quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

VIVER COM MEDO

Eduardo Alves da Costa 


Viver com medo é pior 
do que ir para o degredo.
Pois de tanto moderar a diapasão
a alma acaba por desafinar a canção.
E a alma que se preze não cabe
em moldes de prudência;
porque é de sua natureza,
volátil e eterna, contrariar
as normas da dureza.
Por isso mesmo se diz
que pedra não tem alma;
e, por extensão, o ditador
– que dita as dores ao redor –,
por ser um ente pétreo, insensível,
em vez de alma tem um fusível
regulador. Destarte, não há risco
de que se queime o sistema
por uma falha de amor,
Os que, alados, se sentem
morrer sufocados, por extravasamento
anímico, pertencem a outra natureza.
Não lhes importa que à mesa
haja abundância de vitualhas;
nem querem ver o saldo bancário
subir os Himalaias.
Anseiam apenas livrar-se das malhas
que os passarinheiros tramam
entre o ser e o céu
– dissimulado véu a que chamam
ordem, hierarquia, segurança.
Acaso pode a alma obedecer
a qualquer ordem que não
a de buscar, incansável, o que almeja?
A que hierarquia pertencer
senão às imperiosas inclinações do ser?
No seu próprio fluir, na realização plena,
no gozar em liberdade
uma existência justa e serena
– aí está sua inteira segurança.
O mais são palavras de demente
que joga com palavras, perigosamente,
por não lhes conhecer o sentido.
Sozinhos entre retortas e serpentinas,
os cientistas do medo
ensaiam mutações inconsistentes;
e de seus cérebros doentes
saltam entidades tortas, arcabouços
de futuras ruínas.
Esquecem-se de que o homem,
criatura alada, não pode ter como horizonte
uma sociedade por quotas, limitada.
E ao anseio de crescimento, à busca
de liberdade, respondem
os arquitetos do pesadume
com a máquina do medo.
Ameaçam, enclausuram, apertam,
cortam, furam, despedaçam, massacram
o HOMEM, sob pretexto de salvar
outros homens. Mas os que se salvam,
nesse contexto, soam como sinos quebrados. 

COSTA, Eduardo Alves da. No caminho com Maiakóvski: poesia reunida. São Paulo: Geração Editorial, 2003. p.147-148

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

NÃO DESPERDICEM UM SÓ PENSAMENTO

Bertolt Brecht (1898-1956)


1

Não desperdicem um só pensamento
Com o que não pode mudar!
Não levantem um dedo
Para o que não pode ser melhorado!
Com o que não pode ser salvo
Não vertam uma lágrima! Mas
O que existe distribuam aos famintos
Façam realizar-se o possível e esmaguem
Esmaguem o patife egoísta que lhes atrapalha os movimentos
Quando retiram do poço seu irmão, com as cordas que existem em abundância.
Não desperdicem um só pensamento com o que não muda!
Mas retirem toda a humanidade sofredora do poço
Com as cordas que existem em abundância!

2

Que triunfo significa ser útil!
Mesmo o alpinista sem amarras, que nada prometeu a ninguém,
somente a si mesmo
Alegra-se ao alcançar o topo e triunfar
Porque sua força lhe foi útil ali, e portanto também o seria
Em outro lugar. E depois dele vêm os homens
Arrastando seus instrumentos e suas medidas ao pico agora escalável
Instrumentos que avaliam o tempo para os camponeses e para os aviões.

3

Aquele sentimento de participação e triunfo
De que somos tomados ante as imagens da revolta no encouraçado Potemkin
No instante em que os marinheiros jogam seus algozes na água
É o mesmo sentimento de participação e triunfo
Ante as imagens que nos mostram o primeiro voo sobre o Pólo Sul.

Eu presenciei como
Mesmo os exploradores foram tomados por aquele sentimento
Diante da ação dos marinheiros revolucionários: assim
Até mesmo a escória participou
Da irresistível sedução do Possível, e das severas alegrias da Lógica.

Assim como os técnicos desejam por fim dirigir na velocidade máxima
O carro sempre aperfeiçoado e construído com tamanho esforço
Para dele extrair tudo o que possui, e o camponês deseja
Retalhar a terra com o arado novo, assim como os construtores de ponte
Querem largar a draga gigante sobre o cascalho do rio
Também nós desejamos dirigir ao máximo e levar ao fim
A obra de aperfeiçoamento desde planeta 
Para toda a humanidade vivente. 


BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. Seleção e tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Ed. 34, 2000. p.89-90

domingo, 27 de dezembro de 2015

UBADA DE UMBUZEIRO

Isac de Melo

Lá vem vindo a canoa pelo rio 
Silenciosa veloz e aprumada
Num voar sincronizado da remada
Do caboclo feroz e arredio
Vem suportando a carga por um fio
Num esforço sutil cada guerreiro
Faz o seu remo evitar o banzeiro
E as marolas se vão pro lado oposto
Posso ver na feição de cada rosto
Um indígena voraz e altaneiro

Logo atrás numa ubada de umbuzeiro 
Segue a prole de tanga e jamachim
Cuiatãn dá mamar pro curumim
E a vovó dá oasca pro escudeiro
Papagaios gargalham num paneiro
Mandioca pra fazer caxiri
Caititu capivara e jabuti
Peixe fresco pescado de arpão
Iambu de arapuca e alçapão
E bodó pra fazer piracui 

Eu não sei se eles vão se divertir 
Ou se estão se mudando de lugar
Nesse caso ao chegar ao novo lar
Haverá muita palha de jaci
Um cipó pra prender o tapiri
Muito enfeite com pena de mutum
Os guerreiros se pintam de urucum
Haverá ritual do curandeiro
Depois dançam pintados no terreiro
E o pajé abençoa cada um