuras da luz nas ramarias e o seu pouso efêmero na textura rouca dos troncos; as clareiras luminescentes, os suaves abrigos da sombra, os finos percursos e os amplos espaços que, plenamente, a luz de Hélio Melo ocupa.[12]

A arte popular é uma expressão que combina a tradição cultural, a profissão passada de gerações em gerações, a necessidade expressiva e pessoal e a possibilidade de subsistência. Na arte contemporânea, raras vezes os fatores citados anteriormente são combinados. A arte popular e a arte dos “outsiders” – por serem propostas que no geral têm uma voz forte e um senso de urgência – contrastam com as produções artísticas atuais ou as complementam. No contexto da 27ª. Bienal de São Paulo, a obra de Hélio Melo dialogará com outros trabalhos artísticos realizados em torno de noções de território, fronteiras, justiça ambiental, fair trade etc. Algumas delas foram realizadas diretamente no território do Acre: a paródia do saber científico em um herbário de plantas artificiais de Alberto Baraya, que construiu uma grande seringueira com o próprio látex[13]; o desenho/reportagem de Susan Turcot, que reflete sobre a destruição da floresta e suas implicações nas leituras simbólicas e míticas da selva nas populações locais; a análise das arquiteturas de sobrevivência e as novas formas de comunidade do Acre, realizadas por Marjetica Potrč; a formação de um sistema que garanta a sustentabilidade das comunidades agrícolas na selva, realizado pelo grupo dinamarquês Superflex, entre outras.

MATÉRIA

O quadro de Hélio fala da floresta. Mais precisamente, a floresta fala através da obra de Hélio. Literalmente. Como não tinha pigmentos para executar suas obras, Hélio Melo desenvolveu seu próprio método macerando folhas (presumidamente da própria seringueira), casca, raízes e frutos, e utilizando, de acordo com a cultura local, o látex como cola. Por isso a coloração esverdeada característica de suas obras. Um dos recursos pictóricos recorrentes em seu trabalho é a aparição de uma fileira de folhas na margem inferior do quadro, que estabelece uma espécie de primeiro plano teatral situando a ação “na floresta”. Essa cortina de folhas não foi pintada: trata-se de um traço indicial, pois foi feita com folhas lanceoladas, molhadas em pigmento e aplicadas diretamente no suporte como se fosse um selo. A pintura de Hélio não representa somente a vida na floresta, mas também apresenta a selva pelo seu uso extensivo como matéria e como pincel.

POÉTICAS (MICRO) POLÍTICAS

A Estrada da floresta de Hélio também pode ser lida no contexto da recuperação dos valores culturais e das tradições da extração da borracha, em um momento em que as empresas madeireiras, os pecuaristas e os fazendeiros de grãos estavam obtendo concessões do Estado para derrubar a selva. Não podemos esquecer que o Acre é o território de Chico Mendes, também seringueiro. Chico combateu a destruição da selva com meios não convencionais, como os chamados empates – ações coletivas de ativismo social, não isentas de um caráter poético –, nos quais comunidades inteiras de homens, mulheres, idosos e crianças davam-se as mãos para formar um círculo em volta dos trabalhadores contratados para cortar as árvores. Diante dessa estratégia de coerção pacífica, conseguiu defender vastas extensões de terra que serviam de sustento para comunidades inteiras, contra os interesses dos grandes latifundiários. Chico liderou o conceito de reservas extrativistas, uma ação que vai além da defesa incondicional da selva, como manda a tradição dos ambientalistas. As reservas extrativistas não são somente um espaço de conservação de um recurso natural, a selva, fazendo um contraponto com o desmatamento maciço em prol da pecuária e da monocultura. Elas são também um espaço de preservação de um uso cultural, executado por gerações de índios e colonos durante séculos: a extração látex. Segundo o cineasta Adrian Cowell, que dirigiu A década da destruição, documentário sobre os processos de desmatamento no Brasil,

a grande vantagem da reserva extrativista era justamente seu povo que podia defender suas fronteiras, e que formou uma força social que podia atuar na política local. Do mesmo jeito como aquele tipo de árvore amazônica que alimenta colônias de formigas para se defender contra outras formigas, os seringueiros e índios são defensores natos e naturais da floresta amazônica.[14]

A situação atual da selva amazônica nos países que a compartem oscila entre a luta para preservar a natureza e os usos sociais e culturais associados a uma exploração milenar e renovável dos recursos, e a implementação de melhorias – algumas vezes bem-intencionadas, a maior parte delas advinda simplesmente de interesses privados – que facilitariam a entrada de povos isolados da globalização. A insistência em dizer que as vias de acesso são a solução dos problemas de isolamento das comunidades amazônicas nos faz lembrar, por sua insistência, a construção da ferrovia entre os rios Madeira e Mamoré, fato intimamente ligado à criação do Acre como território independente em 1899 e sua posterior anexação ao Brasil em 1904.

Há defensores e opositores furibundos para ambas as tendências. Os partidários do cultivo extensivo argumentam que quanto maior a produtividade, maiores os recursos derivados de regalias e de impostos e maior a quantidade de postos de trabalho. Seus opositores defendem as comunidades que vivem da exploração racional dos recursos da selva, mesmo que a defesa irrestrita da tradição da exploração da borracha – elevada à categoria de mito fundador – idealize essa exploração e se esqueça de que a indústria da borracha significou o extermínio completo de algumas etnias indígenas. Tratou-se de uma prosperidade temporal e ilusória que beneficiou somente poucos, à custa de sangue e sofrimento.

As boas intenções são sempre unilaterais e não necessariamente compartidas pelo destinatário da dádiva. A imposição de padrões forasteiros não tem mais terreno fértil para sua segurança em um contexto politicamente mais maduro. O etnobotânico Wade Davis dizia que, ao enfrentarmos comunidades cuja história, costumes e mitos desconhecemos,

idealizamos um passado que nunca viemos e negamos, a quem o viveu, o direito de muda-lo. Talvez tenhamos esquecido a lição mais inquietante de antropologia. Como disse Lévi-Strauss, ‘inventaram o relativismo cultural para os povos e eles o rechaçaram’.[15]

Atualmente existem no Brasil várias iniciativas, como a Universidade da Floresta, encaminhadas com o objetivo de buscar soluções locais que levem em conta o conhecimento das comunidades e o insumo conceitual na concepção de estratégias de desenvolvimento cultural economicamente sustentáveis. Sobre isso vale a pena citar novamente o seringueiro Hélio, com relação à sua árvore-floresta: “Só temos uma solução: deixar tudo para trás e, sem nenhum constrangimento, começar uma nova caminhada, de mãos erguidas, procurando construir sem destruir”.[16] Marjetica Potrč, que esteve em residência artística no Acre em 2006, aponta como o isolamento pode ser considerado uma vantagem relativa, no sentido de que pode desenvolver respostas próprias e inéditas a problemas que são eminentemente locais, incorporando o conhecimento dos índios, camponeses e seringueiros na solução dos problemas. Esta estratégia permite estender as micropolíticas locais como sento um modelo a aplicar – em lugar de soluções globais que desconhecem as especificidades do território:

Nos últimos 15 anos, grandes áreas de terras acreanas foram entregues a comunidades, inclusive à população indígena, para cultivo sustentável [...] A sustentabilidade diz respeito tanto ao meio ambiente como à economia. Quem lida com esses territórios encara essa economia de pequena escala tanto como uma ferramenta para sua própria sobrevivência do planeta e da sociedade em geral. O futuro do mundo depende do equilíbrio entre os territórios controlados localmente e as forças globalizadoras de companhias multinacionais? As pessoas com quem conversei definitivamente acham que sim. E deveriam saber disso, pois o que chamamos de a última fronteira mundial, a floresta, foi cruzada. Dessa forma, em muitos sentidos, o Acre representa a última fronteira da terra.[17]

ROCA, José IN: 27ª. Bienal de São Paulo: Como Viver Juntos. Editores Lisette Lagnado e Adriano Pedrosa. São Paulo: Fundação Bienal, 2006. p.129-140



[1] Ver a entrevista de Hélio Melo realizada por Cristina Leite no Guia da 27ª. Bienal, p.94.
[2] Aparentemente as árvores do Acre, uma variedade geográfica da Hevea brasiliensis, conhecida como “Acre fino”, são as seringueiras de maior tamanho entre todas as espécies da Amazônia. Wade Davis, El río. Exploraciones y descubrimientos en la selva amazónica, Bogotá, Banco de la República-El Áncora Editores, 2001, p.423
[3] Com relação aos colombianos, ver La vorágine (1924), de José Eustásio Rivera, romance que expõe a problemática da exploração e da miséria humana da selva.
[4] Euclides da Cunha, Um paraíso perdido, Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 1994, p.215.
[5] Isabel Cristina Martins Guillen, IN: “Euclides da Cunha para se pensar a Amazônia”. A frase final é de Euclides da Cunha.
[6] Em 1997, Hélio Melo foi convidado a participar do evento artístico Arte/Cidade III, no qual os artistas trabalhavam diferentes espaços em São Paulo. Sua obra consistiu em acumular centenas de sapatos que encontrou nas ruas de São Paulo, formando um registro em forma de escultura da trajetória de uma infinidade de personagens anônimos.
[7] “Sou soldado da borracha aposentado. Ganho dois salários. Pelejei para ter um ornado melhor, mas não consegui. Agora, quando vendo um quadro ganho um pouquinho mais”.
[8] Eduardo Galeno, “A segunda fundação da Bolívia”, Folha de S. Paulo, caderno “Mundo”, p.A24, 29 de janeiro de 2006.
[9] Hélio publicou vários livros, entre eles Legendas, Rio Branco, Artes Gráficas São José, 2000; Os mistérios dos pássaros, Rio Branco, Bobgraf Editora Preview, 1996; A experiência do caçador e os mistérios da caça, Rio Branco, Bobgraf Editora Preview, 1996.
[10] Hélio Melo, Como salvar nossa floresta. Do seringueiro para o seringueiro, Rio Branco, INPECA, 1999, p.13.
[11] Camargo viu a obra de Hélio Melo em um convite a uma exposição de arte popular no SESC Tijuca, em 1980.
[12] Sérgio Camargo, “A propósito de Hélio Holanda de Melo ou a beleza da luz observada”.
[13] A árvore de Baraya é reprodução fiel de uma enorme seringueira de Rio Branco e foi feita com o látex de mais de 2.800 árvores similares. Assim como a arte de Hélio, essa também é uma árvore que contém todas as árvores.
[14] Adrian Cowell, “Lembranças do Chico”.
[15] Referindo-se à ação evangelizadora nas selvas equatorianas nos anos de 1950. Wade Davis, op. cit., p.346.
[16] Hélio Melo, op. cit., p.13.
[17] Ver a entrevista de Marjetica Potrč realizada por Luisa Duarte no Guia da 27ª. Bienal, p.166