terça-feira, 28 de dezembro de 2021

CLENILSON BATISTA, UM ARTISTA ACREANO CONTRA A SEDUÇÃO COLONIAL

 João Veras


Conheci Clenilson Batista quando conheci o bairro da capoeira, o fabuloso mundo da minha infância, da nossa infância.  Nasci no bairro da cadeia velha, onde o rio acre passa nos quintais. Aos oito anos, em plena copa de 1970, fui morar ali, agora próximo ao igarapé da maternidade, em que, como no rio, se tomava banho e pescava. Hoje tornado canal de esgoto construído em moderna alvenaria justo pelo governo da sustentabilidade ambiental. 

A capoeira, é assim que nos reportamos ao bairro, fica no centro da cidade ao lado do estádio José de Melo, em que acontecia de tudo, inclusive o campeonato acreano de futebol que só tinha time de Rio Branco. A capoeira sempre esteve perto de qualquer coisa: dos circos que circulavam pela região, dos cines Rio Branco e Acre, dos poucos hotéis e clubes de bailes e shows, do mercado municipal, das pontes que ligam o primeiro distrito ao segundo, das escolas, da praça central, da catedral, do primeiro supermercado, do rio acre...

O bairro tinha pelos fundos uma extensa área verde fechada que chamávamos de Mata da Guidinha, a nossa floresta encantada. Eu morava na travessa Maria Amélia, uma rua sem saída para seguir caminho (quem entrava tinha que voltar por onde entrou), ambientes de muitos duelos, depois das matinês, entre zorros, dolars furados, sansões e dalilas. Templo do convívio de crianças amigas só para as funções comunitárias como jogar futebol, inventar brincadeiras, tomar banho no igarapé, ir para escola, para o cinema, pular muro do estádio, trocar gibis e para o mundo juntos. Também para brigar, para ficar de bem, para brigar de novo, para ficar de bem de novo, sonhar e realizar todo o tempo. O que faltava na capoeira? Ninguém de lá jamais soube.

Quando cheguei Clenilson já estava lá. Ele, o irmão Clevisson, as quatro irmãs, seu pai e sua mãe. Também uma reca de meninos e meninas espalhados pelo bairro, seus parentes, seus cachorros... Mas foi junto com os dois irmãos que a música ficou em nós três dali em adiante. Com as mesmas referências musicais nacionais, internacionais e locais, chegadas principalmente pelo cinema e pelo rádio, fomos construindo o nosso jeito de reproduzir e principalmente de criar. Fomos nos fazendo inventores de si e do mundo pelo caminho da música.

Disso resultou, entre outras coisas, o Grupo Capu, hoje conhecido como uma banda de rock acreana de músicas autorais. Nascemos pela primeira vez na versão de 1980 do Festival Acreano de Música Popular, o FAMP. Quando nem sabíamos tocar instrumento, mas tocávamos. Os dois, violão, e eu flauta doce, acompanhados pela banda-base do festival. Pitico (o Toin, também da capoeira) era o nosso quarto elemento que tocava percussão. Eram batidas e baladas de rock.  Do tipo nosso de rock com flauta e percussão. Depois xote, baião, forró, lambada, balanço, balada e não sei mais nada, inclusive o que possa ser estilisticamente incomparável. 

Com a morte de Pitico, chegou a bateria autoral, potente e criativa de Hermógenes. Clevisson se tornou baixista e a minha flauta doce virou transversal. Vieram mais composições que, no conjunto, foi imprimindo uma musicalidade, formas de cantar e de falar com textos inerentes ao momento e ao lugar em que vivíamos. O momento político era da ditadura militar. Letras e atitudes, enfim, de maneira nenhuma indiferentes e bem fincadas na vida cotidiana de uma Rio Branco e uma capoeira vivas política e culturalmente. Nada igual. Conseguimos não ser a pretensão da cópia. Éramos nós próprios, o que quer dizer do nosso jeito, cantando e tocando a cidade.

Depois, todos nós fomos nos espalhando, cada um acomodado/incomodado esteticamente no que individual e coletivamente foi se achando. Criamos um lugar de encontro chamado Os Alquimistas – tendo como elo o músico mineiro Heloy de Castro – a tocar de bar em bar pela cidade – lugares possíveis para divulgar a música que fazíamos. Também nos associamos a uma ideia/luta em defesa da cultura artística local e contra o poder estatal forjado de tanto engano social, coisa dessa política da manutenção do status quo. Por isso, fomos juntos censurados justamente pelo governo que dizia ter chegado para acabar com a censura. Encontramos uma maneira de não largar o nosso canto, uma forma de continuar juntos, quando a individualidade foi dando a forma para cada um de nós. E cada um virou um de si próprio integrado ao outro. Cada um no seu sistema de viver, de se situar no mundo. Uma forma de ser – num ambiente cultural como o nosso aqui – que se faz sempre juntos.

Essa contextualização memorialista de minha parte foi necessária para situar um pouco o ambiente de onde surge um dos personagens mais importantes da história contemporânea da cultura acreana, que é Clenilson Batista.

Clenilson, sempre desassossegado, não ficou só na música, forma estética pela qual mais criou/cria. Escreveu Seringal Astral e A Lenda do Reino dos Beija-flores, obras que refletem o modo só seu de perceber o mundo que se vive na Amazônia lançando-se na aventura/ventura de querer e, por querer tanto, viver/imaginar outro. A produção de Clenilson tanto musical quanto literária se funda na vontade de alterar o que está posto, não com as armas da violência, nem com outro tipo dela, a política institucional, mas com a potência do sonho, da imaginação, da criação, da arte.

No campo das ideias contidas em suas obras, Clenilson desenvolveu uma teoria livre para possibilitar que os outros consigam compreender esse modo (que parece se revelar como uma cosmologia própria), que ele vai classificar como Lendologia/lendologismo.

Pela sua complexidade, não é possível abreviar aqui o tanto de significado produzido por esse seu sistema, cuja base se sustenta nos elementos da natureza, da magia e na ideia (utópica?) de uma outra humanidade que tenha o amor como fundamento. Estou correndo o risco aqui de simplificar (senão já praticando a redução), o que só pode acontecer como justo reflexo de meus limites diante da obra de Clenilson. Seria preciso de mais fôlego. Aqui tenho objetivo mais ameno.

Confesso que é na música onde mais toca em mim Clenilson. Por isso quero chamar atenção para duas obras suas mais recentes: Cidadão de Bem, balada cuja letra vale por um tratado de política, do ponto de vista de quem questiona o poder institucional, um libelo anarquista (diriam cientistas políticos eurocêntricos do tipo que só aceita ideia se for nascida de seu lugar de conhecimento), cujo efeito de duplo sentido revela a posição crítica de quem tem sido desde sempre vítima do poder dos estados-nações e suas estruturas históricas de governos centralizados/mantenedores da condição moderno-colonial.

Por razões de espaço, não há como me dispor a fazer aqui uma análise da letra de Cidadão de Bem, como eu gostaria. Porém, valem algumas observações inadiáveis para o contexto deste breve escrito.

A música começa afirmando: “Você é livre, está na Constituição, você é livre se for da Nação”. É possível observar que neste trecho é constatada e questionada a ideia de liberdade reduzida ao espaço do estado e sua normatividade (você só é livre se integrar e for da vontade da nação), isto é, aduzindo que fora de tal espaço político não há liberdade senão interna corporis a ele (a do seu tipo). No mesmo passo, a letra afirma a liberdade do “cidadão”, apesar do estado-lei – como se dissesse, e diz, “você é livre” e pronto, que “se foda a nação” que não te quer livre desde que pela sua ideia de liberdade normativa. O segundo sentido se revela mais que uma negação do primeiro, o seu questionamento.

No estribilho, que segue o mesmo efeito de duplo sentido, a oração “se for da lei”, quando lida, expressa de forma literal a ideia de condição, mas quando ouvida muda de sentido tornando-se um grito-desejo-manifesto de sua negação: “se foda a lei”, o que se repete em relação a categorias que corporificam/sustentam a ideia de estado como sociedade, nação, juiz,  justiça, polícia... e ainda batendo na tecla da liberdade como uma condição da lei que na voz de seu alvo (“o cidadão”) soa como menosprezo,  rejeição, negação, portanto, de resistência a ela: “Você pode fazer o que bem entender, se for da lei”, um grito de liberdade em face da liberdade da lei. Uma vida normativa versus uma vida “anormativa”, nesse sentido, livre do poder estatal.

Vale ainda atentar-se para o fato de que os sentidos duplos da oração “se for da lei” se opõem também pelas suas formas de emissão, isto é, estão vazados, de um lado, pelo registro da escrita (que é o registro da norma, da condição normativa “se for da lei”), e, de outro, pelo registro da oralidade, captada pela audição (“se foda a lei”), quando aponta a sua negação,  resistência, insurgência (eu acrescentaria) que esgarça uma vontade popular, vinda das ruas, contra o estado...

Por fim, em Cidadão de Bem, Clenilson parece ter realizado um movimento diferente do que realizaram Raul Seixas e Paulo Coelho com a Sociedade Alternativa deles. Enquanto estes saíram do estado para criar uma sociedade alternativa também normativa dizendo que toda liberdade é que era da lei: “faça o que tu queres, pois é tudo da lei” (baseado na Lei de Thelema e seus postulados dogmáticos a fugir da lei se refugiando na lei), Clenilson tem um intento diferente. Ele quer destruir por dentro o maior fundamento do estado colocando que “se [tudo] for da lei” então que se foda a lei.

A segunda obra é o seu último CD solo, A Arte é um Veículo, que ele produziu em 2019. Para mim um feito artístico admirável, porquanto culturalmente significativo, mesmo sendo ignorada por todos, como a rigor são as obras artísticas locais. O disco, com as suas trezes faixas, não representa a diversidade de sua produção musical, na medida em que ele se dedica mais a um dos lados de suas composições, aquele desenvolvido nas épocas Alquimistas, que podemos chamar de balanço,  exemplo clássico das faixas Bole, bole, composta com Alexandre Nunes (“Segura sanfoneiro esse bole, bole...”), Balanço da Aldeia (“Vem mostrar esse balanço como é, que balança toda mata e igarapé...”), Daquiry (“Dança ashasninka, Huni kui, kaxinauá...”) e as duas que fizemos juntos, na década de 90,  para também tocar nas noites acreanas: Mela coxa (“Universo sou toda a terra”) e O povo quer dançar (era meia noite, madrugada, a festa tava animada, o sanfoneiro sem para...”).

Nesse sentido, parece ser uma obra que busca disseminar sonoramente alegria. Não se pode duvidar ser a alegria uma forma de manifestação do amor. A dança é um ótimo meio. O corpo uma expressão vigorosa para o sentimento. Mas, como tudo em Clenilson, a coisa não se restringe a um ritmo só. Tem as letras em suas contundentes narrativas tão política e culturalmente próprias, das quais destaco, além das já citadas, as faixas Tribal (“um canto inteiro, não é um canto de partido, não é um canto dividido”), A arte é um veículo (“O sonho é uma nação... A arte é um veículo que sai da multidão...”), Bem vindos ao leito do rio (“...É um banzeiro de paz e amor...”) e Você reclama da Terra (“Você reclama da terra mas quem é que produz a poluição?”). Esta um potente manifesto ecológico composto com Geovania Barros.

Considero Clenilson como tipo exemplar de artista cuja ontologia política e estética é fundamental e radicalmente decolonial, o que afirmo no contexto em que venho pensando a nossa produção artística a partir de um registro crítico, de modo a buscar revelar algum movimento de resistência diante do projeto de colonização cultural de que se é alvo em um lugar considerado periférico como o Acre.

Em sua obra nada está conformado à condição moderna-colonial que se tem nos imposto historicamente como deveria “naturalmente” estar moldado para estar – nos conforme da pedagogia colonial pela qual temos sido educados. 

Nesse sentido, Clenilson põe abaixo qualquer movimento que queira lhe colonizar. Não porque ele deseja assim (como um condutor daquele desejo do tipo frágil, provisório, precário, inconstante do “quero agora, mas amanhã não, ou não sei mais” – a depender de quem dá mais), mas porque ele se fez assim orgânico no percurso de vida/criação.

Sendo assim, nada do que faça no campo da arte tem como fugir, senão reafirmar a atitude combatente/insurgente de se afirmar como um sujeito cultural orgânico – não monolítico, não sem contradições – que aqui nomeio de decolonial, resultando na configuração de um sujeito artisticamente incomparável e culturalmente consciente de sua localidade e de seu papel político-cultural. 

Quis aqui começar este texto relatando o meu encontro e convívio afetivo, político e artístico com Clenilson Batista – num contexto de um lugar geocultural próprio – para dizer que sou testemunha do processo de formação de um sujeito decolonial posto à prova de todo tipo de ataque magneticamente sedutor, como só é aquele que investe em nos fazer desejar ser o que não somos para relegarmos a si intentando ser cópia de algum padrão industrial exógeno, com a promessa – que só se faz a um condenado a ser o eterno coadjuvante (se muito) – de personificação do gênio, do super astro, da celebridade, do ídolo dos consumos. Pode crer?

 

João Veras em 28/12/21

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

ELIANA CASTELA: Alguns Poemas


CHEGA DE PRESSA! 

 

É bom mastigar os dias

com a lentidão do tempo,

tempo lento e inalterado.

Viver os dias com a lerdeza de chuva fina

na demora, até tocar o chão...

O tempo resume-se no agora,

requer o abandono da avidez

dos dias servidos e devorados

em mesa faminta, sem perceber,

nem auroras, nem ocasos.

- Tempo de pouco caso.

É bom perder a pressa e rever

o arrumar e desorganizar das nuvens.

Ter a paciência de aguardar a florada

e comer a fruta do tempo.

Aguardar a piracema subir os rios

e não pescar o futuro.

É bom deixar o hábito de cobrar-se

do que se deixou de fazer

quando o dia finda.

EM BUSCA

 

Em busca de respostas

Rompi a rocha, raspei musgos

Desfolhei camadas

Furtei pigmentos.

Desintegrada, a rocha é pó

Princípio e fim da vida.

Depois de mover montanhas

Vejo-me ainda, no ponto de partida.

UM POEMA DE AMOR

 

O amor escreve poemas

com a ponta do dedo, sulcando

a areia morna e úmida

na margem do rio.

 

Quando a canoa cheia de melancia,

movida a motor de rabeta passa,

o banzeiro invade a praia

e desfaz os feitos do amor.

 

A magia é desfeita e renascida

a cada curva do rio,

onde espraiam-se ramas

de jerimum, maxixe, melancia...

Frutos colhidos e carregados

nos barcos que sacodem as águas,

para não deixar o amor morrer.

SABEDORIA SABIÁ

 

Ela é sábia

entre espinhos,

o ninho.

Gravetos selecionados

ambiente perfumado

ovinhos guardados

e tantos outros inhos

no universo de carinho

de passarinho.

Ocupação alada,

em cada galho que salta

com seu canto, cantinho

de laranjeira.

A GRAVIDADE DA GUERRA

 

A gravidade da guerra

é a solidão da trincheira,

onde o soldado observa o orvalho

na ponta do galho, resistente

à lei da gravidade.

TRANSFORMAGEM

                         (Para Danilo de S’Acre)

 

Íris, cores do olhar dos deuses.

Imagens de outras formas

de visão. Divisão das partes

que se aglomeram no espaço

concreto do abstrato.


Pinturas: Lili F.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

AS DUAS CARAS DE HELOY DE CASTRO É UMA SÓ, MÚSICA

João Veras

 

I – Foi Demais pra Mim é o novo CD duplo de Helóy de Castro que será lançado no dia 17 próximo no Studio Beer, em Rio Branco. Não preciso dizer que será uma festa. Digo que será mais que isso. Será uma celebração à vida num turvado tempo de morte e silêncios perplexos. E um antídoto para este tempo, só a música!

Durante a pandemia, Helóy tinha certeza que ia morrer. Que o seu mundo finalmente chegaria ao fim. Que não tinha jeito. E foi logo dando o nome ao que seria a sua última obra: Foi demais pra mim. Mais que um nome de música, um epitáfio. O resumo da obra, da vida. Um balanço final. Com isso, ele só queria ficar mais tempo aqui depois da partida. Nada como uma obra de arte largada ao mundo com seus próprios pés. Nem precisava. Já tem um inventário musical suficiente. O fato é que uma música virou 33 faixas de um CD duplo e a “carta de adeus” se transformou numa série, com episódios, temporadas.

É que Helóy errou no cálculo. Não foi dessa vez. Sobreviveu a tudo e conseguiu entregar a encomenda que fez para si – e que fica para todos: belas composições que revelam o enredo de uma vida de 70 anos, dos quais sua grande maioria dedicada à música, um acumulado arquivo de crônicas pessoais, sociais, artísticas, dezenas de convidados, parceiros músicos e não músicos. Na verdade, o Acre quase todo, a cidade de Rio Branco em peso e uma boa parte de São Paulo e, claro, de Minas Gerais, sua Rio Novo....

O álbum duplo até parece uma reunião, do tipo daqueles momentos raros (como um velório, sim, mas aqui um “desvelório”) da vida em que todo mundo se encontra para celebrar a memória, os feitos, a obra de quem se foi.  Total engano, graças à vida, graças à música! Foi demais pra mim é a volta daquele que não foi. O que nunca é demais.

II – Cabe, de forma brevíssima, uma palavrinha sobre a obra, para não deixar de falar sobre essa coisa de música acreana. Pensando sobre a estética deste álbum, não o vejo restrito aos dogmas culturais do tipo estereótipos exóticos que teimam em aplicar, para reduzir, o que se entende e nomeia como coisas ditas locais, nem daqui nem de onde Helóy veio. Não é por isso que não seja possível identificá-lo como algo específico, o que não pode significar, de outro modo e lado, reduzí-lo pela alcunha, igualmente redutora, de universal.

A singularidade do estilo deste CD se encontra justamente na ausência de uma estampa única e sim no que resulta do acumulo de diversidades de temas, de estilos, de ritmos... em uma obra que não consegue se desligar de seu autor, de sua digital, porque este não logra se desplugar do que ver, do que ouve, do que sente, do que vive, de ser o que é, na medida em que vai sendo nas dinâmicas da criação e da sua relação com as cenas da vida, seus territórios físicos e imaginários. Vem daí a latência e a expressão da sua exclusividade substanciada no amalgamento do próprio com o que não é próprio, o pressuposto para uma obra de estilo num contexto plural de tantas outras, enfim.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

A SECA DE 77

Hélio Melo (1926-2001)


Foi em 1877 que aconteceu a grande seca no nordeste que, até hoje, não deixa de ser lembrada.

Aos poucos, ela foi matando as plantas e as criações, de forma que os agricultores não encontraram outra saída a não ser reunirem as suas famílias e rumar em direção à cidade, em busca de sobrevivência.

As cidades ficaram lotadas de povos vindos dos arrabaldes.

Também na cidade, essa gente passou privação. A assistência dada pelo governo era trabalho, mas não para todos, pois era grande o número de pessoas desabrigadas.

Depois de algum tempo, voltou a chover. O povo, amedrontado com acontecido, recusava voltar para roça, pensando não só na perda das criações e plantações, mas também na perda de pai, parentes e irmãos. Nem todos pensaram assim; uma minoria voltou às suas cabanas.

Hoje, lembramos alguns fatos dessa época, aproveitando histórias de velhos nordestinos que, em tempos de criança, foram vítimas desse acontecimento.

Como exemplo, temos as histórias contadas por Angélica da Silva que, na época da seca, tinha 14 anos de idade. Seu pai, Joaquim Serra Grande, e sua mãe, Antônia Aprígio da Silva, morava na serra de Baturité no Ceará.

Dizia que, já é 1875, o povo, para conseguir água, tinha que andar de três a quatro horas de viagem. Roupa não se lavava, apodrecia no corpo. Também apareceu uma doença de nome “cola”, que dava disenteria e matava, em menos de 24 horas, os já enfraquecidos pela fome. O povo até andava com o nome escrito num papel, dentro do bolso, que era para que quando fosse encontrado morto se soubesse quem era.

Também tinha uma doença chamada “pele de lixo”. Quando a pessoa é atingida por ela, aos poucos ia largando a pele do corpo, e não havia cura, morria no maior sofrimento.

Nessa época, o remédio mais usado era o “específico”, que eles tomavam para curar todo tipo de doença. É bom saber que existiam vários tipos de “específicos”, os para crianças e adultos, os contra-venenos e para curar doenças.

Na pior seca, Angélica recebeu em casa a visita do seu padrinho, e ele lhe disse:

- Minha filha, procure sair o mais breve possível para a beira-mar, porque está morrendo muita gente de fome de sede.

Deu a ela, então, uma novilha e um saco de farinha para comer na viagem.

Aconteceu que na véspera da viagem, noite Joaquim Serra Grande pegou a carne quase todo deu no pé. Mas vocês não deram muita importância pois ela era muito ruim para família.

Também não desmancharam viagem, e foi assim que Angélica, sua mãe e seus irmãos menores, Tangino, Miguel e Joaquim, se despediram das cabanas e se mandaram, estrada a fora.

Da Serra de Baturité, onde Angélica morava, até chegar à beira-mar, tinha que andar mais de 10 dias a pé.

A água, arranjaram com os fazendeiros e, assim mesmo, era regrada.

Dizia a ela que fazia dó. Aqui e acolá, encontravam uma pessoa morta à beira da estrada e cachorros escavando raízes para saciar a fome.

Teve um dia que Angélica esmoreceu, com sede; seus irmãos deixaram tudo quanto levavam e saíram correndo estrada afora, à procura de água, a qual, por sorte, encontraram.

Angélica, ao tomar a água ainda passou mal, pois tomava o líquido e vomitava, sendo que só da terceira vez é que segurou a água no estômago.

A verdade é  que a Angélica escapou,  com todos os seus, e foram ter mão na cidade, enquanto Joaquim Serra Grande talvez tenha até morrido, pois ninguém mais deu notícia dele.

Na época da seca, o governo dava passagem para os que quisessem ir para a Amazônia, ou para qualquer outro lugar, pois era grande número de pessoas em busca da sobrevivência.

Angélica, que ficou no Ceará, presenciou todo o movimento da seca. Dizia a ela que, na cidade, só existia uma mulher solteira - a Maria Carlos, mas, depois da seca, apareceu um grande número. Essas mulheres se vendiam até a troco de bolachas, e Angélica mesmo foi uma que se perdeu com 14 anos de idade. Depois da cerca, alguns voltaram para roça.

Em alguns lugares, as vacas parirão de dois bezerros de uma vez. Quando isso aconteceu, em seu sermão o povo achou que era o fim do mundo, mas ficaram contentes quando o Padre Cícero falou que Deus era bom e estava fazendo isso para recuperar o que eles tinham perdido. Então, depois de algum tempo, as vacas voltaram a ter parto normal.

Também o Padre Cícero, em seu sermão, dizia que aquela grande seca era castigo, devido ao povo ser muito preconceituoso. Como, de fato, eles mantinham uma ordem rígida, a moça tique que casar com gente da família e, se não encontrasse um parente, ficava “pra titia”. A verdade é que o acontecimento da seca quebrou uma grande parte dessa tradição.

Angélica ficou com os seus na cidade. Sofreram muito porque, nessa época, tudo era muito difícil. Passado algum tempo, ela casou com um senhor de idade, de nome Sales Guerra. Juntos, construíram família e tiveram dois filhos, Francisco e Francisca.

Teve uma época em que eles estavam mal de vida e resolveram ir para a Amazônia, para o seringal Maripuá, no rio Purus. Chegando lá, Sales não quis trabalhar como freguês. Dizia ele:

– Eu quero ser é seringalista.

O certo é que deixou Angélica com os dois filhos no barracão, embarcou numa canoa e entrou no rio Juruá, em busca de fazer explorações, mas por lá os índios deram sumiço nele.

Antes de viajar, Sales já tinha sido avisado de que as explorações eram perigosas, mas ele era ambicioso e teimoso. Foi sozinho, e sozinho ficou para sempre.

Angélica ainda ficou seis meses no barracão esperando o Sales, mas o patrão, não querendo sustentar Angélica e os seus dois filhos, armou uma cilada. Fez uma carta falsa em nome de Sales, dizendo que ele não tinha feito nada na exploração de seringa, mas que, em compensação, tinha arranjado um bom emprego em Manaus, e que ela fosse para onde ele estava.

Angélica, ao receber a carta, deu saltos de alegria, abraçada a seus filhos; o patrão se encarregou de conseguir passagens, e eles viajaram. Chegando em Manaus, ficou um dia e uma noite a bordo do navio, e Sales nunca apareceu. A verdade é que ela chegou a dormir três noite pelas ruas da cidade, passando fome com os filhos pequenos, até que resolveu viver de lavagem de roupas. E assim foram mais de dois anos de sofrimento.

Angélica era muito devota e sempre pedia a Deus um meio de melhorar de vida. Sendo assim, aconteceu. Ocorreu que passou um parente seu por Manaus e a trouxe para a colocação São Pedro, no rio Acre.

Depois de três meses, ela casou com o seringalista de nome João Pedro da Silva, dono do seringal Triunfo, e, daí em diante, não passou mais necessidade. João Pedro da Silva, por sinal, também foi vítima da seca de 77, quando contava com a idade de sete anos e morava no bairro União, no Ceará.

Ambos, Angélica e Pedro, faleceram. Angélica, em 1946, e João Pedro, em 1956. Ela com 83 anos e ele com 86.

 

MELO, Hélio. História da Amazônia: “Do seringueiro para o Seringueiro”. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1986. p. 35-44

* As ilustrações também são de Hélio Melo.