terça-feira, 31 de janeiro de 2012

KANT E A METAFÍSICA

Profª. Inês Lacerda Araújo


Kant concorda com Hume na crítica que este fez à indução. A observação de numerosos casos no passado não permite a conclusão de que no futuro eles se darão do mesmo modo. Por exemplo: até o momento, todas as experiências com pão, são de que ele alimenta, mas isso não garante que no futuro todo pão alimente. A intenção de Hume era mostrar que não há um princípio de causalidade, não há a priori uma regra geral confiável absolutamente.

Para Kant, entretanto, não se deve concluir ceticamente que não haja leis por detrás dos objetos da experiência. Essas leis podem ser conhecidas, não dogmaticamente, mas criticamente.

Monumento a Kant (1724-1804)
em Königsberg, sua cidade natal
A razão é instruída pela natureza, mas não de modo passivo, não na qualidade de um aluno que se deixa ditar tudo o que o professor quer, mas sim na de um juiz que obriga as testemunhas a responder às perguntas que lhes propõe.

É preciso dotar a Metafísica de um método seguro, método esse que revolucionou a concepção de conhecimento: ao invés de os objetos penetrarem passivamente na mente, o inverso: os objetos são regulados pelo entendimento do sujeito de conhecimento, que estabeleceria algo a priori sobre os objetos. E isso se dá por meio de uma faculdade capaz de apreender o que é dado à experiência e que, portanto, se encontra no tempo e no espaço. Assim, para Kant o conhecimento é ativo e não pura apreensão passiva da mente, como se esta fosse uma página em branco na qual são impressas as qualidades sensíveis dos objetos, como proposto por Locke.

A metafísica pré-kantiana sustentava que a realidade em si mesma pode ser conhecida, inclusive suas causas, como o primeiro motor de Aristóteles.

Para Kant, ao contrário, não se tem acesso à realidade tal como ela é em si mesma, pois são necessários recursos, as chamadas categorias que são propriedades de nosso entendimento sempre que ele representa a realidade. O ser em si mesmo é incondicionado, ora, quando a realidade é acessada pelo sujeito, passa a ser condicionada. Quer dizer, os fenômenos se regulam pelo nosso modo de representá-los.

A consequência mais interessante dessa revolucionária concepção de metafísica é dar todo poder à razão humana, é ela que dá a si mesma os limites e as possibilidades de conhecer não só o real, mas também os próprios recursos da razão. Ou seja, a razão se autoconhece.

Os limites da razão pura são os limites da experiência, ir além da sensibilidade é algo impossível para ela. Apenas pela moralidade, pela eticidade se justifica existir Deus e uma alma imortal.

A razão especulativa não tem como chegar a Deus, liberdade e imortalidade da alma, pois para chegar a essas “visões transcendentes” precisa empregar princípios, e os princípios dependem da experiência. Com isso Kant elimina o dogmatismo metafísico, e se atém ao que a razão alcança e ao que a experiência fornece. Questões de fé pertencem ao terreno prático, da moral.

Muito poucos até hoje aprenderam essa lição de sabedoria!

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* INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e doutora em Estudos Linguísticos. É professora aposentada da UFPR e PUCPR.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

NA RIBEIRA DESTE RIO...


Na ribeira deste rio
Ou na ribeira daquele
Passam meus dias a fio.
Nada me impede, me impele,
Me dá calor ou dá frio.

Vou vendo o que o rio faz
Quando o rio não faz nada.
Vejo os rastros que ele traz,
Numa sequência arrastada,
Do que ficou para trás.

Vou vendo e vou meditando,
Não bem no rio que passa
Mas só no que estou pensando,
Porque o bem dele é que faça
Eu não ver que vai passando.

Vou na ribeira do rio
Que está aqui ou ali,
E do seu curso me fio,
Porque, se o vi ou não vi,
Ele passa e eu confio.


Fernando Pessoa
2-10-1933

***

PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
Foto: Eduardo Duarte p/ Agência de Notícias do Acre

sábado, 28 de janeiro de 2012

BRAZIL ACREANO

José Augusto de Castro e Costa*


Acabo de ler uma verdadeira obra-prima, em termos de Acre, do escritor amazonense Antônio José Loureiro. O livro é interessante por tratar de fatos ocorridos logo após a Revolução Acreana, com vista aos efeitos do decreto do governo brasileiro que organizou o território recém-anexado, em três departamentos autônomos.

O título Brazil Acreano, na verdade, é a denominação de um jornal de Sena Madureira, principal cidade do Departamento do Alto Purus que, definia-se como “órgão independente, sem peias de partido, conservador, representante do comércio, da indústria e da agricultura”. Juntando-o aos periódicos Alto Purus e Estado do Acre, percebemos que Sena Madureira, nos primórdios de sua existência, possuía três jornais que documentaram fatos ocorridos entre 1909 e 1918, em seu Departamento, quando, além do declínio da borracha, a região viveu momentos dramáticos de lutas pela criação de um Estado do Acre autônomo, dentro da Federação brasileira.

As fontes pesquisadas para a elaboração da obra foram exatamente as edições dos três jornais, de onde o autor recolheu anúncios, noticiários, vida associativa, diversões, prendas, feminismo e aspectos médicos e sociais de Sena Madureira, além de dados estatísticos referentes aos imigrantes brasileiros e estrangeiros e as populações masculinas e femininas e ainda as representações das diversas profissões ali existentes.

No capítulo sobre o feminismo o autor destaca notas de um articulista do Brazil Acreano, manifestando-se jocosamente sobre o assunto, conforme se lê: “Já não mais lhes agrada falar no vestido de seda, com que devem ir ao baile; já não lhes trás encantos o chapéu de finíssimos enfeites, com que aos domingos saem a passeio; só lhes apetece dizer que o poder marital é uma tirania; que as leis são exclusivistas e odiosas. Já usam o fraque, o jaquetão, montam bicicleta, dirigem automóveis, lêem os romances realistas de Julio Ribeiro e de Aluizio Azevedo, enfim mil cousas, que as tornam mais e mais homens, à medida que os homens vão se tornando mais e mais mulheres“.
Vagonete Apurinã – Rua Iaco
Foto: Blog de Sena
Vagonete Aruaque – Rua Macapá
Foto: Blog de Sena
Plantada no centro da selva, a milhares de quilômetros das grandes metrópoles, Sena Madureira, há cem anos, possuía uma linha de bondes à tração animal. O novo transporte funcionava das 6 da manhã até as 19 horas, pelo preço de 300 réis a passagem, no trajeto da Praça 25 de Setembro ao Bosque.

Manuel Passos Galvão, dentista e diretor do Jornal Alto Purus, foi o idealizador desse empreendimento, pomposamente denominado de Purus Ferro-Carril. Anos depois, Dr. Galvão transferiu-se para Rio Branco, indo residir à antiga Rua da África, próximo ao bar do Joaquim Pinto, onde, já em nossa juventude, Sálvio, Nego da Izaura, João KaraOlho e Otacílio desafiavam, na sinuca, duplas do Primeiro Distrito.

Sena Madureira da época adotava a música como complemento indispensável a todas as reuniões, animadas por orquestra composta de piano, violinos, bandolins e flautas.

A vida associativa da cidade, por volta de 1909, era bastante ativa, onde se destacavam a Igreja Católica, Igreja Batista, Loja Maçônica Fraternidade e Trabalho, Sociedade Protetora Familiar, Sociedade Beneficente Cearense, Centro Pernambucano do Alto Purus, Grêmio Recreativo Nova Olinda e Associação Comercial do Alto Purus. Já em 1917 havia cinco times de futebol: Team dos Onze, Alto Purus Club, Club Familiar, Club Floresta e o Ideal Club, unindo a família puruense.

O autor da obra é amazonense, filho de uma escritora acreana radicada há muitos anos em Manaus, e neto de uma das principais figuras da História de Sena Madureira – magistrado Antonio Pinto do Areal Souto, que dirigiu os jornais Gazeta do Purus e O Brazil Acreano.

O escritor nos põe em contato com membros de famílias ilustres com as quais lidamos nos dias atuais, como Alencar Araripe, Flaviano Flavio Batista, Areal Souto, Custódio Freire, José Daou, Dr. Galvão e outros, que se dedicaram de corpo e alma para o progresso de Sena Madureira e do Acre em geral, salientando-se o Dr. Flávio Batista, literalmente o número (1) da OAB nacional.

A partir de 1918, com o desaparecimento do jornal O Alto Purus, dois novos periódicos surgiram: O Jornal e a Gazeta do Purus. Todos os jornais aqui citados pertencem ao acervo do Instituo Geográfico e Histórico do Estado do Amazonas.

A razão que levou o jornal Brazil Acreano a ter em sua denominação a inserção do “z“ no lugar do “s“, ainda permanece no campo das suposições. Porém, do que não se tem dúvidas é quanto à localização dos documentos (jornais) aos quais recorreu o autor de Brazil Acreano – Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. O Acre poderia e deveria possuir, também, seu Instituto que acomodasse seu cabedal de informações geográficas e históricas.

É justo e natural que um estado guarde referências de outrem que integre sua história. Mas, que o seja em forma de cópias, microfilmagens ou outros recursos tecnológicos, cabendo os originais aos estados de origem.

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* José Augusto de Castro e Costa é poeta e cronista acreano.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

MAR ACREANO* - Clodomir Monteiro


Acre eldorado quanto ver teu leite
lágrimas tronco de ti exploraram
por te buscarem quantas mães choraram
quantos em vão por teus filhos rezaram
e sem amor tantas noivas casaram
para fundar aqui seu novo lar
Deus ao Acre perigo abismo deu

valeu a pena sempre amar e ser
um povo que não tem alma pequena

por te acharem tanto se perderam
que puras noivas ao credor verteram
e barracão dador fez aviar
puro que apuras salgue bem de saldo
quem quer passar além de Bojador

navegue pena sempre vale Acre
por Juruá Purus Tarauacá

ancore abismo defume deleite
mar de Iracema nau de Acreano



* Poema Intertexto e paródia de Mar Português, In Mensagem (1934) de Fernando Pessoa, no caso apud http://fredbar.sites.uol.com.br/camoint.html
“Ó mar salgado, quanto do teu sal...".
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CLODOMIR MONTEIRO - Escritor e professor da Universidade Federal do Acre, pertenceu a vários movimentos poéticos de vanguarda, em especial ao "Instauração Praxis". Trabalhos em revistas, jornais e antologias no Brasil e exterior. Publicou, entre outros, Derroteiro de Rotinas, A Sinuca da Olaria e Costura Geral Sob Medida. Formado em Teologia, Filosofia, Letras e Direito, com pós-graduações em Antropologia e Cultura Brasileira, doutor em Antropologia. Presidente da Academia Acreana de Letras.
** Poema inédito.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

UMA DOCE COBIÇA

José Augusto de Castro e Costa*


Ainda no final do século XIX o Acre, por ser um dos maiores produtores de borracha, este combustível torrificante, responsável pelo robustecimento financeiro do orçamento da República brasileira, leva a Amazônia inteira a experimentar dias de grande prosperidade econômica. Muitas pessoas não se contentavam apenas com a vida luxuosa e oferecida por Manaus e Belém, as capitais da "belle époque" brasileira e embrenhavam-se rios acima em busca do látex oriundo do Acre. Ali estavam os mais produtivos seringais e, consequentemente, os mais abastados seringalistas da região. Era esse paraíso econômico que atraia e seduzia muitos espíritos aventureiros dispostos a explorá-lo ou simplesmente conhecê-lo, caso em que se encontravam jovens profissionais liberais da época, tais como guardas-livros (contabilistas), professores, advogados, odontólogos e médicos.

Esses jovens chegavam ao Acre embevecidos por inexplicável atrativo e, não raras vezes, eram levados a constituir famílias quando não as possuíam, ou mandavam buscá-las depois de um certo tempo de adaptação. Houve até caso de alguém ter sido surpreendido com a inesperada chegada da esposa com a filharada – providência tomada por algum compadre comandante de gaiolas ou chatinhas.

Dr. Esperidião de Queiroz Lima
Foto.: Álbum do Rio Acre 1906-1907
A maioria ao Acre chegou, viu e ao torrão acreano se dedicou de corpo e alma. A esses a admiração e respeito muito são-lhes devidos. Este ensaio dirige-se aos médicos que se lançaram dos mais distantes rincões para regar com suor, sangue e lágrimas o solo acreano. Arí Rodrigues, Adib Elias, Manoel Marinho Monte, José Nabuco de Oliveira, Wagner Brasiliense Euleutério, Júlio Alves Portela, Barral Y Barral, Laélia Gonçalves, Gilson Moreira, Tetsuo Kawada, Augusto Hidalgo de Lima, Carlos Afonso, José Amorim, Maia Barbosa, são nomes que sempre serão lembrados pela abnegação e dedicação a outrem. A estes, extensivas a seus colegas atuais, que por certo serão incluídos na lista dos bem lembrados, as nossas homenagens contidas na história de um médico que pelo Acre passou, muito antes dos aqui mencionados: ESPERIDIÃO DE QUEIROZ LIMA.

Logo após sua formatura no Rio de Janeiro, onde vivera oito anos estudando, ainda em 1904, Dr. Espiridião, cearense de Baturité, depois de visitar sua familia na cidade natal, resolve realizar seu desejo de conhecer o Amazonas e Acre, que tanto seduziam seu espírito aventuroso.

Em Manaus, em parceria com um companheiro de tempos escolares, abriu consultório médico próximo a uma Farmácia e em seguida foi nomeado Inspetor do Serviço Sanitário, onde permaneceu durante algum tempo.

No entanto, continuava empolgado pelo espírito de aventura e, não adaptando-se à tórrida e férvida cidade de Manaus, resolveu ir clinicar no Território do Acre, que o fascinava, como em geral aos audaciosos cearenses que o haviam descoberto e conquistado.

Aparelhou-se convenientemente para o almejado empreendimento com microscópio, um pequeno laboratório para exames de sangue e de fezes, uma Monografia britânica "Culicidae" de Theobald do Museu Britânico, um grande ambulatório com remédios apropriados, muito quinino e ampolas para injeção.

Aparentemente bem munido, com roupas leves e mosquiteiros de rede, embarcou para o Acre, seguindo contente seu destino, levando grandiosos projetos de estudos e pesquisas.

Decidido a viver realmente no Território do Acre, resolveu tomar uma embarcação que, nas primeiras águas, subiria os rios Purus, Acre até Xapurí esperando, assim, conhecer a área e escolher a sua localização.

Observou as circunstâncias de navegabilidade dos rios e o cotidiano da viagem como o atracamento em vários portos para receber carvão e lenha e a luta contra os piuns, de dia e as carapanãs, ao escurecer.

Notou e percebeu que o Acre parecia ter sido desenhado pela natureza, "no imenso painel de terra firme coberta de floresta". E no Acre fixou-se o Dr. Esperidião, primeiro morando em Xapurí mudando-se, posteriormente, para a Empresa, onde presenciou ambiente de bajulação, de falsidade e de intrigas formado em torno das autoridades federais, destacando-se competição de proveitos e interesses. Levava a vida medicando pelos seringais, como Capatará, Remanso, Santa Flora, Itú.

Com a afluência de novos elementos e a fundação de jornais e de lojas maçônicas, intensificaram-se as competições políticas e rivalidades sociais. Já radicalizado na área, Dr. Esperidião viu-se envolvido, por influência do meio ou por simples companheirismo. Tanto que, em certa ocasião, foi publicado num jornal adverso uma quadrinha de pé quebrado, traçando seu perfil:

"É um ilustre esculápio,
Mas quando a raiva o ataca
Ou dá sopapos no ar
Ou murro em ponta de faca".

Em fevereiro de 1908, Dr. Espiridião vai à sua terra natal selar o compromisso de casamento com sua prima. Em agosto, recebe a noticia da morte de Plácido de Castro, com quem mantinha relacionamento de amizade. "Sabia que Plácido de Castro rompera com Alexandrino José da Silva, que se colocara ao lado do prefeito Gabino Bezouro, que vivia apavorado com o prestígio do grande chefe acreano".

Seu regresso ao Acre deu-se em 1909 e é digno de nota. Procurando prever e prover as maiores necessidades de seu estabelecimento no Acre, resolveu levar seu "cavalo Tuxaua com seus arreios, uma vaca boa de leite, um grajaú de galinhas, um caixão telado de roseiras, e sementes de flores, frutas e verduras, e pessoal para todo o serviço. A mobília foi desmontada e arrumada dentro de um grande caixão, feito de boas tábuas de cedro, que seriam transformadas em mesas e estantes. A louça e trens de cozinha encheriam grandes barricas caprichosamente embaladas. Baús de livros, malas e roupas e pequenos objetos e sacos de viagem, completariam a grande bagagem, uma verdadeira mudança." De pessoal levou cozinheira, uma menina para servir de babá, um casal para cuidar da horta e lavagem de roupa, um tratador de animais e um carpinteiro.

Dr. Esperidião encontrou um Acre já diferente. Tinha de viajar frequentemente, de canoa ou a cavalo, para atender aos chamados dos seringais, pernoitando às vezes fora de casa. Havia como único vizinho, do outro lado do rio, o quartel da Companhia Regional, cujos oficiais o mantinham sob suspeita e vigilância, não obstante as relações de cortesia. Com o pretexto de tratar-se de militares, sua família era intimidada com gritos de alerta contra um imaginário ataque, sabendo-se que a metralhadora apontada para sua residência poderia disparar a qualquer momento, e outras intrigas diversas. Eram feitos treinamentos de tiros contra a praia de sua casa, frequentemente.

Com o assassinato de Plácido de Castro, deu-se a fuga de seus amigos mais chegados, pois muitos foram intimados a deixar o Acre, sob pena de morte. Dr. Esperidião continuava sua vida de consultas e tratamento na Empresa e nos seringais, tendo vivenciado "in loco" toda a opressão no Acre, a revolução no Juruá, os atentados inomináveis, a demonstração de força. Da viagem que fez para Sena Madureira guarda vivas lembranças.
Dr. Esperidião no Palácio do Catete recebendo do presidente Juscelino Kubitschek
o Título de Inscrição no Livro do Mérito Científico.
Foto: Blog O Sítio São Luis e a Serra de Baturité
Em suma, o que mais o jovem médico cobiçava, não era a ambição desmedida de riqueza, não era o desejo sôfrego de possuir bens materiais, mas viver em contato direto com a natureza propriamente dita, empregando seus conhecimentos profissionais para fazer o bem sem olhar a quem. Precisamente a 4 de setembro de 1911, Dr. Esperidião de Queiroz, sem vislumbrar perspectivas favoráveis no horizonte dada a turbulência política, acompanhado de toda a família, empregados e a incontável bagagem, deixa o Acre, numa viagem de mudança definitiva, a bordo de um batelão a varejão, construído com a madeira que antes integrara a construção de sua casa na Empresa – Rio Branco.

Ainda fascinado pelo ambiente amazônico, radicou-se no Amapá, onde prosseguiu prestando inestimáveis serviços de natureza médica, científica e assistencial.

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NOTA.: Esperidião de Queiroz Lima nasceu na fazenda Califórnia em Quixadá (Ceará), no dia 31 de outubro de 1880. Era o quarto filho do Dr. Arcelino de Queiroz Lima e de dona Rachel de Queiroz Lima. Formou-se em Medicina aos 23 anos de idade, pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Era casado com Maria de Jesus Marinho de Goes (que adotou o nome de casada: Maria de Goes e Queiroz Lima), Tia Mariinha, irmã de meu avô José Marinho Falcão de Goes. Médico, cientista, historiador, poeta e escritor, clinicou por longo tempo em Manaus e no Território do Acre, realizando estudos científicos que lhe valeram a nomeação como Médico do Serviço de Indústria Pastoril, do Ministério da Agricultura, no Pará, de onde foi transferido seguidamente para: Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, São Paulo, Mato Grosso e Santa Catarina. Deixou inéditos alguns trabalhos de grande importância e de repercussão mundial. Faleceu no Rio de Janeiro aos 86 anos, no dia 1° de janeiro de 1967. (Informações de Claudia Maria Mattos Brito de Goes). Esperidião também era tio da escritora brasileira Rachel de Queiroz.

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*José Augusto de Castro e Costa é poeta e cronista acreano.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

CANTOS DO SERINGAL - Isaac Melo

                                                       O meu caleidoscópio é o pensamento,
                                                       que imagens do Acre forma em minha mente:
                                                        é o rio que dobra um porto lamacento...
                                                        é o barranco... é a floresta... é a minha gente...
                                                                                                  Océlio de Medeiros
Foto: Sérgio Vale
Agência de Notícias do Acre

Dias há em que desperto com as lembranças do seringal. A verdade é que me apetecem as recordações da floresta. Não por um saudosismo melancólico. Seringal não é um espaço bucólico no estilo das pastorais virgilianas. Seringal é dureza, é luta, é esforço... No entanto, seringal é encanto, é beleza, é harmonia...

Nove anos vivi num seringal. O seringal Sumaré, no rio Tarauacá. Impressões de um tempo que ainda me impressionam, e o tempo não apaga. Não carrego memórias na cabeça. Minhas memórias habitam o meu peito. Não preciso fazer força para pari-las. Elas surgem e escorrem tranquilas como as águas de um igarapé quando é chegado o verão.

Uma paisagem, um barulho, um cheiro basta para me transportar às reminiscências do seringal. A mata vislumbrada do alto dá uma impressão de monotonia. É preciso descer, percorrê-la, habitá-la. Então a mata se desdobra numa miscelânea de cores, cantos, aromas, formas, tamanhos... A mata inebriante desperta a sobriedade dos sentidos.

Foto: Sérgio Vale
Agência de Notícias do Acre
Enquanto o céu derrama-se em pétalas douradas por sobre as majestosas copas de samaumeiras, cumarus, seringueiras, no anfiteatro da selva silenciosa mil vozes ecoam numa sinfonia perfeita. Tal polifonia de cantares é harmonia, é sincronia de tudo o que há. Nada é fora do seu tom, do seu ritmo, da sua poesia... Ali só a ganância humana é anomalia.

A selva quanto mais selvagem mais fascínio me causava. Por ela nunca sentir pavor, embora me apavorassem as histórias contadas sobre os seres fantásticos que a habitavam: mapinguari, visagem, caipora... Um medo, porém, reconheço, o de atravessar matas de igapós, medo dos estrambóticos e fatais poraquês. Ou das cobras peçonhentas. Minhas duas ressalvas.

Como o mais novo de casa, gostava de acompanhar meus irmãos nas caçadas, nas pescarias, nas estradas de borracha, nas andanças pela mata. Meus sentidos ficavam despertos para tudo o que não me era comum. Novas sensações para um corpo que desconhecia as extravagâncias da civilização. Minha civilização era o que sentia, via, degustava, apalpava ou sonhava.

O que se esconde nos olhos de um menino de seringal? Escondem-se as manhãs em que o sol, despontando vagaroso lá na curva do rio, vem trazer a aurora no cantar de um bem-te-vi; escondem-se o voo das andorinhas que, à tardezinha, enfeitavam o céu, levemente retocado de azul, indo pousarem sobre a galharia de uma velha árvore arrastada pelo rio.

À frente de casa passava o rio. O rio de tantos repiquetes com seus balseiros a descer, e que tanto mexiam com meu imaginário infantil. No verão, as águas sumiam e as praias surgiam com suas areias tão alvinhas. Aí viviam os tetéus e os maçaricos que eu costumava perseguir a força de baladeiras e reboladas em dias de peraltices.

Foto: Sérgio Vale
Agência de Notícias do Acre
Ao fundo de casa, antes de atingir a mata, ficava o igapó, onde abundavam os aguapés e as vitórias-régias. Aí também estava assentada a tábua onde mamãe lavava a roupa, sobretudo no tempo do inverno, quando as águas dos rios eram ainda mais barrentas. No igapó encontravam-se as jaçanãs, com um cantar fino e belo.

Bonito de ver eram as noites de verão. A noite, como um manto pontilhado de diamantes reluzentes, se estendia sobre nós. Uma lua enorme adornava de prata os campos, as matas, o rio. Nem Van Gogh com sua A Noite Estrelada seria capaz de dar uma noção daquele espetáculo tão natural que chegava a ser sobrenatural. A noite desperta outros cantos.

Meu irmão chamava-o sapo canoeiro. Era o kampu. Um anuro pequeno, mas quando coaxava se agigantava, pois tão imponente ressoava o seu cantar. Produz uma substância que pode ser fatal, embora os seringueiros e ribeirinhos o aplicassem, em justa medida, para retirar panema e atrair a sorte. Herança da sabedoria dos povos indígenas.

Dos barrancos quem dava o tom era o Bacurau. Pássaro de perfeita camuflagem. Pipilo um pouco nostágico, não tanto como o da Mãe-da-lua, outro mestre da camuflagem. Seu canto penetrante e melódico invadia a noite e me despertava sensações estranhas. Pobres de nós que transferimos às aves as impressões do nosso próprio coração.

E o que dizer da Acauã? Reza a lenda que seu canto é agourento. Prenúncio de morte ou desgraça. Quando entoava seu piar mamãe, na sua piedosidade cristã supersticiosa, logo exclamava: “Deus conjuro, condenada!”. Apesar de nossa ingratidão, a avezinha persistia em ofertar o seu singelo cantar, às vezes logo ao amanhecer, outras ao apontar da noite.

O Cancão também tinha um canto forte, estridente, como é próprio das aves falconiformes. Dizem que ele costumava acompanhar os temíveis bandos de queixadas. Daí meu receio. Os anus-corocas, que a gente chamava de arigó, costumavam fazer algazarras às margens dos rios e saiam voando e fazendo ecoar seu canto rouco com o aproximar das canoas.

Nossa casa parecia se enamorar do rio à sua frente, com seus dois olhinhos a mirá-lo de cima do barranco. Casa coberta de palha de jaci ou ouricuri. Soalho de paxiúba. Paredes de paxuibinha. À sua frente um trapiche. Trapiche de onde acompanhava as exibições cinematográficas projetadas na grande tela por sobre a selva.

Sentado à ponta do trapiche, enquanto o sol começava a ser engolido pela boca da noite, ficava a admirar o casal de papagaios em seu voo curto e deselegante, o bando de garças, as maracanãs chilreantes, as graúnas, os japós... Do aceiro da mata vinha o canto dos nambus. Por entre as palhas, nesgas de fumaças iam mesclar-se à bruma lá fora.

Foto: Angela Peres
Agência de Notícias do Acre
Poucas vezes vi o espetáculo de um barreiro, isto é, um depósito natural, às vezes às margens de um igarapé, rico em salitre, aonde inúmeros animais vêm comer. Chilreios ensurdecedores de centenas de periquitos num vai e vem incessante. Mas a mata tem o som ímpar, para mim, do Corrupião. Toda vez que o ouço gorjear minha alma volta a fundir-se à floresta.

A mata me viu nascer, crescer, voar. Por isso ficou impresso na alma um naco de cada canto: do cicio da cigarra ao brado do guariba. A selva de pedra nunca sufocara a selva das minhas reminiscências... Ainda ouço o chiado das folhas secas no caminhar dos varadouros... Ainda trago nos olhos uma noite florida de estrelas, onde a lua desabrocha em pétalas prateadas.

A floresta nunca foi o inferno. Nem o paraíso. A selva é o que a selva é. Selvagem. Há encantos e artimanhas. Não é amiga. Nem inimiga. É generosa. Abundante. E pode ser cruel. Mas não há maldade. Há a vida. E tudo o mais gira em seu entorno. A floresta me faz esteta. Não romântico. E quem me dera ter alma de poeta, pois “que triste não saber florir”.

domingo, 15 de janeiro de 2012

ORDEM é PROGRESSO

José Augusto de Castro e Costa


Minha mãe costumava falar que houvera um grande equívoco quanto ao lema expresso em nosso símbolo nacional – figurava a conjunção ao invés da terceira pessoa do verbo de ligação na citação Ordem e Progresso. De minha parte não chego a considerar um equívoco, mas um lapso por não se fazer ali constar mais um lema, aí, sim, figurando a frase com o verbo. Os dois vocábulos constituem-se, na verdade, em dois elementos indispensáveis para a vida em sociedade, pois ao que se percebe, a ordem é inerente ao progresso.

Nota-se que nosso país, em seus 511 anos, não obstante ser ainda relativamente jovem, já deveria estar em um grau de desenvolvimento mais elevado, não fosse à ausência de ordem em alguns setores, além de residir outro hábito: acompanhar erros e desmazelos de outrem em detrimento da correção e/ ou prevenção dos seus próprios erros. Porém, ressalte-se que tal procedimento não é exclusividade do povo brasileiro.

No Brasil chega-se à tradição de obras monumentais, que muitas vezes percorrem rumos incertos e licitações com orçamentos vultosos, reacendendo históricas polêmicas como a Transamazônica, a Transnordestina e a transposição do rio São Francisco, entre outras, cuja última, as estimativas chegam a R$ 4,5 bilhões, além de tramitar no STF quatorze ações contra a transposição devido ao impacto sobre o ecossistema.

Quanto ao Acre, a situação geográfica revela um sensível agravante. Desde seus primórdios suas administrações têm considerado erro palmar dar-lhe gerência homogênea para toda a área. É que se espraiam em sua vasta calota, dois vales distintos, não somente sob o aspecto hidrográfico, como ainda na contextura geoeconômica: Purus e Juruá, orientando-se em paralelo com o prolongamento através do Estado do Amazonas em busca da calha mater, o lendário Rio Mar. Daí, razão pela quais antigos governantes e muitos políticos reivindicavam autonomia e até desmembramento do Acre em dois territórios. Na verdade, a formação hidrográfica do Purus e Juruá não possibilita qualquer ligação entre ambos, de vez que correm no mesmo sentido, com mais freqüência de sudoeste para nordeste, num paralelismo que impede o aproveitamento de cada curso até suas cabeceiras para, dessas nascentes, floresta adentro, atingir-se a outra bacia.

A própria hileia é diversificada de um vale para o outro, tanto assim que na região do Purus e Acre, a castanha tem abundância preponderante na selva, quando no Juruá é visível a inexistência desse produto. Situando-se em Rio Branco, a capital do estado, fica bastante difícil a supervisão homogênea, sem o recurso da via aérea. Por via fluvial ter-se-ia que descer até o rio Solimões, no Amazonas, subir a calha amazônica para, depois de mais de dois meses, penetrar no rio Juruá, se houvesse condições de navegabilidade nos rios acreanos. Para a integração do estado a solução sempre esteve em rodovias, cuja trafegabilidade e durabilidade dependerão da construção e conservação que resistam às intempéries do tempo. Em regiões da Amazônia, no período invernoso, a grande quantidade de água, muitas vezes, costuma devastar parte das estradas. Para mantê-las em boas condições, precisa-se de planejamento e cuidados constantes dedicados a recuperação das mesmas.
BR-364 trecho entre Sena Madureira e Manoel Urbano
 Foto: Sérgio Valle para a Agência de Notícias do Acre.
O mais difícil para a devida integração do Acre, em termos de rodovias, já está alcançado: a BR-364 ligando seus municípios e às demais regiões brasileiras e a BR-317 ao Pacífico. Não se pode vacilar, como disse antes, é quanto à respectiva manutenção. Rodovias interestaduais e estaduais constituem-se sempre em prioridade a gerar extensão de benefícios, ressaltando-se o exercício da ordem. Sem esta, continua-se a assistir a execução de projetos de lideres visionários, transformados em verdadeiros fiascos.

O Acre, devido à visibilidade positiva que vem conquistando na questão ambiental gerará muitos frutos para o Brasil, inserindo-o cada vez mais no plano nacional e internacional com respeitabilidade, conquistas que devem ser preservadas. O reconhecimento da maneira singular de ser de seu povo, a forma de pensar o desenvolvimento considerando o potencial econômico do estado, o respeito aos povos tradicionais - indígenas, seringueiros, ribeirinhos, além dos pequenos agricultores, moradores das cidades e vilas aliados à proposta de industrialização do governo, todos trabalhando com objetivo comum, sem explorações e vivendo pacificamente, encontrarão na ordem uma grande parceira para um progresso sustentável.

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* José Augusto de Castro e Costa é acreano, natural de Rio Branco. Reside em Brasília, e trabalha no Senado Federal, lotado no Instituto Legislativo Brasileiro – ILB.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

MIOLO DE POTE

MARCOS VINÍCIUS NEVES é um grande historiador acreano, o qual muito inspira este nosso modesto espaço. Recomendamos a leitura de seu blog. E agradecemos o seu trabalho que muito nos honra.

DUAS VEZES CEM MIOLOS
Marcos Vinícius Neves

Foi no 12º ano de existência do jornal Página 20, em um domingo, 12 de novembro de 2006, que estreei a coluna Miolo de Pote. E numa dessas coincidências do destino, o artigo numero 200 desta coluna não coincidiu com o aniversário de cinco anos da coluna. Fazer o que? Nem tudo é perfeito nessa vida, mas decidi registrar o fato mesmo assim. Já que pra mim, de todo jeito, esta é uma marca inédita.

Quando comecei essa brincadeira de Miolo de Pote não podia imaginar que ela iria tão longe... Mas como, logo de início, peguei a mania de numerar os arquivos acabei prestando atenção ao acumulo de artigos até chegar, hoje, ao numero 200.

O que significa isso? Absolutamente nada, eu sei...

Porém, como os homens, desde o início dos tempos, gostam de calendários e gostam ainda mais de números redondos, não se pode estranhar, humano que sou, esse meu desejo de também considerar o artigo de numero 200 algo especial, como se fosse o próprio dia do fim do mundo...

Na verdade, este artigo é apenas uma oportunidade autoconcedida de pensar o que tem sido essa brincadeira séria chamada “coluna Miolo de Pote”.

Já contei aqui que o nome da coluna foi generosamente sugerido pelo Toinho Alves. Por mim o nome seria algo como “Botija de Histórias”, numa referencia à lendária botija de ouro (às vezes revelada pela misteriosa mãe do ouro) que encantava os seringueiros nos seringais de tempos idos. Mas, como bom tituleiro que o Toinho sempre foi, perguntei sua opinião... E ele me saiu com essa: porque não Miolo de Pote, já que não tem nada mais tradicional no Acre do que conversar miolo de pote numa sombra ou varanda qualquer?

De imediato gostei da idéia de tratar de coisas do interior das coisas e, ao mesmo tempo, ser tão despretensioso e descontraído quanto um bom papo furado. Era bem o que eu queria... e assim ficou sendo. Afinal, admitir a própria desimportância pode ser uma poderosa vacina contra os erros da prepotência, tão recorrente neste dias loucos em que vivemos...

Também já revelei aqui, em diferentes ocasiões, meus motivos pra ter essa coluna. Anteriormente eu havia escrito em outros jornais ou revistas, assinando colunas e/ou artigos, em caráter temporário ou permanente, e, em todas as vezes, foi uma experiência muito prazerosa. Até porque quem gosta de ler, quase sempre também gosta de escrever.

Mas, quem escreve sabe que, ao longo da vida, esse prazer, que no início parece tão inocente, vai se tornando uma necessidade, uma compulsão tão irresistível quanto respirar. Assim, confesso, escrevo porque preciso.

Além disso, conhecer a história do Acre se tornou outro vício incurável. Quanto mais leio, ouço, aprendo, maior minha vontade de contar os acontecidos desse mundo imaginário chamado Acre. Se não, aprender pra que?

E tem também as encrencas em que sempre me meto, porque simplesmente não consigo ficar quieto ao ver a história acreana sendo tratada com desonestidade. Em uma de suas geniais musicas Renato Russo disse que o mal do século é a solidão. Pois eu discordo, acho que o mal deste século e também dos passados é a vaidade. O que os homens são capazes de fazer em prol de seus próprios egos é inacreditável. Seja uma pesquisa mal feita aqui, uma coleção de documentos roubados ali, seja um sutil contrabando de material arqueológico acolá. Assim, acabei me tornando um seguidor da história-combate proposta por Marc Bloch no tempo dos Annales. Ainda que isso, às vezes, me custe caro. Fazer o que?! Como diz o outro são os “ossos do ofício”.

Finalmente, mas não menos importante, tem ainda meu apego ao que sai impresso em papel nestes tempos estranhos de internet. Desconfio que 99% do que sai na rede não vai sobreviver mais do que dez anos. É tudo muito virtual pra ser real por muito tempo. Vai que o sol decide embrabecer, provoque uma tempestade magnética e apague todos os discos rígidos do planeta... lascou-se...

Sou historiador e minha matéria-prima é o que sobrevive ao tempo. Além do que, não há nesta vida prazer comparável a encontrar aquele velho livro imprescindível para a atual pesquisa, ou a matéria de jornal que explica o que você nem desconfiava, ou ainda o documento amarelado perdido entre trocentos outros documentos onde se prova o que poderia parecer completamente improvável. Ou seja, acredito ser fundamental publicar num jornal impresso de verdade... talvez, assim, esses artigos sobrevivam para além de mim...

Só pra variar e permanecer fiel ao hábito que toda semana me atormenta na hora de fazer o artigo, acabei escrevendo demais e ainda não falei nem metade do que queria e nem lembrei de um terço das pessoas que queria agradecer... o jeito é, de novo, deixar pra próxima...

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

BREVE MEMORIAL DO ACRE

José Augusto de Castro e Costa*


Denomino-me Estado do Acre, sou parte integrante da República do Brasil, exerço em meu território os poderes decorrentes de minha autonomia e regulo-me por minha própria Constituição.

Meus limites são definidos no Tratado de Petrópolis de 17.11.1903, no Tratado do Rio de Janeiro de 1909 e reconhecidos no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal.

O processo que me integrou ao Brasil é, verdadeiramente, um dos mais sugestivos ocorridos neste continente. Pensavam transformar-me em colônia, da mesma forma que a Ásia e a África, não fosse a firmeza e tino político de Assis Brasil, ministro brasileiro em Washington, em não aceitar veementemente o "Bolivian Syndicate". Aliás, devo salientar, que todas as questões de fronteiras que o Brasil sustentou com seus vizinhos foram limpas - por isso é que as venceu com dignidade.

Para conquistar-me os brasileiros travaram uma verdadeira odisseia contra os bolivianos. É bem verdade que estes vizinhos enfrentaram capítulos mais dramáticos da História Sul Americana que os brasileiros. Sacrifício, estoicismo, desgraça... marcaram, em grau elevado, as expedições militares saídas de La Paz. E não foi somente a guerra a causadora de tantos males. O impaludismo, as disenterias e o beribéri também fizeram muitas vítimas. Os brasileiros de igual modo sofreram muito os efeitos letais da região nova e agressivamente selvagem. O diferencial residia em lutar na sua própria casa, já adaptados às implacáveis condições do meio-ambiente.

Como por dádiva, sou significativo exemplo da unidade que orientou a formação social do Brasil, isto talvez pela afluência de amazonenses, cearenses, pernambucanos, gaúchos, sírios e libaneses que a mim acorreram. Não obstante as distâncias imensas do sul e ainda ser vizinho de peruanos e bolivianos, mantenho-me integralmente brasileiro na língua, nos costumes e nos sentimentos. Todas as populações que para mim se dirigiram permaneceram brasileiríssimas.

Logo após conquistar-me, o governo brasileiro organizou-me em três Departamentos Autônomos: Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá.

Encerrada a odisseia da conquista e consequentemente após ingressar-me em vida nova, o Cel. Plácido de Castro, meu conquistador, viajou a capital da República, objetivando prestar contas de seus atos enquanto Governador do Acre Medidional, passando às mãos do estadista que promovera a paz e alargara as fronteiras físicas da Nação, Barão de Rio Branco, o relatório referente ao seu governo, durante a vigência do "modus vivendi".

Ao final da segunda década do século XX, as revoltas, as lutas por autonomia e até muitos desmandos, intrigas, perseguições, atentados e assassinatos atingiram níveis absurdamente acentuados em todas as prefeituras acreanas. Servindo-se da Reforma Política de 1920, tais repartições foram unificadas, tendo sido escolhida a cidade de Rio Branco (antiga Empresa) para sediar a minha capital.

Minha História é uma das mais bonitas e tenho sentido orgulho de muitos filhos que têm-se destacado e elevado meu nome. A propósito, percebo que há um traço de psicologia social que caracteriza alguns filhos meus: são um tanto quanto esquecidos - displicentes. Quero dizer que meus maiores filhos e benfeitores mortos têm suas ações heroicas e lucubrações intelectuais, os seus rasgos de caráter, as suas valentias morais e cívicas e as suas grandezas de corações deslembrados e olvidados com uma rapidez inacreditável e indesculpável apreço. Não lhes importa se esses grandes ausentes lhes tenham assegurado o prestígio nas ciências e nas letras, na música, no magistério, na justiça, na política e na administração, levando meu nome, majestosa e alvissareiramente, pelo futuro adiante.

Dr. Epaminondas Jácome
Poucos sabem que após a minha unificação como Território, meu primeiro Governador foi Dr. Epaminondas Jácome. Quase ninguém sabe que foi o advogado e ex-intendente de Manaus, Dr. Hugo Ribeiro Carneiro, meu quarto Governador, quem construiu em Rio Branco as primeiras edificações em alvenaria, quais sejam: o Palácio do Governo, os três blocos do Quartel da Policia Militar e o primeiro Mercado Municipal, além de trazer-me a primeira agência do Banco do Brasil. Em Xapuri, a primeira Maternidade.

Pouquíssimos sabem que foi o Cel. José Guiomard dos Santos que começou a promover a minha modernidade ao providenciar a pavimentação das ruas de minha capital e dos meus municípios, concluiu obras inacabadas em Rio Branco e no interior, deu início à pesquisa e a plantação das primeiras monoculturas na Fazenda Sobral, na Estação Experimental e Aviário, como também, impulsionou a educação e a saúde construindo escolas e hospitais para atender à população. Foi dele o Projeto de Lei que assegurou à Elevação do Acre a Estado, em 15 de junho de 1962.
Estação Experimental Agrícola Governador José Guiomard
Rio Branco - AC
Quartel da Guarda Territorial de Rio Branco
Os três pavilhões do quartel da Guarda Territorial
Deputado Federal Guiomard Santos em cerimônia de assinatura da Lei 4.070 que eleva o território do Acre em Estado (Foto: Acervo Histórico do Estado).
Poucos sabem que foi o último governador do Território do Acre, o Eng. Agrônomo José Rui da Silveira Lino quem promoveu o Enquadramento dos Funcionários Públicos do ex-Território do Acre, efetivando-os e garantindo-lhes honrosa estabilidade, assegurando-lhes todos os direitos oferecidos aos Funcionários Públicos Civis da União (Lei nº 1.711 de 28.10.52) e outorgando-lhes dignidade e cidadania.

José Augusto de Araújo
Acervo Digital: Memorial dos Autonomistas.
São poucos os que têm conhecimento de que foi o primeiro governador eleito do Estado do Acre, o Prof. José Augusto de Araújo, possuindo um eficiente Programa de Governo que dava prioridades para a educação, para o desenvolvimento econômico e energético e para a minha integração nacional através de rodovias. Poucos sabem que José Augusto foi atingido pelo golpe militar de 1964, com apenas um ano e dois meses de mandato, em razão de intrigas, invejas, injúrias, mentiras e falsidades, adicionadas a indecisões e vacilações. Esse jovem de 32 anos foi compelido a renunciar, abortando um governo promissor, diante de uma parcela de pessoas pávidas e trépidas, auxiliares contristados e o povo acreano atônito e surpreso.

Finalizando, manifesto até certas dúvidas acerca de quantos são aqueles que lembram que foi o atual senador Jorge Viana quando meu governador, que projetou-me com relevante destaque no cenário nacional, devolvendo-me o respeito e auto-estima, salientando-me os dotes do progresso eminente, com notado desenvolvimento em todos os prismas, trocando-me a roupagem ao inserir-me na modernidade arquitetônica, na urbanização das minhas cidades, sobretudo na minha capital, conservando-me o espírito, refletido no cotidiano do meu povo simpático, bem humorado e hospitaleiro.

Eu, de minha parte, espero sinceramente, que cada acreano tenha o peito repleto de "nobreza, constância e valor", como sugere desde 1903, o honroso jovem médico, ex-combatente de Plácido de Castro e poeta baiano Francisco Mangabeira, num dia de repouso no Seringal Capatará.

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* José Augusto de Castro e Costa é acreano, natural de Rio Branco. Reside em Brasília, e trabalha no Senado Federal, lotado no Instituto Legislativo Brasileiro – ILB.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

SERINGAL - Isaac Melo

Saudades! Tenho-as
até do que me não foi nada,
por uma angústia da fuga do tempo
e uma doença do mistério da vida.

Fernando Pessoa
Às margens do Rio Acre
a recordar o meu Tarauacá
sentir um aperto no peito
ao ver as águas a galopar
sob o corcel de um repiquete
e por um momento juro que vi
enquanto gorjeava o canoro Bem-te-vi
os navios gaiolas a atracar
uma multidão a acenar
outras a chorar...
vi balsas de borracha
vi regatão
vi seringueiros
vi batelão
vi catraieiros
              pra lá e pra cá...
vi o banzeiro
e o remo a fazer
              chuá, chuá...
À minha saudade que vive a vagar
por entre igapós e matagal
vou abrir seringal
onde possa enfim descansar...



* Versinhos dedicados à Leila Jalul, Luísa Lessa e Simone Bichara.
** Foto Araújo - Rio Branco em Heróis do Acre.