terça-feira, 30 de janeiro de 2018

MAGMA: alguns poemas de Guimarães Rosa

Magma é a única obra de poesia de Guimarães Rosa (1908-1967), com a qual ganhou o prêmio da Academia Brasileira de Letras do ano de 1936. Mas o livro só veio a público 61 anos depois, em 1997, lançado pela Editora Nova Fronteira.

A IARA

Bem baixo das colinas de ondas verdes,
onde o o sol se refrata em agulhas frias,
descem todas as sereias dos mares e dos rios,
irreais e lentas, como espectros de vidro,
para os palácios de madrépora de Anfitrite,
em vale côncavo, transparente e verde,
num recanto abissal, como uma taça cheia,
entre bosques e sargaços, espumosos,
e rígidos jardins geométricos de coral...

Por entre os delfins, sentinelas de Possêidon,
afundam, suspensas, soltas, como grandes algas,
carregando os jovens afogados:
Ondinas das praias, flexosas,
Nixes da água furtacor do Elba,
Havefrus do Sund e Russalkas do Don...
Loreley traz no esmalte doce dos olhos 
duas gotas do Reno...
E Danaides laboriosas se desviam dos cardumes 
de Nereidas,
que imergem, ondulando as caudas palhetadas
dos seus vestidos justos de lamé...

Mas a Iara não veio!...
Mas a Iara não vem!...
Porque Iara tem sangue,
porque a Iara tem carne,
sangue de mulher moça da terra vermelha,
carne de peixe da água gorda do rio...

Iara de olhos verdes de muiraquitã,
cintura pra cima de cunhantã
cintura pra baixo de tucunaré...
que veio, dormindo, Purus abaixo,
filha do filho do rei dos peixes
com uma índia branca Cachinauá...

Lá bem pra trás da boca aberta do rio,
onde solta seus diabos
o bicho feroz da pororoca,
ela ficou, cheia de medo,
brasiliana, tapuia, morena,
Tão orgulhosa,
que não quer ser desprezada pelas outras...

E a Iara é preguiçosa,
tão preguiçosa,
que não canta mais as trovas lentas
em nheengatu :
– “Iquê, ianê retama icu,
Paraná inhana tumassaua quitó...”

Nem mais se esforça em seduzir
o canoeiro mura ou o seringueiro,
meio vestida com a gaze das águas ,
na renda trançada dos igarapés...
E eu tenho de chorar:
– “Enfeitiça-me, ó Iara,
que eu vim aqui pra me deixar vencer...”

Mas custa-me encontrá-la,
e só à noite sem bordas dessas terras grandes,
quando a lua e as ninféias desabrocham soltas,
posso beijá-la,
nua,
dormida, 
esguia,
bronzeada,
oleosa,
na concha carmesim de uma vitória-régia,
tomando o banho longo
de perfume e luar... p.16-19


SONO DAS ÁGUAS

Há uma hora certa, 
no meio da noite, uma hora morta, 
em que a água dorme. Todas as águas dormem: 
no rio, na lagoa, 
no açude, no brejão, nos olhos d'água, 
nos grotões fundos. 
E quem ficar acordado, 
na barranca, a noite inteira, 
há de ouvir a cachoeira 
parar a queda e o choro, 
que a água foi dormir... 

Águas claras, águas barrentas, sonolentas, 
todas vão cochilar. 
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas, 
fios brancos, torrentes. 
O orvalho sonha
nas placas das folhagens.
E adormece 
até a água fervida, 
nos copos de cabeceira dos agonizantes... 

Mas nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente. 
Muitos hão de estar vigiando, 
e chorando, a noite toda, 
porque a água dos olhos 
nunca tem sono... p.66-67


REPORTAGEM

O trem estacou, na manhã fria,
num lugar deserto, sem casa de estação:
a parada do Leprosário...

Um homem saltou, sem despedidas,
deixou o baú à beira da linha,
e foi andando. Ninguém lhe acenou...

Todos os passageiros olharam ao redor,
com medo de que o homem que saltara
tivesse viajado ao lado deles...

Gravado no dorso do bauzinho humilde,
não havia nome ou etiqueta de hotel:
só uma estampa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro...

O trem se pôs logo em marcha apressada,
e no apito rouco da locomotiva
gritava o impudor de uma nota de alívio...

Eu quis chamar o homem, para lhe dar um sorriso,
mas ele ia já longe, sem se voltar nunca,
como quem não tem frente, como quem só tem costas... p.68-69


AUSÊNCIA

Na almofada branca,
as sandálias sonham
com a seda dos teus pés...

Partiste...
Mas a alegria ainda ficou no quarto,
talvez no ninho morno, calcado por teu corpo
no leito desfeito...

Entardece...
Esfuziante e verde,
um beija-flor entrou pela janela.
(Pensei que a tua boca ainda estivesse aqui...)

Do frasco aberto,
vestidas de vespas,
voam violetas...

E na almofada de seda,
beijo as sandálias brancas,
vazias dos teus pés. p.90


PRIMAVERA NA SERRA

Claridade quente da manhã vaidosa.
O sol deve ter posto lente nova,
e areou todas as manchas,
para esperdiçar luz.

Dez esquadrilhas de periquitos verdes
receberam ordem de partida,
deixando para as araras cor de fogo,
o pequizeiro morto.
E a árvore, esgalhada e seca, se faz verde,
vermelha e castanha, entre os mochoqueiros,
braúnas, jatobás e imbaúbas do morro,
na paisagem que um pintor daltônico
pincelou no dorso de um camaleão.

E o lombo da serra é tão bonito e claro,
que até uma coruja,
tonta e míope na luz,
com grandes óculos redondos,
fica trepada no cupim, o dia inteiro,
imóvel e encolhida, admirando as cores,
fatigada, talvez, de tanta erudição… p.141


ROSA, João Guimarães. Magma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

RAÇA VALENTE

Isac de Melo 
Nos confins do meu sertão
Tem beleza tem folclore
Borboleta que colore
E seca que racha o chão
Carcará, camaleão,
Sanfoneiro tem por praga
Segundo Luiz Gonzaga
Cabra frouxo tem lá não!

Em terras de Lampião
Toda mulher é valente
Tem medo de arrancar dente
Mas sabe usar o facão
E quanto à filiação
Nem precisa fazer plano
É um menino por ano
Um boiando outro imergindo
Um entrando outro saindo
Feito canela e tutano

Cearense, Alagoano,
Sergipano ou Potiguar
São todos pedra angular
De um chão Sul-americano
Saúdo o povo Baiano
Pela luminosidade
E a grande diversidade
De seres, cores, culturas,
Humanos de almas puras
Nordestinos de verdade

Minha nacionalidade
Brasileiro justo e franco
Natural de Rio Branco
Acreano com vaidade!
Minha consanguinidade
Carrego no coração
Sou grato à abolição
Por me livrar da corrente
Mas sou de raça valente
Egressa lá do sertão!!!

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

A DIFERENÇA ENTRE FILOSOFIA DE VIDA E A AUTOAJUDA

Inês Lacerda Araújo
Filosofia de todo dia

Pode-se dizer que uma filosofia de vida é mais séria, difícil, importante do que a literatura voltada para a autoajuda? Pode-se considerar o pensamento de um Sêneca ou Marco Aurélio (filósofos estoicos, Roma Antiga) mais precioso do que o de uma Louise Hay, Zíbia Gaspareto ou Augusto Cury?

Qual é o sentido de “precioso” aqui?
Raro, difícil de acompanhar ou compreender, culto, e mesmo como se classifica em nossos dias “elitista”?

Para atingir um público amplo (os livros de autoajuda são campeões de vendagem) é preciso trocar em miúdos as ideias e os conceitos, ou são as próprias ideias e conceitos de per si bem acessíveis?

Sim para as duas opções. Trata-se de temas imediatos, do dia a dia, próximos às dificuldades que em geral pessoas enfrentam, como superar perdas, alcançar satisfação em seu trabalho, solucionar questões imediatas e corriqueiras, e para tal, confiar na palavra e nos conselhos dos gurus, dos homens de fé, dos espiritualistas, e mesmo de médicos e psicólogos é fundamental.

E sempre aquele que aconselha é o responsável, é o guia, ele teria a chave do sucesso, da cura, da felicidade. Quem os segue, lê o receituário e aceita novas regras sem precisar responsabilizar-se por seus atos e atitudes, sem necessidade de pensar por si mesmo. Alguém o fará por você.

Se formos contrastar a autoajuda com as filosofias de vida, as diferenças são profundas. Isso não implica em negar o papel da literatura de autoajuda, mas em clarear um pouco os caminhos da reflexão sobre nossa existência, sobre o sentido da vida.

Evidente que o leitor das receitas para bem viver e ter sucesso, quer solução. Tanto que tais livros também se intitulam de manuais.

No caso das filosofias de vida, o leitor não busca adesão, nem chaves para o sucesso, nem autocontrole. É o inverso, os filósofos da existência pensam e refletem sem visar seguidores, iluminam nossas ideias, modificam nosso modo de ver e de pensar, entender sua mensagem basta, o estilo refletido de vida é livre e autônomo.

Alguns exemplos:
O antigo ensinamento que Sócrates adotou “Conhece-te a ti mesmo” sugere que cabe a cada um mergulhar em si, poder exercer esse conhecimento para uma vida plena.

Cuidar de si, saber-se finito, existência responsável e livre (Sartre), entender que só somos no tempo, vamos morrer, que somos “ser-para-a-morte” (Heidegger), celebrar essa finitude (Nietzsche), ou considerar que a vida é frágil sofrimento (Schopenhauer).

Os filósofos abrem perspectivas, por vezes nos deixam sem chão.
A autoajuda resolve, conduz e apascenta.

NAQUELA MESA: Nelson Gonçalves

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

RÁDIO FENOMENAL

José Chalub Leite (1939-1998)


Garibaldi Brasil, final dos anos 50, comprou sabe-se como em Belém – talvez de algum amigo contrabandista naquela época em que a capital marajoara era o paraíso dos muambeiros – um rádio a pilhas, Transglobe, uma raridade e objeto de desejo cobiçadíssimo. Enfiado em seu terno de linho branco, chapéu na cabeça, charuto Ouro Cubano na boca e portando o trambolho falador subiu as escadarias da Representação do Governo do Território Federal do Acre, na época na acanhada Rua 7 de Setembro. Por acaso estavam presentes o representante Rui Mendes, o agrônomo Francisco Custódio Freire e o ex-governador Valério Caldas Magalhães. O trio gamou no rádio, abismava-se apreciando o Gari captando e sintonizando estações de todo o mundo, sonoramente límpidas, sem interferências. Cobiçaram a prenda, desejavam possuir aquele rádio movido a pilhas grandes e que também funcionava na corrente elétrica. Numa folga da exibição, cada um propôs ao Gari a compra do aparelho. 

– Não está à venda. Comprei-o para a Sílvia, que me acompanha, ela fica o dia inteiro grudada nele ouvindo as novelas da Nacional e da Tupi. Vou levá-lo para o Acre.

Mas o gari sofreu um velho problema: dinheiro. Foi ao Rui Mendes e declinou a sua disposição de vender o aparelho, como não tencionava magoar os outros dois interessados nada lhes dissesse. Mendes pagou na hora, dinheiro vivo. Receberia o rádio na casa da sogra do gari, quando, daí a três dias, voltasse para Rio Branco. Fechou o mesmo negócio com o Valério Magalhães e o Custódio Freire, de forma que os compradores, mantendo segredo, ansiassem pelo glorioso momento de apossar-se da traquitana. Ficou incumbido de recolher o rádio na data aprazada, por expressa recomendação do Gari aos adquirentes, o funcionário da Representação, o Cesário Alencar, capaz de manjar logo marotagem.

Garibaldi e Sílvia viajam. Na representação do Acre os três aguardam em nervosa conversa a chegada do Cesarinho da sigilosa missão. Eis que ele aparece com risinho maroto. Valério, Freire e Rui deram jeito de falar-lhe reservadamente.

– Pegou o rádio do Gari e deixou lá em casa?

Quando o terno feito de patetas pelo Gari soube do golpe sofreu ataque de ódio explícito, jurou matar o sacana, dar-lhe porradas até dizer chega!, cobra na Justiça o dinheiro perdido naquela aquisição abstrata. Cesário contou que a sogra do doutor foi rude e franca.

– Rádio? Que rádio? O Gari na véspera da viagem vendeu para nosso vizinho, à vista, a Sílvia ficou furiosa com o marido porque queria levar para o Acre.

Assim, por causa de três interesses, o Gari lucrou com quatro. 


LEITE, José Chalub. Tão Acre: o humor acreano de todos os tempos II. Rio Branco: Parque Gráfico do TJAC, 2009. p.73-74

sábado, 20 de janeiro de 2018

HÁ FOTOGRAFIAS COMO PUNHAIS

Rogel Samuel


Para ela fotografias há que são punhais, poemas também, os poemas todos já foram escritos, reescritos, ela só faz este pedaço do ofício, o ofício das trevas, das argilas, dos pedaços de argila, impressos nas chuvas, nos ventos, nas folhas noviças, o pai, a mãe já partiram, e se foram numa voragem de passado remoto, a moça feia de varíola nunca amada que na taberna de Vladivostoque se ofereceu a Joseph Kessel, como pouca gente sabe, daquela guerra, deste verso, quase desconhecida guerra, mas ela lá esteve, e trouxe o verso, e por isso os outros versos todos já foram escritos, são chagas, são punhais crescendo bem como fogo, porque tudo é um problema insolúvel...

há fotografias como punhais. e poemas também.

todos os poemas que escreverei já foram escritos
dou-me apenas ao ofício das trevas
de os revelar em pedaços de argila

neles todos estão impressos a chuva e o vento
e as folhas noviças dos séculos e
meu pai e minha mãe que já partiram
esvoaçando num passado remoto

e também a rapariga feia e bela desfigurada pela varíola
que nunca fora amada porque não era bela
e que numa noite na taberna de Vladivostoque
se ofereceu derradeiramente a Joseph Kessel

talvez pouca gente saiba deste verso
que nunca terá sido dito deste modo
e foi acontecido durante a guerra sino-japonesa

quase ninguém esteve lá para o ver

mas eu estive. trouxe-o comigo.
é exactamente por esta razão que os meus poemas

já foram todos escritos.

são como chagas alastrando e crescendo em searas de fogo

estando entre a terra e as estrelas.

sei apesar de tudo porque li Juan Gelman
que cada lágrima é um problema insolúvel


MARIA AZENHA
A chuva nos espelhos
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