Poeta, contista, artista plástica e pesquisadora da realidade Amazônica, Yara Cecim nasceu em Santarém-PA, em 13 de maio de 1916. Tem uma vasta produção na área da cultura Amazônica e das artes. Seus poemas e contos estão publicados em dezenas de revistas, antologias, jornais, etc..., e foram distinguidos com os prêmios Samuel Wallace MacDowell e Terêncio Porto, da Academia Paraense de Letras. É autora de “Folha de Outono” (poesia, 1983) e Arabescos e outros poemas (poesia, 1990); Taú-Taú e outros contos fantásticos da Amazônia (1989), Histórias daqui e dali (contos, 1993) e Lendário: contos fantásticos da Amazônia (2004). A escritora faleceu em Belém-PA, no dia 26 de outubro de 2009, aos 93 anos.
ARABESCOS
No silêncio enervante do meu quarto
só tua ausência me faz companhia,
enquanto lentamente as horas passam
silenciosas, lentas e vazias.
De repente, uma luz se esgarça,
um perfume sutil de primavera
e o rumor cauteloso dos teus passos...
Pela porta entreaberta
um vulto se adelgaça
e na parede fria,
uma sombra que passa...
Estendo as mãos, tateio na penumbra
e o frio se faz mais frio nesse momento
e o vazio mais vazio entre os meus braços.
Sento na cama. Afasto o cortinado...
Pelo vidro embaçado da janela,
a lua cheia, sonâmbula e vadia
põe arabescos na parede fria
enquanto um pirilampo vagabundo,
buscando a lua como um seresteiro,
foge para o jardim, pela porta entreaberta
e vai dormir, feliz, no jasminzeiro.
O silêncio da noite me apavora
e mais uma esperança se evapora. p. 11
“NOSSA CASINHA”
A hera está subindo, se enredando
pelas paredes da Nossa Casinha
e dando a ela aquele ar tristonho
de uma velha tapera abandonada.
Por fora, tábuas podres, carcomidas
e o mato entrando aos montes pelas frestas.
As estrelas que antes me sorriam
com aquele ar feliz, esperançadas
de ver-te entrar
por essa mesma porta
agora velha, torta, já empenada,
esticam seus olhinhos marejados
e úmidos de orvalho
pelas frestas quebradas do telhado
e recuam assustadas...
Os sabiás fugiram para longe
porque a velha mangueira do quintal
não deu mais flores
e não deu mais frutos.
Somente a longa sombra da saudade
escurece o quintal.
Quando a comprei,
há pouco mais de um lustro,
ela era um chalezinho de madeira
todo branquinho, alegre, sorridente.
Uma porta somente, uma janela
e um patiozinho na frente,
olhavam para aquela ruazinha
onde as crianças brincavam
e por onde desfilavam bronzeadas
turistas, nos seus trajes resumidos
enquanto a rede branca acalentava
os meus sonhos perdidos.
Entre os crepúsculos e as alvoradas,
a esperança cantava nos meus sonhos
onde o amor fez guarida:
– Ele virá, vais ver! Ele virá!
E a casinha sorria para a vida.
Mas o tempo, inclemente foi passando
e junto com ele tu também passaste
um dia, em minha porta
e não ficaste...
Mas se outra vez voltares, viageiro,
evita o chalezinho abandonado.
Volta sobre teus passos
e não olhes para trás...
Como a felicidade,
a rede branca não existe mais.
A esperança fugiu pelos vidros quebrados.
Os pássaros se foram.
As crianças cresceram.
A cadeira quebrou com o peso da saudade
e aquele sonho bom que acalentamos
como um filho dileto,
morreu quando partiste...
E nada mais existe. p. 27-29
SEMPRE HAVERÁ PRIMAVERA EM NÓS
Vem, meu amado!
E de mãos dadas vamos caminhar
por esse mundo afora,
atravessando o tempo, ao encontro da aurora.
Adiante de nós há uma estrada de luz.
Fujamos por aí.
Deixemos para trás as regras, os preceitos,
o que importa é o amor
e o amor nos conduz.
Vem, meu amado!
O dia já vem vindo das bandas do nascente.
O frescor da manhã já penetrou no quarto
e perguntou por ti.
Amemo-nos um pouco,
depois sairemos pelos campos em flor
levando o amanhecer do nosso amor
e vamos nos banhar nas águas do regato
e descalços pisar as pedrinhas do chão.
Vem, meu amado!
Há uma estrela luzindo
e chamando por nós.
Não percamos mais tempo.
É tão linda a manhã!
São tão verdes os campos
e o orvalho da noite deixa-os tão fresquinhos!
À sombra de uma árvore descansaremos.
Tecerei com meus braços o teu ninho
e te acalantarei com meu carinho.
Vem, meu amado!
Sempre é tempo de amar quando se encontra o amor.
Caminharemos juntos pela Eternidade,
não sentiremos frio nem teremos calor.
Eu te confortarei quando estejas cansado,
quando eu esteja cansada
tu me confortarás.
Me darás a beber na concha de tuas mãos
e eu farei para ti lindo versos de amor.
Vem, meu amado!
Temos diante de nós o Paraíso.
A estrela da manhã nos encaminhará.
Depois, que venha o céu, o mar, o infinito...
Nada será tão forte nem será mais bonito
que este bendito amor que já nasceu comigo.
O Éden é todo nosso. É só estender a mão.
Não importa o outono. Não importa o inverno.
Sempre haverá em nós primavera e verão. p. 35-37
POSSO MORRER COM O LUAR...
Vem, amor!
Estou te esperando.
Não te faças demorar.
Olha o mar como está lindo!
Como está lindo o luar!
Vem, amor!
Não custes tanto!
Posso morrer com o luar.
Meus sonhos sonham contigo.
Minhas mãos pedem tua mão.
Meu corpo pede teu corpo
para apertar contra o meu
num acesso de emoção.
Os cordames do meu corpo
só tu soubeste vibrar.
Vem, amor! Não custes tanto!
Posso morrer com o luar. p. 39
GAIVOTA
Gaivota ou gaviota,
como te queiram chamar.
Viageira, mensageira
de uma saudade sem fim.
Voa! Voa, companheira,
na distância de nós dois.
Cruza mares, cruza céus
enfrenta rudes tormentas
e vai fazer o teu ninho
na varanda do meu bem
e baixinho, ao seu ouvido,
conta o que ouviste de mim...
E se voltares aqui,
cruzando mares e céus,
dá-me notícias de lá.
Leva em tuas asas meu sonho
para que sonhe comigo.
Traz o seu sonho contigo
para com ele eu sonhar!
Gaivota, gaviota,
como te queiram chamar.
Como tu, quisera eu
poder emigrar também,
cruzando mares e céus
para encurtar a distância
que me afasta do meu bem.
Gaivota, gaviota,
vem me ensinar a emigrar!
Quero voar para ele,
quero aninhar-me em seus braços
enquanto posso voar! p. 45-46
FRAGMENTOS DE ILUSÃO
O vento passou gemendo
por cima do meu telhado.
Abri a porta, ele entrou
chamando pelo meu nome
e nem mesmo sei por
meu pensamento, querido,
foi voando pra você:
“Ele veio! Ele voltou”
Como você fez um dia,
ele também me sorriu,
fez-me um afago no rosto,
deu uma volta e se foi,
deixando flores e folhas
espalhadas pelo chão
– retalhos de fantasias,
fragmentos de ilusão... p. 47
COMO UM VERSO DE ÉLUARD
Meu amor veio e se foi
como as espumas do mar
deixando na minha boca
um gosto de preamar.
Quem me dera ser um barco
para nelas naufragar.
Suas mãos como a correnteza
seus olhos como o luar
das noites de plenilúnio,
me fizeram imaginar
um remanso nos seus braços
onde eu pudesse ancorar.
Seus dedos qual corredeiras,
sem que eu pudesse evitar,
deslizaram no meu corpo...
Joguei os remos no mar,
soltei as amarras do barco
e me deixei arrastar...
Meu amor veio e se foi
como as espumas do mar.
Sua boca tem a doçura
de um poema de Éluard.
Quisera ser uma estrofe
para nela demorar.
Meu amor veio e se foi
como as espumas do mar... p.59-60
O RIO E O MAR
Amo a tranquilidade das águas serenas
do rio, que descem cantando pro mar.
O doce ondulado das calmas maretas
que batem na areia
sem a machucar.
Adoro a cantiga serena da yara
em noites prateadas com a luz do luar
que me fala à alma,
que entorpece o espírito,
que não me magoa
nem me faz chorar.
Amo a placidez das coisas encantadas.
As lendas que falam de coisas bonitas,
do boto encantado, do uirapuru,
da cigarra amiga ao cair da tarde
ciciando na folha do pé de caju
Sou rio e não mar.
Sou yara e não ninfa.
Sou cabocla flor,
como dizia meu pai
com carinho e amor.
Sou musgo da pedra
que o vento arrancou
jogando no mar
e o mar destroçou.
Eu não sou aquele Nega Fulô
do romance escrito por Jorge de Lima
que conta a história de outros amores
bem mais diferentes do amor que te dou.
Da minha janela contemplo o horizonte
aberto, terrível, de ondas bravias
que se atiram ferozes nas pedras escuras
se despedaçando, quebrando-as também.
Que levam pra longe a mirada da gente,
arrastando, ondulando como uma serpente.
Adoro a mareta que vem se chegando
de manso, rolando na areia branquinha,
chegando, chegando, suave, maneira
e eu caminhando tranquila, sem medo,
esperando que venha, amorosa, cheirosa,
molhar os meus pés, me contar um segredo!
Prefiro ser lenda
a ser uma história
de heróis, de Vikings,
de naus com mil remos
lutando, matando,
sofrendo, morrendo
por uma coroa,
por um Imperador.
Sou mansa, sou fraca,
sou canto de pássaro,
sou água serena dos igarapés.
Sou vitória-régia que em noites de luar
esconde a morada dos tucunarés.
Meu grito de guerra não é grito de luta.
Não é de revolta,
não é de labuta.
É um grito de paz, é um grito de entrega...
É um grito de ave arrulhando no ninho,
na ponta de um galho que o vento balança
com voz de acalanto,
pra lá e pra cá...
Sou vitória-régia, não estrela do mar.
Sou limo que cobre o espelho do rio
formando uma colcha macia de veludo.
Sou tronco arrancado da margem, levado,
arrastado com fúria pro meio do mar,
tentando agarrar-se nos galhos, raízes,
cipós do barranco, querendo ficar...
....................................................................................
Mas a noite vem vindo com sua solidão
e o tronco arrancado da margem é jogado
e então abandonado em um porto qualquer
de pedras sem alma e sem coração. p. 81-83
A FELICIDADE
No dia em que eu nasci
os anjos me disseram
que eu seria feliz.
Eu cresci procurando a tal felicidade
por todos os caminhos não antes procurados.
Comecei pelas praias, procurei pelos rios...
Na Amazônia sem fim perguntei para os pássaros
que nos galhos teciam seus ninhos de amor,
onde morava essa dona dos destinos da gente,
como seria ela e como se vestia.
Que idioma falava. Como a conheceria?
A resposta que ouvi foi que continuasse
a procurar por ela pela vida afora,
que logo a encontraria.
Tantas vezes de longe, eu vislumbrei seu vulto...
Uma sombra imprecisa, arisca e fugidia.
Eu tentei agarrá-la, mas logo se desfez
e minhas mãos inúteis se quedaram, vazias!
Continuei andando, continuei tentando
e quando já cansada desistia de encontrá-la,
bem longe a avistei, numa nuvem de pó,
sorrindo para mim, acenando com a mão.
Corri ao seu encontro, sorrindo de alegria
e quando já a julgava presa nas minhas mãos...
Ouvi meu coração chorando de desgosto
e uma lágrima amarga
rolando no meu rosto. p. 84
CECIM, Yara. Arabescos e outros poemas. Belém: CEJUP, 1990.
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