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sábado, 25 de fevereiro de 2023

GENTE DOS SERINGAIS

Álvaro Maia (1893-1969) 

Nas pequenas cidades do interior amazonense, como em seringais e povoados, homens admiráveis, pela audácia e pela coragem, revigoram-se das canseiras do dia, com os ouvidos atentos às vozes e aos cantos que as ondas filtram das distâncias. Transporto-me para os seus lares, com o mesmo perene desvairamento pela região singular, que plasmou a nossa vida para a reação e o labor.

As lamparinas errantes nos barracões enormes, em aparições de fogos fátuos, acendem esperanças, ou lembram flamas de triunfo às águas, que se enrolam em procissões barulhentas.

Escrevo no interior, vendo e sentindo a influência genésica da natureza. E somos, na verdade, fragmentos dispersivos dessa natureza, impregnados por suas ansiedades e suas forças construtoras.

*   *   *

Uma vez, ao visitar o Nilo, Ludwig, deslumbrado ante as represas de Assuán, viu, no destino dum homem, a imagem e o destino de um rio. Mais: viu “num curso dágua o destino dum homem”.

Ao calor dessa linda evocação, qual o nosso destino, qual o desdobramento da nossa existência, milhares de compatrícios do Madeira, civilizados ou ameríndios, que habitais os barrancos, as terras-firmes, as ilhas, as serras, na parte exclusivamente brasileira?

É, por certo, o destino das lutas generosas, das vitórias prelibadas em renúncias, as derrotas sofridas sem tibieza, nessa escalada tenaz pelo desbravamento do sul-amazônico, desde o século XVII, quando as incursões se realizaram ao impulso dos remos, através dos estirões infindáveis, unidos pelas curvas sucessivas e desenhados pelos blocos de terra-caída.

*   *   *

Rio-enigma, de serenidade aparente e correntezas bravias, traz, na revulsão dos banzeiros, as ambições de três pátrias adolescentes, a música de dois idiomas novilatinos e dos sonoros dialetos primitivos.

Espalha os manadeiro pela Bolívia inteira, mas um braço poderoso, o Beni, caindo próximo ao Peru e às nascentes do Amazonas, aperta os contrafortes andinos, sente-lhes os ventos frios “nos nevados de Chacaltáya”; o outro, o Guaporé, infletindo por Mato Grosso, mistura-se às águas do Prata, por intermédio do Paraguai, nos igapós oceânicos das invernadas.

Singular fraternização!

Bebemos, em suas correntezas vertiginosas, as inspirações das duas maiores maravilhas do continente sul-americano – os Andes e o rio da Prata.

Mais tarde, após a decantação em mais de 400 quilômetros, arregimentando as águas de tantas origens, continua, no solo pátrio, a obra formidável de aproximação fraternal: fala ao Purus pelo Abunã, ao Tapajós pelo Canumã e, no delta, estende as comunicações desde o Purus até o paraná do Ramos.

*   *   *

Rio-esfinge, Rio Sagrado, Ganges da Amazônia!

Escutou, na infância luminosa, os hinos dos Incas, nos embates pela Glória do seu Império, nos clamores pela agonia de sua raça: e ainda, nos barrancos dos Marmelos e do Maici, os restos das tribos litorâneas, varridas pelas massas conquistadoras.

As velhas tribos não desapareceram totalmente: de vez em quando, uma flechada certeira avisa aos invasores civilizados, esquecidos dos limites legais, que elas não estão dormindo. As lendas revivem e cada índio esconde um porantim dentro do coração.

A civilização, em rios novos, inicia-se, quase sempre, pela foz. O Madeira, pelos afluentes do Beni, banha La-Paz, joia boliviana, e inverteu o postulado sócio-geográfico. Civiliza também pela nascente.

Tenho mistério dos imprevistos: há enseadas longas em surdina, onde as águas remansam em calma surpreendente, e desvãos encachoeirados, em que se percebe o barulho para além de doze quilômetros...

Suas águas, odiando a monotonia, são amarelas no inverno, azul-turquesa no verão, verde-esmeraldina no Candeias, escuras no Machado, onde Raimundo Monteiro divisou cordas de harpas nos galhos balouçantes dos araçás.

Rio generoso, em cujas águas se dissolvem, como ofertas a outras gentes, o barro das margens alagadas, casar árvores de longas distância e até os ossos dos desbravadores, perdidos nas sepulturas lavadas pelas enchentes...

*   *   *

São iguais a esse rio e seringueiros pacientes, corações amigos que se abraçam no verão e quando as chuvas fogem, para que as praias, como placentas dardejantes, posso aviventar os primeiros milagres da agricultura, às fecundações do sol esbraseado.

Seu homem reflete o ambiente, não podemos fugir à tenacidade do rio indefinível, cujos nascedouros brotam de escarpas de montanhas, acariciadas pelos furacões do Pacífico, e de igapós imensos, ajoelhados às vertentes que se debruçam para o Atlântico.

Poucos adivinham o heroísmo incessante: sob a selva infinita, incendiada pelas copas de pau-d’arco, operários-escafandros, vencendo e imortalizando os trópicos... Batelões nas corredeiras, pulando, como animais fantásticos da pré-história; canoas esguias, que apunhalam os lagos em repouso... Árvores derribadas, tempestades vencidas, cheia-grande que se foi e voltará.

*   *   *

Humaitá plantou-se na parte média do rio-enigma, exatamente no ponto em que os campos-gerais se engolfam na floresta para morrer às margens altas, pontilhadas de árvores gigantescas.

A torre fina e branca, ressurgindo de um fundo de palmeiras, aguarda, no bucolismo do interior, as novas gerações que hão de prosseguir os mesmos ritos de resistência e trabalho.

Exalte-se, acima de tudo, o seringueiro brônzeo, gênio das águas barrentas, provindo da fusão de ameríndios e nordestinos, em sua faina permanente, grudado às canoas nas manhãs nevoentas, investindo pelas selvas em madrugadas claras ou chuvosas, na eternidade da construção e da intrepidez.

Bem nos conhecemos, porque somos iguais, porque bebemos na infância, ardendo em interrogações, as águas que trazem o cristal das montanhas e o barro das planícies encharcadas.

Somos um só, nesta hora de recordação, – homem que labuta quase só, homem que ofereceu ao solo a hóstia do seu próprio corpo, terra-maternal, que acolheu as sementes para o esplendor da germinação, terra-irmã, que, divinizada pelo sacrifício, deu ao espírito, nas horas de maior abandono, o milagre da esperança, do sonho e da crença.

 

MAIA, Álvaro. Gente dos seringais. 2ª ed. Brasília: Senado Federal, 1987. p. 16-19

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

BUZINA DOS PARANÁS

BUZINA DOS PARANÁS
Álvaro Maia (1893-1969)

OS REMADORES

A tarde é linda... A noite desce...
O sol é uma âmbula de prece
sobre a indolência destas águas...
Ao longe, vão doidas canoas:
levam nas popas e nas proas
homens viris chorando mágoas...

Os remos na água bordam rendas...
Fulgem, refulgem velhas lendas,
longos terrores que a alma espraia,
– posses cruéis, punhais à vista,
ou pardos botos em conquista
a moças nuas, sobre a praia....

Nos ventos fogem cavatinas
de langues, frases cristalinas
do remador, como um lamento...
penso em teu vulto... E, deslumbrado,
ouço no canto o meu passado...
E o canto se ergue, lento e lento...

– “Ouve estas vozes, em lembrança
de quem passou pela bondade
com o pulso em febre e a alma em vulcão...
E, ermando a vida de esperança,
enquanto vais à claridade,
vai procurando a escuridão...

Onda materna que me embalas,
barrancos de ouro e de granizo,
noite em caminho para o mar,
– tendes o céu de suas falas,
o inferno azul de seu sorriso,
a lua e o sol de seu olhar”.

Morre a cadência... Outra garganta
apresta a voz dolente, e canta
crimes brutais, nervosas ânsias...
São os sertões, nervosas demandas,
beijos furtados nas varandas,
raptos perdidos nas distâncias...

Uma canoa, quando passa,
é um violão de amor e graça...
O remador, em desafio,
sacode os remos, duros dedos,
e une seus sonhos e segredos
aos das florestas e do rio...

O rio segue, entre balanços,
em correntezas e remansos,
aos cavos urros do rebojo...
Mais tarde, acalma e, então, recorda,
Presa no azul, barrenta corda...
Vibrai-a, irmãos de gleba e arrojo!

Ó seringueiros-cantadores,
quando remais, cantando amores,
por estas tardes de áureo encanto,
o rio canta pelas bolhas,
a árvore canta pelas folhas
e tudo canta em vosso canto... p.29-31


SERINGUEIRA

Ó gérmen do celeiro, ó bendita semente,
que trazes no tecido o vigor destas zonas,
brota, deslumbra, mostra o delírio fremente
das florestas, dos céus, dos rios do Amazonas.

Quantas bênçãos de luz não te brilham nas franças,
que harmonizam de dia o rincão que adoramos...
Resplende em tua fronde um fanal de esperanças,
solta hosanas à noite o oboé dos teus ramos...

Rainha poderosa imperando na mata,
com tua ardente seiva o terreno enriqueces...
E, às carícias do sol e aos luares de prata,
esbanjas a bondade, entreabrindo-te em preces...

És a imagem ideal do crescer formidando,
do holocausto divino em favor de quem chora...
Dão-te golpes na casca e, em resposta, cantando,
dás teu leite e teu pão, que são gotas da aurora...

Sacodes tua copa aos clamores do vento,
ofereces ao solo o teu pólen fecundo...
Sorves pela raiz o abençoado alimento
para dar alimento aos que vivem no mundo...

ó florestas, ó céus, ó rios do Amazonas,
estacai um momento e, em delírio fremente,
levantai orações ao porvir destas zonas,
ao galho, à folha, à flor, ao perfume, à semente... p.115


SUMAUMEIRA

Venho adorar-te à sombra da folhagem,
olhando o nascente, ao vento ondeando a fronde...
E solta o farfalho, que responde
à voz das cousas, num bramir selvagem...

Teu verde-branco, verde-azul, aonde
a passarada canta em vassalagem,
vem procurar ventura na estiagem,
que doura as copas e a fartura esconde.

Ó samaumeira patrícia! Infiltra-me na fronte,
quando o corpo volver ao transformismo,
as riquezas do ar, as bênçãos do horizonte.

Leva minha alma ao céu, que o bem resume,
e espalha-me, em piedoso romantismo,
na luz, no pendão e no perfume... p.117


ROMANCE AZUL

I

Eu passava por ti, no isolamento
dos que vivem na Dor, quando falaste...
De tua voz fluía um canto...
Fui bebendo-o, lento e lento,
sonambulando num deslumbramento...

Por que te ouvi? Por que falaste?
Eu me algemara ao desalento
e resistia à angústia da alma em pranto,
por uma poeira de sonho,
na poesia do Sonho...

II

Fremiu, em nosso encontro, a força estranha,
a força das torrentes
                trementes,
                        seducentes
                                  da montanha...
E falaste de novo... Em choro humilde,
o prelúdio das grandes amorosas
melodizou as eras...

As mulheres da lenda, Isolda e Bruneilde,
de bruços nas ameias silenciosas,
esfolhavam primaveras...
As musas da tragédia, as tristes musas
– Desdêmona e Francesca,
vagavam fúneras, confusas,
ante a sorte dantesca...

As noivas dos poetas,
estilizadas em poemas,
as amantes inquietas
da Terra americana,
Moemas e Iracemas,
tudo eu ouvia
na pastorela soberana
que teu lábio escorria...

Falaste... E rosais floriram,
e mares tremeram,
e ventos cantaram...
Porque, em romântica surdina,
radiou a voz divina
de todas as que sentiram,
de todas as que sofreram,
de todas as que amaram...

Em baixo, o abismo escancarava
a fauce em lava...
O amor, ao som de harpas,
nos conduzia nas escarpas,
para onde a morte espumejava...

III

Tudo esqueci!
Que importa
o mundo, com horror, me feche a porta,
sendo por ti!

Que importa, injustamente, o atro labéu
me ultraje o rosto, em frenesi...
Vejo no insulto um luar solto do céu,
sendo de ti!

E si
Meu sangue for preciso à tua vida,
rompo a veia, abro-a em ferida,
abro-a por ti!

IV

Vi, junto ao meu, teu sorriso moço,
ouvi teu sangue estuar dentro da artéria...
Desse íntimo alvoroço,
saíste pura,
como vieste...

Si à tua paz etérea
é necessária a minha desventura,
estendo as mãos ao sacrifício,
preso à bondade que me deste...

Tombem sobre mim
as iras do flagício
e, enfim,
alvoreças em árvore feliz!
Branca de flores, vendo-me raiz,
enluarás de alvorada
a sombra sempre derramada
sob a copa feliz!

V

Não se remove o amor, quando entrelaça
dois destinos que se uniram
ao fulgor de procelas, na desgraça...

Doma-se, às vezes... Mas, um dia,
os que as almas em beijos confundiram
se encontram em divina rebeldia,

e vão na vida, como as águas,
de pedra em pedra repartindo as mágoas...

VI

Entre nós dois, talvez possa fulgir
a ausência... frígidas, sem tréguas,
nevarão milhas pelo mar
e, na terra, quilômetros e léguas...

Bendito o temporal que nos unir,
maldigo a calma que nos separar...
Quando se ama para sempre,
distância não assombra,
nem tempos desanimam...
Um e outro ficaram sempre
frente à frente, olhos no vácuo... E, toda hora,
tia imagem de aurora
e meu vulto de sombra
se abraçarão, levados por um imã...

Teremos, curvos à fatalidade,
corpos sem alma, corações já mortos...
O corpo é transição, a alma é eternidade,
e almas e corações são livres como o vento...

Longe, voarás, por certo,
do abrigo em que morares,
através de angras e portos,
de selvas e mares,
em busca de meu pensamento...

E, cheio do ideal que nos prendeu,
há-de fugir meu coração deserto,
como andorinha viúva, para perto
do teu!

VII

O real prazer da vida não no sente
o que o amor preliba em doses
com o casto aspeito
de um convalescente...

Filho de glebas em revoltas,
sinto-o um caudal em nevroses,
rebelde e insatisfeito...
Não torna o rio ao nascedouro,
nem renúncia às voltas
dos vales em dilúvios...
Também não renuncio à chama de ouro
dos teus dormentes olhos núveos...

Dar-me-ás sempre essa luz de que me inundo,
em meu tormento sobre-humano...
Condenados embora, iremos pelo mundo,
num romance lindo,
como o caudal para o oceano,
                  – de queda
                         em queda,
                                  bramindo,
                                          borbulhando,
                                                   batalhando... p.173-178


RENÚNCIA

Entre o teu vulto ardente e o meu destino incerto,
fulgure este deserto, este abismo fechado,
– e ruja o coração, como um grande forçado,
vendo-te sempre longe, embora estejas perto...

Mas bendito esse abismo e bendito o deserto,
que nos cavam no mundo um fosso ilimitado:
não terás minha voz, como um grito abafado,
nem verei teu olhar, duplo sol entreaberto...

bendito esse deserto e bendito esse abismo!
Não sentirás a dor, que me acorrenta os passos,
o impossível gelar-te as faces de agonia,

Nem cismarás em pranto as torturas que cismo,
– beijo morto ao nascer, rósea estátua sem braços,
que vejo em desespero e não terei um dia! p.201

FANTASMAS

– “Fantásticas visões, virgens de olhos ardentes,
que passaram sorrindo em meu longo caminho,
constroem beijos de mel, ressoantes de carinho,
em colmeias que são tremendas urnas quentes...

Amei-as furioso, como a árvore o torvelinho...
Agitei-as com raiva em meus braços potentes,
desprezando-as após sem folhas viridentes,
sem torneios de vento e sem canções de ninho...

Clamei, mas era tarde... às minhas rudes vozes,
responderam da treva, em clamores de fera,
rugidos de revolta e protestos ferozes...

Só tu me apareceste, ó imagem soberana,
ó triste Solidão, doce noiva sincera,
e sincera talvez por que não és humana!” p.245


EMPAREDADO

– “A terra é um canto elíseo... O céu é um grande centro
de ouro e fogo a fulgir, – sentinelas da aurora...
Mas, apoiado à dor, noiva que estua e chora,
a cela da saudade, entre soluços, entro...

A dúvida acompanha o elo em que me concentro,
ergue interrogações... E, nos prantos que irrora,
mostra o contentamento a explodir lá por fora
e um rude desespero a vibrar aqui dentro...

Estudo as sensações de toda fronte jovem,
sondo meu coração, rubro céu sem caminho.
E fujo, na agonia em que me desespero

E no encanto triunfal das forças que me movem,
à ânsia de desejar tudo quanto adivinho
e à fúria de viver em ideais que não quero... –” p.247


PÊNDULO QUEBRADO

O implacável cronômetro da vida,
nos mecânicos giros errabundos,
ao bater os minutos e os segundos,
vai ficando com a órbita partida.

Enquanto corre o pêndulo, na lida
de revolver as eras nos seus fundos,
surgem do nada gêneses de mundos
e ao nada volta oque não tem saída.

Corpo, frágil ponteiro da existência,
coração, que alimentas e transformas,
perdestes o claror da adolescência...

Mas, nas lutuosas noites merencórias,
haveis de reviver por novas formas
para a ressurreição de novas glórias. p.277


MAIA, Álvaro. Buzina dos paranás (poemas). Manaus: Sergio Cardoso, 1958.
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