quarta-feira, 23 de agosto de 2017

TUDO ESTÁ DIFERENTE

Nani Yawanawá


Antigamente tudo era diferente para os índios Yawanawá.
Os índios caçavam, pescavam e não tinham terra demarcada.
Hoje já está diferente, os índios Yawanawá não podem mais caçar, pescar
fora das suas terras demarcadas.
Tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente os índios Yawanawá moravam
todos juntos num Kupixawa só.
Hoje já está tudo diferente.
Cada família em suas casas.
Tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente os Yawanawá não tinham rádios,
toca fitas e nem rádio de comunicação.
Hoje já todos os índios compram, usam, gravadores e toca fitas.
Tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente os índios Yawanawá não dormiam
na cama nem nas redes industrializadas.
As redes eram feitas por mão própria, confeccionados com fibras de
tucum e algodão
Hoje todos os índios já usam e compram redes e cobertores.
Tudo já mudou, tudo já está diferente.

Antigamente os índios Yawanawá não tinham motores
e nem o conheciam.
Para viajar de barco só usavam remo e varejão.
Hoje já tem motores yamar, moto-serra.
Tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente os índios Yawanawá não falavam
a língua portuguesa, todos falavam língua nativa.
Hoje já está tudo mudado.
Os jovens, as crianças
falam a língua portuguesa.
Tudo mudou, tudo está diferente.
Antigamente os Yawanawá usavam somente arcos e flechas para caçar.
Hoje já mudou, os índios já usam espingarda e munição para caçar.
Tudo mudou, tudo está diferente.
Antigamente as mulheres Yawanawá faziam muitos vasos de barro.
Hoje os vasos todos são de alumínio, de plástico, etc.
Tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente as caças eram mais fáceis de matar:
veado, porquinho, anta, tudo era fácil.
Hoje cachorros, armas de fogo, fizeram
a maior desgraça, distanciou tudo.
Tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente tudo tinha controle.
Hoje em dia tudo está mudando.
O verão não chega mais no mês esperado,
as flores não chegam mais junto.
Quando o verão vai, as flores vem chegando.
Tudo mudou, tudo está diferente.
Os rios mudaram muito.
Onde na década de 30 chegavam barcos que carregavam
40 toneladas de borracha,
hoje até para chegar barcos de 10 toneladas é difícil.
Para perceber que tudo mudou, tudo está diferente,
o rio não tem mais grandes volumes de água, ficou raso.
Tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente, na época do verão, os índios Yawanawá
faziam as caçadas, as pescarias, era tudo junto.
Mas hoje tudo é individual, cada pessoa vai para qualquer
direção que quer. Por isso eu digo:
tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente tinham muitos tracajás no rio Gregório.
Se arrancava covas de ovos de tracajá com facilidade.
Hoje não se vê mais nem a trilha.
Tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente os índios Yawanawá não sabiam o que era aposentadoria do
INSS.
Hoje vão a cidade, os velhos se aposentam, ficam preocupados
e vivem viajando no trecho da aldeia à cidade,
quase não tendo mais tempo para fazer as suas
atividades na comunidade.
Hoje tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente as mulheres faziam muita caiçuma
de macaxeira, caiçuma de milho.
Hoje não querem nem ser índias.
Hoje só querem fazer café.
Tudo já mudou, tudo está diferente.

Antigamente um grupo era comandado por um só chefe.
Hoje em dia, se tem 10 pessoas morando numa colocação,
já querem formar uma comunidade independente do chefe.
Por isso, eu digo:
tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente o chefe tinha de 3 a 6 mulheres para cuidar
do povo e fazia as suas obrigações com facilidade.
Hoje, as mulheres do chefe, em vez de cuidar do povo,
fazem espantar todo mundo.
Hoje tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente os índios Yawanawá não se preocupavam
com o desenvolvimento e nem com projetos econômicos na aldeia.
Hoje já sentem a necessidade de eles próprios trabalharem
para o desenvolvimento da comunidade.
Hoje já está mudado e tudo está diferente.

Antigamente os índios Yawanawá davam conselho aos seus filhos e filhas.
Hoje se as filhas e filhos fazem algum erro, são apanhados
pelos pais e começa o desrespeito.
Hoje tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente um grupo indígena não se dividia por qualquer besteira.
Hoje as coisas dos nawá ficou tão forte dentro dos grupos indígenas
que hoje só basta um chefe não dar um bom dia
para o seu parente que a divisão está feita.
Por isso eu digo:
hoje tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente não tinha eleição para escolha de chefe,
mas hoje tem eleição.
Tudo é na base do nawá.
Hoje está mudado.
Tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente os genros do povo Yawanawá tiravam lenha
para as sogras e sogros,
caçavam, pescavam para os sogros.
Hoje em dia se casam como os nawás e não têm
aquele grande respeito como antigamente.
Hoje tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente os índios Yawanawá não sabiam ler nem escrever,
mas eram mais educados e tinham mais respeito.
Hoje quase todos sabem ler e escrever.
Mas a ignorância ficou maior.
Hoje tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente os índios mais velhos acreditavam
nas crenças do seu povo.
Mas hoje falam que tudo é mentira.
Hoje se baseiam mais nas coisas escritas na Bíblia
e esquecem que os nossos antepassados viveram sem conhecer esse livro
sagrado.
Eu não estou dizendo que o que está na Bíblia são mentiras, não é isso.
Hoje as pessoas usam mais a Bíblia para falar
da vida dos outros e discriminam outras crenças.
Hoje usam a Bíblia para aprender a ser pão duro.
A ignorância ficou maior às custas da Bíblia.
Por isso digo: hoje tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente as mulheres Yawanawá não usavam
bermudas e nem calças de homem.
Antigamente as mulheres vestiam casacos
e saias compridas cobrindo o joelho.
Mas hoje as mulheres estão muito mais parecidas
com homem de que com mulher.
Hoje tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente os índios Yawanawá não tinham nenhuma preocupação.
Só viviam de caça e da pesca e fazendo as suas festas.
Hoje em dia quase não têm mais tempo nem para caçar
e nem pescar porque há muito trabalho.
Hoje tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente as mulheres indígenas não namoravam
os nawás (brancos) com medo de pegarem doenças.
Hoje as mulheres indígenas casam com os nawá (brancos), pegam
doenças graves que nem os pajés curam e nem os médicos sabem que
doença é.
Por isso eu digo:
hoje tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente as crianças indígenas não passavam
na frente dos mais velhos, não davam gargalhadas
na frente dos mais velhos,
não cuspiam na frente dos mais velhos.
Hoje é diferente, hoje as crianças usam e abusam dos velhos.
Por isso eu digo:
hoje tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente os pais indígenas chamavam
seus filhos com nomes próprios.
Mas hoje os nomes indígenas foram trocados por João,
Raimundo, Manoel, Zé e Napoleão.
Hoje tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente todos trabalhavam sem pensar em dinheiro.
Hoje quando dá o primeiro dia de trabalho
já é para receber dinheiro.
Hoje os olhos ficam grandes e os braços se encompridam.
Tudo só é grana.
Hoje se não for com dinheiro nada se pode fazer.
Por isso, eu digo tudo mudou e tudo ficou diferente.

Antigamente os sobrinhos indígenas chamavam
os tios de Kukã, mas hoje só é tio, tio!
Hoje as crianças indígenas se esqueceram de falar Kukã,
porque a palavra Kukã é para ser chamada
de maneira muito respeitosa.
Hoje tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente os velhos chegavam a idade de 80 a 110 anos,
hoje em dia quase não estão chegando nos 50 anos.
O tempo está mudado, o tempo velho não volta atrás.
Hoje tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente os homens indígenas se casavam,
tinham muitos filhos, filhas e era difícil se deixarem.
Mas hoje as coisas mudaram, deixar mulher virou moda.
Hoje tudo mudou, tudo está diferente.

Antigamente tudo era diferente.

Tudo era fácil e tudo era difícil.
Hoje as coisas mudaram muito.
Cada macaco no seu galho.
Por isso, continuo dizendo
tudo mudou, tudo está diferente.


10 de maio de 1997


Poema e imagem retirados do livro:
Vinnya, Aldaiso Luiz. Ochoa, Maria Luiza Pinedo. Teixeira, Gleyson de Araújo. (Orgs.) Costumes e Tradições do Povo Yawanawá. Comissão Pró-Índio do Acre / Organização dos Professores Indígenas do Acre. Rio Branco, 2006. p.46-52

terça-feira, 22 de agosto de 2017

aquiri

Glória Perez 


esse filete moroso
se esticando em suas beiras
vai num cansaço tamanho
como não fora por si
que corresse a vida inteira,
como se alguém o tangesse
desde a sua cabeceira

- é como risco de lápis
um arabesco pequeno
brincando de geografia

Sua textura é igual
a desse corpo que anima
é sangue ralo do chão
desses cantos ribeirinhos

É veia da terra magra
atravessando-lhe o corpo,
imprimida à carne pouca
dessa exposta ossatura
como lanho de chicote

Sua espessura – a do barro
lamacento, fluido,
enxertando a ribanceira

Um novelo quebradiço
desenrolando seu fio
num fôlego, de tão curto,
mais parecendo agonia

Um rebanho de boi manso
desmatando seu caminho,
cavalgando o dorso morno
da planície ressecada,
deitando suas águas frouxas
sobre a febre dessas matas

um riozinho de nada
vai assim mesmo, tangido
dar de beber a outras águas

Quando é de junho a setembro
a chuva engorda esse rio

Vai crescendo sem sossego
- é como fio de faca
Riscando terras mais longe
Das que lhe fazem de margem

Vai como fio de faca
afiado em pedra rente,
cortando de sua beira
a plantação espalhada

Como um espelho de terra
na própria terra espelhado,
como se fora essa gente
um dia toda juntada
num ato de rebeldia

Arrancando dessa vida
o que se tem por direito
Na sua febre tornada
também um fio de faca
reparando assimetrias


PEREZ, Glória. Sem pão nem circo. Rio de Janeiro: s/e, 1976.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

WOODSTOK

Rogel Samuel


               À noite, no meu quarto, leio poema de James Hopkins. Ele é poeta premiado americano, autor do livro “eight pale women”, ganhou o prêmio “Word works”, da cidade de Washington, conferido por este organização literária. Hopkins é um rapaz jovem, bonito, com longos cabelos. Conheci-o em Walden, New York. Ele me pede que escreva sobre seu livro, que é muito bom.
                   Naquele dia fui a Woodstook.
                   Estive lá recentemente duas vezes.
            Na primeira vez chegamos ao anoitecer. Fomos diretos para o alto da montanha, onde nos esperava uma reunião. Quase não sentimos o lugar. Só sua atmosfera. Não da nostalgia, ou da memória do festival de música de 1969 – que não foi mesmo realizado lá – mas no ar havia algo daquele bom tempo dos hippies que fomos, dos cabelos compridos, das nossas sandálias, das nossas artes, das nossas almas puras.
          Sim, porque éramos uma geração de jovens de almas puras, amávamos a música, as fotos, as histórias, a natureza. Não vivíamos, acampávamos neste mundo. Fomos ali, em Woodstock, para reencontrar-nos. Woodstock não era uma cidadezinha nas montanhas, mas um lugar no nosso coração. Vi, logo que cheguei, que não tínhamos ficado velhos, que ainda estávamos no jogo da vida, que ainda amávamos nossa jornada.
                Na segunda vez fui mais cedo, na hora do almoço, a Woodstook.
            Almoçamos em pequeno restaurante onde, à noite, havia música. Os dois garçons, jovens e andróginos, já eram de outra era. A cozinha excelente. Depois, com minhas duas amigas americanas, “fomos às compras”. Woodstok agora é um grande shopping. Particularmente, nada vi interessante. Mas gosto de shopping. O melhor foram as lojas de artigos orientais. Principalmente uma, chamada “Dharmaware”. Mas tudo muito caro, para nós, brasileiros. Entro num sebo. Nada vi, que me entusiasmasse. Um rapaz, na rua, tenta-me desesperadamente vender duas fitas cassetes usadas por dois dólares. Ele tem ansiedade nos olhos, tem pressa. Arrependo-me de não ter comprado, ainda que desconfie por que ou de que ele precisa, ou por isso mesmo.
            Num supermercado comprei uma caneta, que tenho usado até hoje. É um modelo antigo, de aço inoxidável. Gosto de canetas, já tive uma boa coleção. A maioria de pena. Mas hoje só consigo escrever no computador.
            Faz calor, em Woodstock. Sinto-me cansado, desanimado. Estou perdendo o interesse, o gosto pelas coisas. Woodstock sem o clima místico de paz, de amor dos anos sessenta. Estamos na era Bush. “Os nossos ídolos morreram de overdose”. Já não somos os mesmos.
            À noite, no meu quarto, leio um poema de James Hopkins. O poema diz, mais ou menos assim, que traduzo: “trate \ os fantasmas \ do quase-passado \ com um pouco mais de respeito  -- \ aquelas vaporosas  pistas que derivam dos parques \ aproveitam as ruas \ em segredo. \ o tremor \ apenas \ no vértice \ da escuridão \ quando o vermelho \  escorreu do céu. \ a sombra que pisca \ no canto de seu olho \ antes da noite \  engolir \ a lua”.

            Fecho o livro, a luz da cabeceira. Fecho os olhos. Adormeço. Rondam os fantasmas da noite.


Acesse outros textos de Rogel Samuel:
http://literaturarogelsamuel.blogspot.com.br/ 

domingo, 13 de agosto de 2017

CANÇÃO DO EXÍLIO

Murilo Mendes (1901-1975)


Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam  gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil-réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade! 


MENDES, Murilo. Os Melhores Poemas de Murilo Mendes. Seleção Luciana Stegagno Picchio. São Paulo: Global, 1994. p.17

sábado, 12 de agosto de 2017

COM A LUA

Guilherme de Almeida (1890-1969)


Para os poetas és tudo: – és Salomé dos sete
véus; és gôndola, alfanje, hóstia, tulipa, anzol;
cabeça de Yokanaan ou Pierrot de Willette...
Para mim, és somente a saudade do sol!

Quando passa no céu a caravana suja,
sonâmbula e infeliz das nuvens cor de spleen;
quando a insônia amarela abre o olhar de coruja
e fica fixamente olhando para mim;

mil e uma  vezes eu te chamo, ó desolada!
E, talvez sem sentir ou sem querer talvez,
mil e uma noites, vens, minha Scheherazada,
contar-me entre divãs de névoa: – Era uma vez....

Lua, eu te amo porque és noturna como tudo,
tudo aquilo que eu tinha o costume de amar
e que ficava além do meu quarto de estudo:
a música... a neblina... os amigos... o bar...

Eu te amo porque és boêmia e porque és inconstante,
porque mudas de forma, e de nome, e de amor,
como as mulheres que eu amei por um instante,
quando eu era um rapaz ingênuo e sonhador...

Eu te amo porque és boa, eu te amo porque és bela!
Quando escrevo, de noite, uma estrofe qualquer,
tu sobes devagar e espias da janela:
e eu ponho no meu verso um nome de mulher.

Eu te amo porque sei que é no teu disco que há de
encontrar meu olhar o triste olhar irmão
dos que vivem de amor e morrem de saudade,
Nossa Senhora Azul da minha devoção! 


ALMEIDA, Guilherme de. Encantamento, Acaso, Você: seguidos dos haicais completos. Campinas: Unicamp, 2002. p.76-77