terça-feira, 27 de abril de 2021

ALBERTO DINIZ: Vida que passa (memórias)

Alberto Diniz (1868-1956)

 

Já agora, tornara-se a vida para mim insuportável em Juiz de Fora e meu único desejo era o de dali me afastar, partindo para bem longe, onde, não sendo conhecido, não fosse a minha dor oferecida em espetáculo. Sabia que o presidente Afonso Pena ia por em execução a reforma judiciária do Território do Acre e escrevi a meu primo Álvaro, pedindo-lhe que expusesse a seu pai a minha situação e dele solicitasse o meu aproveitamento em uma das comarcas a serem ali criadas. A resposta não se fez esperar e veio mais favorável do que eu poderia esperar. Seu pai, que bem conhecia a minha idoneidade intelectual e moral, me nomearia, não juiz de direito, mas desembargador do Tribunal de Apelação. Preparei-me para a viagem, pondo a minha vida em ordem e confiando minha família aos cuidados de meu irmão, com quem sabia poder incondicionalmente contar. E parti para o desconhecido.

Comigo e com idêntico destino seguiram alguns outros colegas, Manoel Adriano de Araújo Jorge, como eu desembargador, João Rodrigues do Lago, juiz de direito da comarca de Rio Branco, Clovis de Barros, procurador seccional e Carlos Horta, adjunto de promotor de um dos termos da comarca de Juruá. Quinze dias depois chegava a Manaus, onde passei para o gaiola que me levaria a Sena Madureira, sede do Tribunal. Ia o navio superlotado, mal encontrando-se um lugar onde pudesse estar à vontade. Em baixo, na classe segunda, viajavam, de mistura, homens e alimárias, numa horrível promiscuidade. Monótona viagem pelo sinuoso rio Purus, em que a paisagem era sempre e invariavelmente a mesma, a praia de um lado, do outro o barranco, num horizonte fechado pela densidade das matas intermináveis. Descia às vezes à classe inferior, onde me sentia nauseando com aquele espetáculo de sordidez e miséria. Entretinha-me ali a ouvir alguns rapazes, que, supondo o Acre um novo Eldorado onde corre fácil a vida e o dinheiro abunda, para lá se dirigiam com o coração a transbordar de esperanças, na certeza de poderem, decorrido curto espaço de tempo, regressar com vastos capitais aos lares familiares. Coitados! Não faltava a bordo quem, com diabólico prazer e sem a mínima piedade, lhes fosse arrancando da alma as alentadoras esperanças. Velhos presidiários do inferno verde lhes diziam de suas passadas ilusões, bem depressa extintas em amargas decepções. Contavam-lhes que também partiram de suas terras embalados por esses mesmos áureos sonhos de fortuna e que, longos anos decorridos, apenas enfermidades tinham adquirido e dissabores experimentado. E quantos outros, vindos com eles na mesma caravana, tombaram logo ao chegar e nem ao menos o triste consolo tiveram de ver de novo os parentes e de lhes narrar as misérias de toda a ordem, físicas e morais, que longe deles sofreram. À medida que nos aproximávamos do termo da viagem os pobres rapazes, sob a nociva influência de tão lúgubres narrativas, iam perdendo o entusiasmo dos primeiros dias e se deixando vencer pelo desânimo. Ouvi um deles francamente se lastimar de irremediável loucura que cometera sem deixar sua terra, onde lhe era o trabalho escassamente remunerado, mas lhe sobravam carinhos e afeições.

Chegamos, finalmente, após longos e monótonos quarenta e cinco dias de viagem, a partir do embarque no Rio. No alto do barranco encontravam-se já à nossa espera o prefeito do departamento, Cândido Mariano, o desembargador Farnése, vindo de Juruá, de que fora na anterior organização judiciária juiz distrital, e o engenheiro Bueno de Andrada, que acumulava as funções de prefeito de Juruá e de encarregado das obras que, de ordem do governo, se estavam realizando no Território, no propósito de se facilitarem as comunicações entre os seus diversos departamentos, obras em que muito se despendeu sem apreciável resultado.

Sena Madureira, recentemente fundada pelo general Siqueira de Menezes em terreno alto às margens do Iaco, nas proximidades de sua confluência com o Purus, não passava de uma pequena povoação encravada na mata virgem. Suas casas, em ruas aliás bem alinhadas, eram de modesta aparência, construídas de madeira e em sua quase totalidade cobertas de palha de paxeúba. Higiene era cousa ali desconhecida. A água potável era extraída de cacimbas abertas ao lado de fossas, sujeita portanto a fácil contaminação. Não passava a cadeia pública de miserável cubículo, coberto de zinco, onde os presos morreriam asfixiados, se ali passassem o dia, mas a ela só se recolhiam à noite. Durante o dia andavam soltos e sem vigilância, servindo as autoridades no fornecimento de lenha e de água para o banho. Criminosos de morte eram vistos a perambular pela cidade sem estranheza por parte da população. Não me consta ter havido qualquer evasão. O comércio estava, com raríssimas exceções, entregue aos sírios, criaturas ordeiras e que pouco incomodavam as autoridades. Distração nenhuma, e, se algum de nós queria fugir à monotonia, tinha que tomar uma canoa e ir ao vizinho seringal do Caeté, onde era pelas famílias ali residentes gentilmente acolhido. Vivia-se em quase completo isolamento, não havendo telégrafo e só por via fluvial, em demorada e custosa viagem, se podendo entrar em comunicação com o mundo exterior. Era, pois, um dia de festa para a população quando um navio apitava na curva, anunciando a sua chegada. Corrida geral para o barranco, no bem explicável interesse de saber-se o que pelo mundo ia ocorrendo. Se malas de correspondências trazia o gaiola, afluíam todos ao correio, na ânsia de receberem as cartas que lhes trariam notícias dos entes queridos além deixados, notícias atrasadíssimas, mas em todo o caso notícias. Alguns, nada tendo recebido, afastavam-se cabisbaixos, com as saudades a roerem-lhes os corações. Liam-se os jornais a começar pelos de mais recente data, às pressas primeiramente e depois na íntegra, notícia por notícia. E, nesse dia, a tristeza era maior e maior a desolação, o pensamento voltado para regiões distantes, na imensa saudade dos que por lá ficaram.

Pela recente reorganização administrativa e judiciária, ficara o Território constituído de três departamentos, entre si independentes e diretamente subordinados ao Ministro da Justiça, de um Tribunal de Apelação com jurisdição em todo ele e de três comarcas subdivididas em termos. Ocupava o cargo de prefeito do departamento do Alto Purus, cuja sede era Sena Madureira, o dr. Cândido Mariano, engenheiro militar e ex-discípulo de Benjamin Constant, a quem com entusiasmo acompanhara na propaganda republicana. No combate aos cangaceiros de Antônio Conselheiro tivera, como comandante da polícia amazonense, atuação muito destacada. Ótima criatura, inteligente e de boa cultura. Não soubera, entretanto, resistir à influência algo boêmia do ambiente amazonense. A população do departamento, como a de todo o Território, era em sua quase totalidade composta de brasileiros nordestinos, acrescida nos últimos tempos de outros vindos das mais diversas regiões do país e ainda de estrangeiros de várias nacionalidades, da Síria principalmente. Alcançara a borracha elevados preços e de toda a parte vinha gente atraída pelo fascínio do ouro negro. Morriam muitos, vítimas das endemias ali reinantes, regressavam outros alquebrados por moléstias e de toda a sorte de provações. Mas a corrente imigratória crescia sempre, chegando os gaiolas atestados de gente e de mercadorias e regressando superlotados de borracha. As casas aviadoras de Belém e Manaus, contando com fabulosos lucros, facilitavam fornecimentos aos proprietários de seringais. Estava o Acre em seu período áureo e o dinheiro ali corria a rodo, gasto, aliás, com a mesma facilidade com que era adquirido. O foro era movimentadíssimo, nele se pleiteavam causas de alto valor resultantes das fáceis transações de Belém e Manaus. Não faltaria, pois, trabalho ao Tribunal. Tal o panorama de Sena Madureira, quando ali aportamos em maio de 1908.

 

DINIZ, Alberto. Vida que passa (memórias). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943. p. 41-45

quarta-feira, 21 de abril de 2021

UM HOMEM IMPORTANTE

Erasmo Linhares (1934-1999)



Decalcomania. Muito natural. Todo homem sério e importante é vulnerável às manias – seja de coelhos, rosas, cães de raça, cachimbos ou mulheres, que é mania recomendável embora dispendiosa. E não era ele um homem importante e sério? Ou melhor, não iria sê-lo?

Aliás, isso foi só no começo. Um homem assim, quando menos, deve nomear algumas coisas em inglês. Por isso a mania passou a ser chamada de hobby, não sem uma consulta prévia e convenientemente velada a padre Dalton, à hora do almoço, quando o pároco, sozinho na igreja, consumia suas horas de sesta.

Mania ou hobby a coisa não mudou de aspecto – figurinhas e figurinhas –, homens, camelos, tirolesas, vedetes de biquíni, santos, bailarinas, tudo enchendo álbuns e cadernos e, na falta destes, o volumoso de receitas de dona Marieta, presente de aniversário dado por uma caríssima amiga. Coisinha de nada, afinal, já que Acácio seria um homem importante. Teria de ser gente, como repetia à paciência inesgotável de dona Marieta que, se algumas vezes se lamentava, não deixava outras tantas de sorrir-se lisonjeada com a ideia de possuir um marido importante e respeitado. Esforçava-se. Esmerava na lavagem e no ferro, para a satisfação quase sensual de admirar o seu homem, empertigado e brilhante no terno de brim impecavelmente engomado, subir no estribo do bonde, teso como um poste.

Acácio jamais sentava – medida resultante das variadas experiências para não amarrotar a roupa até à entrada triunfal de todos os dias na Coletoria de Rendas.

Terceiro Arquivista Padrão “C”, era verdade, Vencimento minguado, atrasado de dois meses e distribuídos criteriosamente entre o padeiro, o Joaquim da mercearia e outros compromissos inadiáveis, de modo a sobrar para as figurinhas coloridas, o cigarro filter de luxe, o conhaque velhíssimo e, às vezes, para o joguinho de cartas. Homem importante fuma cigarros filter de luxe, bebe conhaque envelhecido oitenta anos em tonéis de carvalho e joga cartas.

Filhos? Graças a Deus só tinha o Joca, mas isso porque as medidas de precaução se multiplicavam. Cuidados especiais, malabarismos inventados com paciência e resignação, não sem queixas de dona Marieta, para quem cabia, na grande maioria das vezes, a tarefa de ficar no meio do caminho.

Clube. Homem importante tem clube. É membro da diretoria. Pif-paf, bacará, carteado no sossego, sem os inconvenientes da vigilância policial. Festas, danças. As danças. Não foi fácil. O Tâmisa-Clube, de gente rica – fica não fica, entra não entra. Não ficou nem entrou. Onde estavam os fundos? Terceiro Arquivista Padrão “C”, marido de dona Marieta, mulher esquiva às modas elegantes, não fuma nem bebe uísque, não faz regime para emagrecer e nunca fez plástica na vida. Como então ser admitido no Tâmisa?

Mas, se não o aceitou o Tâmisa, aceitou-o de bom grado a Soberana Sociedade Recreativa, Cultural e Esportiva Unidos do Bom Retiro, entidade de velhas e gloriosas tradições e detentora do honroso título de bi-campeã suburbana de dama e dominó.

Está começando, Acácio, você vai longe homem. Já secretário da Sociedade. Você vai longe homem. Dona Marieta torcendo pelo marido, feliz da vida.

E ia mesmo. Promessas, algumas vezes se cumprem. Então o deputado dr. Fulgêncio do Valle e Silva, líder de bancada e figurão do Governo, não era primo em terceiro grau?

– Acácio, você vai ser Arquivista padrão “L”. “L”, Acácio.

Custou um pouco mas saiu. Num dia inesperado o Diário Oficial publicou num cantinho de página que logo passou a ocupar o lugar mais destacado do maior e mais novo livro de figurinhas:

“Nomeando Acácio Leite Busão para exercer, efetivamente, de acordo com o Art. 32 da Lei n.º 121 de 29 de fevereiro de 1944, combinado com o Art. 15 da Lei n.º 437 de 11 de março de 1948, o cargo de Arquivista padrão “L” do quadro permanente do Poder Executivo, lotado na Coletoria de Rendas da capital.”

– Combinado com o artigo 15 – até o Joca já sabia decorado.

Naquela noite dona Marieta não parava. O ferro corria espalhando a goma de estearina no terno de brim branco – para frente, para trás, forcejando para baixo, assoprando no fundo quando o diabo do ferro esfriava.

Meia-noite, lá estava o terno luzindo na cruzeta. Com ele, no outro dia, Acácio iria à Secretaria do Interior assinar o termo de posse.

Homem importante, aquele Acácio. Notava-se pelos ares superiores quando, empertigado, subiu no estribo do bonde e acenou jogando um beijo na direção da janela onde dona Marieta sorria, feliz e sensual.

Custava Acácio. Almoço pronto, uma hora da tarde. Naturalmente os amigos em algum festejo. Também era justo. Arquivista padrão “L”. Paciência.

Telefone na padaria:

– Dona Marieta, telefone pra senhora.

O coração bateu forte contra o peito. Um friozinho escorreu da cabeça aos pés. Saiu correndo – Meu Deus, quem será a esta hora?

– Alô, é dona Marieta Costa Busão?

– É.

– Aqui é da Polícia.

– Polícia? Que foi que eu fiz?

– A senhora não fez nada, o seu marido é que morreu no desastre de bonde da rua Tamandaré. Quarenta e oito pessoas ao todo. O maior desastre da história deste país.

Quem a socorreu foi o Totonho, caixeiro da padaria – afinal a tinha nos braços.

No outro dia os jornais publicavam a fotografia de Acácio e contavam as coisas que ele nunca fez nem pensou.

Dona Marieta, chorando ainda, recortou o clichê com a tesoura de costura e pregou-o na capa do maior livro de figurinhas. Lia e relia a notícia e balançava a cabeça sobra a página.

– Homem importante, esse Acácio.

 

LINHARES, Erasmo. O tocador de charamela. Manaus: Edições Rádio Rio Mar, 1979. p. 55-59

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A obra de Erasmo Linhares (1934-1999) é um testemunho vívido dos dramas, das angústias e esperanças do ser humano. A temática recorrente de seus contos é a vida, o homem em face de seu destino, a precariedade do cotidiano, sua insignificância, o sentido da liberdade, o mundo e seus mistérios. Seus textos se afirmam pelo conteúdo de humanidade que vibra em seu discurso ficcional.

 

TELLES, Tenório; GRAÇA, Antônio Paulo. Estudos de Literatura do Amazonas. Manaus: Editora Valer, 2021. p. 477

sexta-feira, 9 de abril de 2021

TRÊS POEMAS DE ELIANA CASTELA


LAGO

 

O lago do Silêncio

engoliu a claridade,

fim de tarde, noite fria.

O lago do Silêncio

evapora o dia.

Silentes, pescadores

margeiam as águas,

dia e noite a testemunhar

o suceder de luz e sombra.

O silêncio é habitat

e armadilha dos peixes

- todo dia é do pescador.



TEATRO

 

Primeiro ato-me,

Segundo, terceiro...

Desato o choro,

Presa à cena

Arte trágica

Nelson Rodrigues

Medos e prantos.

Do caos no trânsito

Da vida e da morte

Dos sem sorte

Das tragédias que nutrem

Todos os atos

no palco dramático.



NOVELO

 

Ao ver-se inerte, na poltrona da sala

Sentiu uma angústia sedentária...

Gorducho, entrelaçado,

Preso às próprias amarras,

O novelo resolveu rolar.

 

Caído ao chão desfez-se em fio,

Seu corpo afastando-se da ponta,

Alongava-se infinito.

 

Às vezes surgiam nós,

Alguns frouxos, outros firmes...

Todos dificultavam seu desenrolar.

 

Em desalinho, enroscava-se a tudo

que encontrava no caminho.

Sentia liberdade ao sair mundo a fora

sem estar preso a laços ou a nós.

O novelo deu o ponto final

Seguiu a linha da vida sem nada tecer.

 

p.s. pinturas também de autoria de Eliana Castela.