Para ela
fotografias há que são punhais, poemas também, os poemas todos já foram
escritos, reescritos, ela só faz este pedaço do ofício, o ofício das trevas,
das argilas, dos pedaços de argila, impressos nas chuvas, nos ventos, nas
folhas noviças, o pai, a mãe já partiram, e se foram numa voragem de passado
remoto, a moça feia de varíola nunca amada que na taberna de Vladivostoque se
ofereceu a Joseph Kessel, como pouca gente sabe, daquela guerra, deste verso,
quase desconhecida guerra, mas ela lá esteve, e trouxe o verso, e por isso os
outros versos todos já foram escritos, são chagas, são punhais crescendo bem
como fogo, porque tudo é um problema insolúvel...
há fotografias como
punhais. e poemas também.
todos os poemas que
escreverei já foram escritos
dou-me apenas ao
ofício das trevas
de os revelar em
pedaços de argila
neles todos estão
impressos a chuva e o vento
e as folhas noviças
dos séculos e
meu pai e minha mãe
que já partiram
esvoaçando num
passado remoto
e também a rapariga
feia e bela desfigurada pela varíola
que nunca fora
amada porque não era bela
e que numa noite na
taberna de Vladivostoque
se ofereceu
derradeiramente a Joseph Kessel
talvez pouca gente
saiba deste verso
que nunca terá sido
dito deste modo
e foi acontecido
durante a guerra sino-japonesa
quase ninguém
esteve lá para o ver
mas eu estive.
trouxe-o comigo.
é exactamente por
esta razão que os meus poemas
já foram todos
escritos.
são como chagas
alastrando e crescendo em searas de fogo
estando entre a
terra e as estrelas.
sei apesar de tudo
porque li Juan Gelman
que cada lágrima é
um problema insolúvel
MARIA AZENHA
A chuva nos espelhos------------------------------
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