sexta-feira, 25 de setembro de 2015

CANTIGA, APENAS CANTIGA

Jorge Tufic


Louvo a Deus,
louvo a formiga,
cada coisa em seu lugar.
louvo a difícil cantiga,
Louvo a pedra,
louvo o mar.

Quem não louva a tudo isso,
quem não se enxerga
a louvar,
é mais bruto do que a pedra,
muito mais surdo
que o mar.

Louvar é dar sentimento.
Quem louva
a Deus se transfere,
nunca cessa de louvar:
louva o mundo que nos fere,
e ao tempo
que faz sarar.


TUFIC, Jorge. A insônia dos grilos: poesia. Fortaleza: Gráfica LCR, 1998. p.47

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

CARESTIA

Astrid Cabral


Amor custa bem caro.
Mesmo assim depenamos bolsos
e bolsas de moedas raras.
Por ele pagamos, em prestações
nem sempre suaves, quanto
de entrada supúnhamos
de todo não poder:
o alto preço dos sustos,
a conta escorchante
das noites em claro,
os juros extorsivos
do medo de perdê-lo,
a tristeza do saldo zero.
Queixamo-nos de carestia
se de amor-próprio ainda
nos sobra algum trocado,
mas que fazer quando só
amor é o lucro que buscamos?


CABRAL, Astrid. De déu em déu: poemas reunidos (1979/1994). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. p.31

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

NO CAMINHO, COM MAIAKÓVSKI

Eduardo Alves da Costa


Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas manhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita – MENTIRA!


COSTA, Eduardo Alves da. No caminho, com Maiakóvski: poesia reunida. São Paulo: Geração Editorial, 2003. p.47-49

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

DIAS E NOITES

Afonso de Carvalho



Os dias e noites são de uma tepidez mortal, e dias assim não convidam a pensar. Há uma exaustão de ferro candente sobre as coisas do mundo, sobre a terra e sobre as águas, e os nossos corações sofrem as angústias de todos os tormentos das horas perdidas, as horas que não pudemos viver. É Novembro que se aproxima, amor. Bem sabes, querida, que este poderia ser um mês de alegrias, em que cantássemos aleluias de ressurreição, um mês em cujo início eu estaria te ofertando poemas de amor, em surdina, somente para os teus sentidos ouvirem, apenas para o teu coração comover. Não será assim, todavia, anjo meu. Para mim, o mês que se aproxima é uma quadra de recordações, e eis que me perco a meditar, não pensando nas glórias da existência, que não as quero, mas em ti, amor imortal, em ti somente. Que será de nós, amanhã? Pensamentos, palavras, emoções, tudo gira em torno de tua maravilhosa pessoa, tu, que és única, que és insubstituível, que estás presente em todas as minhas horas vazias, como uma obsessão e como uma loucura de que não me quero curar, para a qual não há remédio. Farei versos a ti. Novembro se aproxima, e com ele, e durante ele, meu velho coração não terá outro destino: só tu o ouvirás, só contigo ele estará. Ninguém mais.


(ele é um dos maiores escritores amazonenses - hoje esquecido - autor de Vozes Azuis)
da página de Rogel Samuel: http://literaturarogelsamuel.blogspot.com.br/

CONFIRA AS ATIVIDADES DA ACADEMIA ACREANA DE LETRAS

http://academiaacreanadeletras.blogspot.com.br/

domingo, 6 de setembro de 2015

TRÊS POEMAS DE RAYSSA CASTELO BRANCO

A VOZ DA POESIA
Rayssa Castelo Branco

Quero que sejas minha voz mais profunda,
Que sejas a paz que tanto desejo,
A felicidade que meu coração inunda,
O mais puro olhar que vejo.

Quero só que surjas em mim
Como o alimento a quem tem fome,
Que sejas meu princípio e meu fim,
Sejas a chama ardente que me consome.

Que todas as vozes do céu, do mar e do vento
Sejam a tua voz viva e presente
Que me guie, me proteja e me dê acalento.

Que sejas meu mais perfeito universo
E me envolva sonhadoramente
Em teus melodiosos e cálidos versos.


CHUVA
Rayssa Castelo Branco
18/03/14

Chuva que cai em gotas
E não tudo de uma vez.

O homem se permite chover
Quando não suporta mais
Os raios e trovões em seu coração
E deixa a água fluir dos seus olhos
Pois até o grandioso céu também chora.

Chuva que cai em gotas
E não tudo de uma vez.

Chuva que dança na rua
Cheirando a terra molhada
Chuva que leva e traz
As lembranças de minha infância
Chuva de nostalgia.

Chuva que cai em gotas
E não tudo de uma vez.

Chuva que lava a alma
Que lava a terra
Que lava o homem
Chuva que cessa para dar lugar ao sorriso do arco-íris
Que rouba as lágrimas da chuva.


JANELAS DA ALMA
Rayssa Castelo Branco
15/05/15

O amor só se revela
No silêncio de um olhar,
O brilho dos olhos dela
Faz meu coração pulsar.

Os olhos são duas janelas
Com que enxergamos o mundo,
Mas não vemos as coisas mais belas
Como o amor, sentimento profundo.

Os olhos nos dizem mais
Do que as palavras podem dizer,
Nos mostram segredos irreais

Muito além do que se pode ver,
Mistérios, desejos, medos, sinais,
Que só a alma pode entender. 


* RAYSSA CASTELO BRANCO, 15 anos. A jovem poetisa é autora de “Primeiros poemas”. Reside em Rio Branco - AC.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

ESTRELA D'ÁGUA

João Lira

A morte chegou
O mar te amou
Te cobriu com seu manto
acalentou-te...
Estrela d’água
Te acolheu na fronteira da vida...
Dorme estrelinha! Dorme!
Dorme que já não há mais dor
Dorme, que a humanidade não amou.

HISTÓRIA, CORAÇÃO, LINGUAGEM

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)


Dos heróis que cantaste, que restou
senão a melodia do teu canto?
As armas em ferrugem se desfazem,
os barões nos jazigos dizem nada.
É teu verso, teu rude e teu suave
balanço de consoantes e vogais,
teu ritmo de oceano sofreado
que os lembra ainda e sempre lembrará.
Tu és a história que narraste, não
o simples narrador. Ela persiste
mais em teu poema que no tempo neutro,
universal sepulcro da memória.
Bardo, tu foste os deuses mais as ninfas,
as ondas em furor, céus em delírio,
astúcias, pragas, guerras e cobiças,
lodoso material fundido em ouro.
Multissexual germinador de assombros,
na folha branca vieste demonstrando
o que ao homem, na luta contra o fado,
cabe tentar, cabe vencer, perder,
e nisto se resume a irresumível
humana condição no eterno jogo
sem sentido maior que o de jogar.
E quando de altos feitos te entedias
e voltas ao comum sofrer pedestre
do desamado, não te vejo a ti
perdido de saudades e desdéns.
Luís, homem estranho, pelo verbo 
és, mais que amador, o próprio amor
latejante, esquecido, revoltado,
submisso, renascendo, reflorindo
em cem mil corações multiplicado.
És a linguagem. Dor particular
deixa de existir para fazer-se
dor de todos os homens, musical, 
na voz de órfico acento, peregrina.
Que pássaro lascivo se intercala
no queixume subtil de tua estrofe
e não se sabe mais se é dor, delícia,
espinho, afago, morte, renascença?
Volúpia de gemer, e do gemido
destilar a canção consoladora
a quantos de consolo careciam
e jamais a fariam por si mesmos?
(Amaldiçoado dia de nascer
que em bênçãos para nós se converteu.)
Já tenho uma palavra pré-escrita
que tudo exprime quanto em mim se turva.
Pelos antigos e pelos vindouros,
foste discurso de geral amor.
Camões – oh som de vida ressoando
em cada tua sílaba fremente
de amor e guerra e sonho entrelaçados...

ANDRADE, Carlos Drummond de. A paixão medida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980. p.89-91

terça-feira, 1 de setembro de 2015

CLARICE LISPECTOR

ACADEMIA ACREANA DE LETRAS
CHÁ DAS LETRAS – setembro 2015

Que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho.[...]
O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós.
Clarice Lispector
Por
Luísa Karlberg
1 – Clarice: vida e obra

Premiada escritora e jornalista nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira — e declarava, quanto à sua brasilidade, ser pernambucana — autora de romances, contos e ensaios e considerada uma das escritoras brasileiras mais importantes do século XX. Sua obra está repleta de cenas cotidianas simples e tramas psicológicas, sendo considerada uma de suas principais características a epifania de personagens comuns em momentos do cotidiano.

Nasceu em uma família judaica da Rússia que perdeu sua renda com a Guerra Civil Russa e se viu obrigada a emigrar do país em decorrência da perseguição a judeus que estava sendo pregada então, resultando em diversos extermínios em massa. Chegou ao Brasil por volta dos dois anos de idade na cidade de Maceió, onde passou um breve período até a família mudar-se para o Recife, cidade onde cresceu e em que perdeu a mãe, e depois para o Rio de Janeiro, onde sua família estabilizou-se e seu pai morreu.

Estudou direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro, então conhecida como Universidade do Brasil, apesar de na época ter demonstrado mais interesse ao meio literário, no qual ingressou precocemente como tradutora e logo se consagrou como escritora, jornalista, contista e ensaísta, tornando-se uma das figuras mais influentes da literatura brasileira e do modernismo e sendo considerada uma das principais influências da nova geração de escritores brasileiros. É comparada pela crítica especializada com os principais autores do modernismo do século XX.

Conhecida desde a juventude por escrever e publicar seus textos, suas principais obras marcam cada período de sua carreira: Perto do coração selvagem, seu livro de estreia; Laços de família; A paixão segundo G.H.; A hora da estrela e Um sopro de vida, seus últimos livros publicados. Morreu em 1977

2 - Para tudo e para todos

Influenciada por autores como Franz Kafka, James Joyce e Virginia Woolf, Clarice deixa transbordar seu intimismo visceral.

Para Joel, esse é um dos motivos que continua atraindo tantos leitores para seus livros. “A obra dela é aberta e multifacetada, permite plurais interpretações. O leitor que terá o papel de ouvir essa voz e socorrer-se. Ele que escolherá a jornada”, diz o autor sobre a temática que não se apaga com o passar do tempo.

Um grito sem resposta, uma escrita que se costura para dentro a fim de indagar as questões da condição humana, como o amor, o nascimento, a morte, o desejo.

Para Clarice, esse era o motivo de escrever. “São temas interessantes até hoje, mas o modo como ela trabalha esses temas nos contos e nos romances é que faz dela uma autora especial. Ela se incomoda com o gesto mais sutil e delicado do ser, o mínimo atrito, ela fotografa a ambiguidade ou ambivalência dos sentimentos como se precisássemos redimensionar nosso modo de ser”.

Para desvendar o que está “atrás de detrás do pensamento” – como disse a própria Clarice – foram escritos nove romances por ela, compilados em uma coletânea lançada recentemente pela Editora Rocco.

Organizada pelo jornalista, escritor e crítico literário José Castello, Clarice na Cabeceira – Romances faz uma síntese da obra em questão e do momento vivido por ela ao escrevê-la. A coletânea é continuação de Clarice na Cabeceira – Contos e Clarice na Cabeceira – Crônicas, em que diferentes personalidades apresentam os textos favoritos da autora.

Em meio à sua prosa poética, Clarice emerge como uma “ficcionista-poeta”, tal como Guimarães Rosa. São nossos dois grandes ficcionistas da modernidade. São ficcionistas-poetas.Por esse motivo, eles têm vida longa nas estantes das livrarias.

3 - Do Brasil para o mundo

De caráter único e universal, a escrita da autora ultrapassou os territórios brasileiros. Afinal, já dizia Guimarães Rosa que se lê Clarice para a vida, para viver. “Os textos de Clarice são importantes porque são vitais, têm a força das ondas do mar, das árvores, do fluxo das águas. Aliás, foi essa força vital que impressionou muitos críticos lá fora e faz dela uma autora de estilo único”, diz Joel ao revelar que ainda fica impressionado com seus textos, que possuem dimensão filosófica que atrai psicanalistas, críticos, filósofos e leitores comuns.

Dos estrangeiros apaixonados pela obra de Clarice, Benjamin Moser aparece como um amante incondicional. O norte-americano nascido em Houston encantou-se por sua escrita já na primeira página de A Hora da Estrela, durante um curso de literatura brasileira da Brown University. Crítico e tradutor, ele aprendeu português e mergulhou na cultura brasileira do século 20 para tentar desvendar a obra enigmática da autora.

Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.

(...)
... uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi o apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo for preciso.

Clarice Lispector