sexta-feira, 12 de junho de 2020

O VAQUEIRO QUE A VACA MATOU

CAXAMBU – TAPAJÓS
Yara Cecim (1916-2009)

 

Antônio era um vaqueiro muito estimado por quantos o conheciam, por seu espírito alegre, gozador, contador de bravatas.

Seus 28 anos vividos sadiamente, seus cabelos pretos encaracolados esvoaçando ao vento, o chapéu de palha caído para trás, seguro por um cordão de envira trançada, galopando em seu cavalo branco com manchas amareladas, rodando o laço alegremente no ar enquanto cercava a rês fugitiva, mais parecia um garotão de apenas 18 anos.

Assim corria ele os campos e colinas, cantando com voz doce belas modinhas que ele próprio improvisava ao violão, sentado na soleira da porta, enquanto a lua derramava seu luar de prata no terreiro de areia branca varrido a vassoura.

Mas Antônio não era só o vaqueiro tocador de violão, gostava de contar bravatas em que sempre era ele o herói.

Também gostava de fazer chulas para cantar nas reuniões, embaixo do barracão, envolvendo segredos, namoros e as derrotas dos companheiros, o que era motivo da gargalhadas para uns e de contrariedades para outros. Mas Antônio nunca brigava nem aceitava provocação de ninguém – “Somos amigos e só estava brincando, companheiro” – e assim passava a contar suas próprias derrotas fazendo-os rir também às suas custas:

– Certa vez, numa festa de ramada, briguei com dez por causa de uma caboca, a mais bonita e cobiçada do lugar, e terminei saindo com ela para dexá em casa. Quando nós estava conversando de baixo do pé de árvore, fui surpreendido pela mãe dela que, com um tição aceso, me botou pra correr, levando nas costa do paletó de linho branco as marca do carvão.

Sempre terminava assim as brincadeiras de Antônio, e o companheirismo continuava sem ressentimentos. Até as crianças da Casa Grande corriam para o alpendre quando escutavam ao longe sua voz, ao cair da tarde, recolhendo a boiada para os currais, porque sempre em sua garupa vinha uma prenda para elas. Quando não era um ninho de passarinho com seus filhotes, eram frutos silvestres ou mesmo flores do campo. Depois, a pedido delas, jogava para o ar o chapéu de palha já um tanto surrado, saía galopando atrás, disputando-o com o vento, até apanhá-lo no chão à moda das Amazonas, pendurado do lado do cavalo que a tudo se prestava, parecendo entendê-lo. E seu riso fazia-se largo, quando escutava as palminhas das crianças.

Nessa tarde, porém, o destino preparava uma surpresa, tanto para ele como para elas, que ouvindo sua voz ainda longe, correram para a varanda. Mas faltava algo na voz de Antônio nesta tarde. Talvez o tremor provocado pelo galope do cavalo, porque ele chegava a pé e trazia nos braços alguma coisa que segurava como se carregasse uma criança...

Já há alguns meses uma vaca coberta fugira para as colinas e nunca mais voltou para o curral, o que fez com que todos os vaqueiros se empenhassem em procurá-la. Em vão.

Mas nesse dia, justamente nesse dia, Antônio completava 28 anos e o barracão embandeirado com ramos de palmeiras e flores do campo, amarrados nos esteios e o chão recoberto de folhas verdes, se preparava para festejar a data.

A panela com mingau de arroz cozido no leite de vaca e os garrafões de tarubá, esperavam as famílias dos vaqueiros, que já começavam a chegar, trazendo as cunhantãs vestidas de chita, enfeitadas de fitas e rendas, os cabelos luzidios cheirando a óleo de mutamba e cumaru de mistura com o perfume dos jasmins que traziam presos na cintura ou no decote do vestido.

As cigarras já espalhavam no ar da tarde o ciu-ciu-ciu com que saldavam a hora do Ângelus, quando o sol já sumia por trás das colinas refletindo os últimos raios dourados nas águas do lago.

E foi nesse momento que o tropel de um animal abafou o ciciar das cigarras e substituiu a cantiga de Antônio por um brado de horror saído com estertor, de sua garganta, enquanto um corpo era projetado no ar e atirado à distância para ser novamente suspenso no chifre de uma vaca amarelada, que o sacolejava, para arremessá-lo de encontro a um tronco de árvore. E já se preparava para levantar novamente nos chifres aquele corpo inerte e ensanguentado, cavando o chão com as patas, jogando para traz aquela porção de areia, quando dois tiros de rifle vindos de pontos diferentes do barracão, a prostraram no chão para nunca mais se levantar.

Antônio, nessa manhã, vira a vaca amontada, com os chifres cheios de cipó e ervas daninhas e saiu em sua perseguição com o laço pronto para derrubá-la, e tanto nisso se empenhou, subindo e descendo montes e colinas, saltando troncos caídos e espinheiros, que seu cavalo passou a mancar, com as patas crivadas de espinhos, o que fez com que ele o libertasse da cela e dos freios, dando-lhe uma palmada nas ancas, deixando-o voltar só para o barracão, seguindo ele para o campo à procura da cria, pois viu que a vaca já não estava prenhe e que tinha as tetas cheias de leite.

Depois de procurá-la todo o dia, avistou-a à sombra de uma árvore frondosa sobre uma touceira de capim.

Com os olhos radiantes de alegria e não vendo a vaca nas proximidades, tomou nos braços aquela bezerrinha alva, de olhar doce como uma criança, e tratou de se pôr a caminho de casa, cantando uma canção dolente como um acalanto, pensando no presente que ia dar nesta tarde para as crianças.

Mas, diz a sabedoria popular, o que o homem põe, Deus dispõe. E foi isso que aconteceu a Antônio, nesse cair de tarde, que deveria ser para ele o mais alegre de toda a sua vida.

Como toda cria que se sente afastada do colo materno, a bezerrinha pôs-se a berrar, berrar, e Antônio encostou-se na cajuraneira à beira do lago, enrolou com uma das mãos a beira da calça, entrando na água aproximou o focinho da bezerrinha para que bebesse um pouco; e tão embevecido estava que não ouviu o tropel da vaca amarelada, que o apanhou de surpresa enfiando-lhe os chifres pelas costas atirando-o de encontro a cajuraneira .

Do barracão da ramada, que fora preparado para a festa em homenagem ao aniversariante, foram tirados o tarubá, a panela com o mingau de arroz, os violões e rabecas, sendo substituídos pelos terços, pelo choro convulso e pelo café com bolachas de soda. E toda aquela gente que foi para se divertir, tirou as fitas e os jasmins para enfeitar o caixão de Antônio, que recebeu, junto com o corpo, também seu violão, pois esse foi sempre o seu desejo.

Tempos depois, numa tarde quando as cigarras entoavam suas preces e as meninas brincavam à beira do lago, lhes pareceu ouvir o canto suave do vaqueiro e ao olhar para o lado da cajuraneira viram-no encostado ao tronco, com a calça enrolada até o meio da perna, chapéu jogado para trás, sorrindo para elas, que saíram em desabalada carreira, atirando-se nos braços da mãe, entre trêmulas e assustadas, dizendo que acabavam de ver Antônio.

– Eu vi, mãe! Ele estava lá!

– Nós vimos sim! Era ele!

– Eu vi também, mãe! Ele estava cantando e chamando a gente!

Era ele, mamãe! Era ele!

– Vamos, filhas! Vamos rezar por ele. E, aconchegando as filhas a si, as levou para o quarto, ajoelhando com elas em frente ao oratório.

Desse dia em diante, todas as tardes, se ouvia a voz do vaqueiro que a vaca matou, apascentando o gado, e havia até quem o visse entre os vaqueiros trazendo a boiada para os currais.

 

CECIM, Yara. Lendário: Contos Fantásticos da Amazônia. Belém: CEJUP, 2004. p. 13-17

domingo, 7 de junho de 2020

ROSÂNGELA DARWICH: alguns poemas

Rosângela Darwich nasceu em Belém-PA (1962). É doutora em Psicologia pela UFPA, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura e do Curso de graduação de Psicologia da Unama, e terapeuta comportamental. Publicou os livros de poesia Quando Fernando Sétimo Usava Paletó (1982) e Levasse as Coisas na Flauta (1988), ambos selecionados para publicação pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Belém do Pará, participou das antologias VIII Antologia Poética de São José dos Campos (Fundação Cassiano Ricardo, São José dos Campos, 1993) e Poesia do Grão-Pará (seleção e notas de Olga Savary, 2001), e das plaquetas literárias 30 Poetas / 30 Poemas (2015), Belém 400 anos (2016) e Impossível Não Te Ofertar (2016), esta última em homenagem ao poeta Max Martins, além de ter publicado poemas em revistas on-line, entre elas Zunái – Revista de Poesia e Debates (21ª edição, 2010) e Mallarmagens: Revista de Poesia e Arte Contemporânea (2012).

Há dias para as palavras

e dias mudos.

 

Celas entre vozes e silêncio,

há dias impenetráveis

e dias cúmplices.

 

Sob profecias e arbítrios,

há dias só para os deuses

e dias que se interrogam como qualquer homem. p. 10

 

.

 

Preocupado com o quanto, ao não dormir, duvido,

queria ter amado como não mais amaria.

 

Tensa,

calço meus olhos como se fossem sapatos.

 

Culpo-me. Cobro-me.

Cubro de palavras que se parecem. p. 47

 

.

 

Há o hoje para a matéria de que é feita a margarida

branca flor pequena as pétalas

a mesma matéria antiga das plantas.

 

Há o hoje que se faz quando anoitece

e estrelas de diferentes épocas convivem pacificamente.

 

Um quadro era feito do que dizias

flores por trás das casas

o rio antes do mar acompanhando a noite –

são palavras

essas estrelas. p. 62

 

.

 

Ainda leio cartas de manhã

escrevo cartas

não sou assim tão complicada

às vezes vislumbro quem sou.

 

Olho pela janela e confirmo coisas como chuva

me preparo para os acontecimentos

alterno os dias com as cores das roupas

gosto mais de preto e de azul.

 

Tento continuamente acompanhar o que penso

é muito bom saber que penso o que penso

algumas dúvidas aceitáveis

preto

azul.

 

Entre o céu e a terra,

olhos descansando sobre um pássaro. p. 66

 

.

 

O lado bom de não querer coisa alguma em especial

é o lado mau.

 

Ouço passos, se ando.

Vejo a cor roxa no roxo.

Sinto medo, sinto frio, sinto saudade.

 

Procuro a utilidade que deveria existir no útil,

pés dentro dos sapatos,

gente a partir dos pés.

 

Procuro a palavra ânsia

e encontro. É o mesmo que aflição e angústia

e parece também desejo. p. 69

 

.

 

Eu quero saber tudo

saber voltar e desaparecer

quero voltar e desaparecer

ter o domínio da ausência

os passos que se contam como histórias e

com todos eles

ir.

 

Por outro lado

andar tendo uma certa segurança

contra caminhos que depois fossem irreconhecíveis.

Não quer estar perdido quem vai saber tudo.

 

Um livro enorme, o mundo aberto,

várias, inúmeras vezes lido. p. 74

 

.

 

Quando a paisagem por trás do teu corpo

em um recorte a partir de ti

ou olho diretamente nos teus olhos

onde na verdade o dia nasce.

 

Oscilo entre as duas possibilidades

já que criei um mundo simples

entre o que parece estar perdido

e o som dos teus passos.

 

Disseste que as palavras eram minhas

e que é de mim que se parte

porque do esquecimento se fazem escolhas

assim sutis. p. 86

 

.

 

Teus olhos refletem o vento entre as árvores,

por isso não te respondo.

Feita de sol, água e cor verde

precisas de silêncio.

 

O que és se demora em semente,

curvas, espaço exato.

De nada servem palavras

diante do que não penso. p. 92

 

.

 

Você caminha em uma linha reta

por onde volta

e eis o seu percurso

indiferente aos círculos

e às borboletas

que realizo com os olhos.

 

Evito perder de vista

o alfabeto que desenha passos

na noite e sua delicadeza

conformando-se em estrelas

algumas poucas esquinas

e assas tantas perguntas.

 

As ruínas e outros rastros

que se escondem nas calçadas

sobrevivem em seus pés

enfeitados como letras

e o meu olhar acima do horizonte

circunda uma vez mais nosso planeta. p. 94

 

.

 

A noite esvazia a casa quando abres a janela

e entre teus dedos desliza o quanto amanhece.

 

Do muito que ainda é sonho permanece o eterno

e nos teus olhos a lua,

duas. p. 100

 

.

 

Destaca-se neste compartimento da casa

um quadro onde nasceu uma flor.

Há muitos anos nos distinguimos uma da outra

por meio do que digo.

 

Não é necessário o que convém às palavras

mas é bonito. p.114

 

DARWICH, Rosângela. Há horas. Belém: ed.ufpa, 2018.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

YARA CECIM: alguns poemas

Poeta, contista, artista plástica e pesquisadora da realidade Amazônica, Yara Cecim nasceu em Santarém-PA, em 13 de maio de 1916. Tem uma vasta produção na área da cultura Amazônica e das artes. Seus poemas e contos estão publicados em dezenas de revistas, antologias, jornais, etc..., e foram distinguidos com os prêmios Samuel Wallace MacDowell e Terêncio Porto, da Academia Paraense de Letras. É autora de “Folha de Outono” (poesia, 1983) e Arabescos e outros poemas (poesia, 1990); Taú-Taú e outros contos fantásticos da Amazônia (1989), Histórias daqui e dali (contos, 1993) e Lendário: contos fantásticos da Amazônia (2004). A escritora faleceu em Belém-PA, no dia 26 de outubro de 2009, aos 93 anos.

ARABESCOS

 

No silêncio enervante do meu quarto

só tua ausência me faz companhia,

enquanto lentamente as horas passam

silenciosas, lentas e vazias.

De repente, uma luz se esgarça,

um perfume sutil de primavera

e o rumor cauteloso dos teus passos...

Pela porta entreaberta

um vulto se adelgaça

e na parede fria,

uma sombra que passa...

Estendo as mãos, tateio na penumbra

e o frio se faz mais frio nesse momento

e o vazio mais vazio entre os meus braços.

Sento na cama. Afasto o cortinado...

Pelo vidro embaçado da janela,

a lua cheia, sonâmbula e vadia

põe arabescos na parede fria

enquanto um pirilampo vagabundo,

buscando a lua como um seresteiro,

foge para o jardim, pela porta entreaberta

e vai dormir, feliz, no jasminzeiro.

            O silêncio da noite me apavora

            e mais uma esperança se evapora. p. 11

 

 

“NOSSA CASINHA”

 

A hera está subindo, se enredando

pelas paredes da Nossa Casinha

e dando a ela aquele ar tristonho

de uma velha tapera abandonada.

Por fora, tábuas podres, carcomidas

e o mato entrando aos montes pelas frestas.

As estrelas que antes me sorriam

com aquele ar feliz, esperançadas

de ver-te entrar

por essa mesma porta

agora velha, torta, já empenada,

esticam seus olhinhos marejados

e úmidos de orvalho

pelas frestas quebradas do telhado

e recuam assustadas...

Os sabiás fugiram para longe

porque a velha mangueira do quintal

não deu mais flores

e não deu mais frutos.

Somente a longa sombra da saudade

escurece o quintal.

 

Quando a comprei,

há pouco mais de um lustro,

ela era um chalezinho de madeira

todo branquinho, alegre, sorridente.

Uma porta somente, uma janela

e um patiozinho na frente,

olhavam para aquela ruazinha

onde as crianças brincavam

e por onde desfilavam bronzeadas

turistas, nos seus trajes resumidos

enquanto a rede branca acalentava

os meus sonhos perdidos.

Entre os crepúsculos e as alvoradas,

a esperança cantava nos meus sonhos

onde o amor fez guarida:

– Ele virá, vais ver! Ele virá!

E a casinha sorria para a vida.

 

Mas o tempo, inclemente foi passando

e junto com ele tu também passaste

um dia, em minha porta

e não ficaste...

Mas se outra vez voltares, viageiro,

evita o chalezinho abandonado.

Volta sobre teus passos

e não olhes para trás...

Como a felicidade,

a rede branca não existe mais.

A esperança fugiu pelos vidros quebrados.

Os pássaros se foram.

As crianças cresceram.

A cadeira quebrou com o peso da saudade

e aquele sonho bom que acalentamos

como um filho dileto,

morreu quando partiste...

E nada mais existe. p. 27-29

 

 

SEMPRE HAVERÁ PRIMAVERA EM NÓS

 

Vem, meu amado!

E de mãos dadas vamos caminhar

por esse mundo afora,

atravessando o tempo, ao encontro da aurora.

Adiante de nós há uma estrada de luz.

Fujamos por aí.

Deixemos para trás as regras, os preceitos,

o que importa é o amor

e o amor nos conduz.

Vem, meu amado!

O dia já vem vindo das bandas do nascente.

O frescor da manhã já penetrou no quarto

e perguntou por ti.

Amemo-nos um pouco,

depois sairemos pelos campos em flor

levando o amanhecer do nosso amor

e vamos nos banhar nas águas do regato

e descalços pisar as pedrinhas do chão.

 

Vem, meu amado!

Há uma estrela luzindo

e chamando por nós.

Não percamos mais tempo.

É tão linda a manhã!

São tão verdes os campos

e o orvalho da noite deixa-os tão fresquinhos!

À sombra de uma árvore descansaremos.

Tecerei com meus braços o teu ninho

e te acalantarei com meu carinho.

Vem, meu amado!

Sempre é tempo de amar quando se encontra o amor.

Caminharemos juntos pela Eternidade,

não sentiremos frio nem teremos calor.

Eu te confortarei quando estejas cansado,

quando eu esteja cansada

tu me confortarás.

Me darás a beber na concha de tuas mãos

e eu farei para ti lindo versos de amor.

 

Vem, meu amado!

Temos diante de nós o Paraíso.

A estrela da manhã nos encaminhará.

Depois, que venha o céu, o mar, o infinito...

Nada será tão forte nem será mais bonito

que este bendito amor que já nasceu comigo.

O Éden é todo nosso. É só estender a mão.

Não importa o outono. Não importa o inverno.

Sempre haverá em nós primavera e verão. p. 35-37

 

 

POSSO MORRER COM O LUAR...

 

Vem, amor!

Estou te esperando.

Não te faças demorar.

Olha o mar como está lindo!

Como está lindo o luar!

Vem, amor!

Não custes tanto!

Posso morrer com o luar.

Meus sonhos sonham contigo.

Minhas mãos pedem tua mão.

Meu corpo pede teu corpo

para apertar contra o meu

num acesso de emoção.

Os cordames do meu corpo

só tu soubeste vibrar.

                    Vem, amor! Não custes tanto!

                    Posso morrer com o luar. p. 39

 

 

GAIVOTA

 

Gaivota ou gaviota,

como te queiram chamar.

Viageira, mensageira

de uma saudade sem fim.

Voa! Voa, companheira,

na distância de nós dois.

Cruza mares, cruza céus

enfrenta rudes tormentas

e vai fazer o teu ninho

na varanda do meu bem

e baixinho, ao seu ouvido,

conta o que ouviste de mim...

E se voltares aqui,

cruzando mares e céus,

dá-me notícias de lá.

 

Leva em tuas asas meu sonho

para que sonhe comigo.

Traz o seu sonho contigo

para com ele eu sonhar!

Gaivota, gaviota,

como te queiram chamar.

Como tu, quisera eu

poder emigrar também,

cruzando mares e céus

para encurtar a distância

que me afasta do meu bem.

Gaivota, gaviota,

vem me ensinar a emigrar!

Quero voar para ele,

quero aninhar-me em seus braços

enquanto posso voar! p. 45-46

 

 

FRAGMENTOS DE ILUSÃO

 

O vento passou gemendo

por cima do meu telhado.

Abri a porta, ele entrou

chamando pelo meu nome

e nem mesmo sei por

meu pensamento, querido,

foi voando pra você:

“Ele veio! Ele voltou”

Como você fez um dia,

ele também me sorriu,

fez-me um afago no rosto,

deu uma volta e se foi,

deixando flores e folhas

espalhadas pelo chão

– retalhos de fantasias,

fragmentos de ilusão... p. 47

 

 

COMO UM VERSO DE ÉLUARD

 

Meu amor veio e se foi

como as espumas do mar

deixando na minha boca

um gosto de preamar.

Quem me dera ser um barco

para nelas naufragar.

 

Suas mãos como a correnteza

seus olhos como o luar

das noites de plenilúnio,

me fizeram imaginar

um remanso nos seus braços

onde eu pudesse ancorar.

 

Seus dedos qual corredeiras,

sem que eu pudesse evitar,

deslizaram no meu corpo...

Joguei os remos no mar,

soltei as amarras do barco

e me deixei arrastar...

 

Meu amor veio e se foi

como as espumas do mar.

Sua boca tem a doçura

de um poema de Éluard.

Quisera ser uma estrofe

para nela demorar.

 

              Meu amor veio e se foi

              como as espumas do mar... p.59-60

 

 

O RIO E O MAR

 

Amo a tranquilidade das águas serenas

do rio, que descem cantando pro mar.

O doce ondulado das calmas maretas

que batem na areia

sem a machucar.

Adoro a cantiga serena da yara

em noites prateadas com a luz do luar

que me fala à alma,

que entorpece o espírito,

que não me magoa

nem me faz chorar.

Amo a placidez das coisas encantadas.

As lendas que falam de coisas bonitas,

do boto encantado, do uirapuru,

da cigarra amiga ao cair da tarde

ciciando na folha do pé de caju

                 Sou rio e não mar.

                 Sou yara e não ninfa.

                 Sou cabocla flor,

 

                 como dizia meu pai

                 com carinho e amor.

                 Sou musgo da pedra

                 que o vento arrancou

                 jogando no mar

                 e o mar destroçou.

 

Eu não sou aquele Nega Fulô

do romance escrito por Jorge de Lima

que conta a história de outros amores

bem mais diferentes do amor que te dou.

Da minha janela contemplo o horizonte

aberto, terrível, de ondas bravias

que se atiram ferozes nas pedras escuras

se despedaçando, quebrando-as também.

Que levam pra longe a mirada da gente,

arrastando, ondulando como uma serpente.

Adoro a mareta que vem se chegando

de manso, rolando na areia branquinha,

chegando, chegando, suave, maneira

e eu caminhando tranquila, sem medo,

esperando que venha, amorosa, cheirosa,

molhar os meus pés, me contar um segredo!

                 Prefiro ser lenda

                 a ser uma história

                 de heróis, de Vikings,

                 de naus com mil remos

                 lutando, matando,

                 sofrendo, morrendo

                 por uma coroa,

                 por um Imperador.

 

Sou mansa, sou fraca,

sou canto de pássaro,

sou água serena dos igarapés.

Sou vitória-régia que em noites de luar

esconde a morada dos tucunarés.

Meu grito de guerra não é grito de luta.

Não é de revolta,

não é de labuta.

É um grito de paz, é um grito de entrega...

É um grito de ave arrulhando no ninho,

na ponta de um galho que o vento balança

com voz de acalanto,

pra lá e pra cá...

Sou vitória-régia, não estrela do mar.

Sou limo que cobre o espelho do rio

formando uma colcha macia de veludo.

                 Sou tronco arrancado da margem, levado,

                 arrastado com fúria pro meio do mar,

                 tentando agarrar-se nos galhos, raízes,

                 cipós do barranco, querendo ficar...

                 ....................................................................................

                 Mas a noite vem vindo com sua solidão

                 e o tronco arrancado da margem é jogado

                 e então abandonado em um porto qualquer

                 de pedras sem alma e sem coração. p. 81-83

 

 

A FELICIDADE

 

No dia em que eu nasci

os anjos me disseram

que eu seria feliz.

Eu cresci procurando a tal felicidade

por todos os caminhos não antes procurados.

Comecei pelas praias, procurei pelos rios...

Na Amazônia sem fim perguntei para os pássaros

que nos galhos teciam seus ninhos de amor,

onde morava essa dona dos destinos da gente,

como seria ela e como se vestia.

Que idioma falava. Como a conheceria?

A resposta que ouvi foi que continuasse

a procurar por ela pela vida afora,

que logo a encontraria.

Tantas vezes de longe, eu vislumbrei seu vulto...

Uma sombra imprecisa, arisca e fugidia.

Eu tentei agarrá-la, mas logo se desfez

e minhas mãos inúteis se quedaram, vazias!

Continuei andando, continuei tentando

e quando já cansada desistia de encontrá-la,

bem longe a avistei, numa nuvem de pó,

sorrindo para mim, acenando com a mão.

Corri ao seu encontro, sorrindo de alegria

e quando já a julgava presa nas minhas mãos...

Ouvi meu coração chorando de desgosto

e uma lágrima amarga

rolando no meu rosto. p. 84

 

CECIM, Yara. Arabescos e outros poemas. Belém: CEJUP, 1990.