Um mendigo a vagar
pelas ruas de Viena, gritando.
- Un
piatto di cibo, per l'amor di dio!
- Ora, ora, vejam quem está aqui! – disse
ao padre ruivo.
- Não sei do que está falando! –
defendeu-se do nada o pedinte e depois continuou sua cantilena.
- Um prato de comida, pelo amor de Deus!
- Sou apenas um pobre miserável a vagar
pelos campos e admirando a primavera. Ela chegou! Os pássaros celebram a sua
chegada em canções festivas. Os riachos murmuram docemente e os trovões vestem
o céu com um negro manto, assim como a minha vida. – filosofava o mendigo.
- Bravo, bravo. Percebe-se que ainda és
um destemido sonhador! – indagou sorrindo o padre ruivo e seguiu seu caminho.
Alguns que o ouvem lhe jogam parcas
moedas. O mendigo caminha com dificuldade, ora grita, ora murmura, parece olhar
para um vazio, para muito além das ruas.
Certa noite, ele desceu as ladeiras das
ruas, recitando, para uma certa dama chamada Anna. Seus versos soavam como os
ventos ameaçadores, tal como a violenta tempestade que transformou o seu
destino. Beijos roubados com medo dos castigos de Deus.
Enquanto ele recitava, ele pensava em sua
boca de forma carnal, pecaminosa, suja.
- Perdão Deus, perdão, mas o desejo
devora a minha alma, consome a minha razão!
Naquela noite, o mendigo dormiu no prado
cheio de flores, com ramos cheios de folhas, entre um rebanho de cabras. Um
fiel cão pastor vem dormir ao seu lado. Sonhou, em companhia dos ratos, com o
som festivo das gaitas de foles, ninfas e pastores dançavam levemente na festa
da primavera.
Amanheceu, as pessoas se apressam para
algum destino, o sol está muito belo e brilhante no céu azul. O mendigo não tem
para aonde ir.
- Un
piatto di cibo, per l'amor di dio!
- Um prato de comida pelo amor de Deus!
Sobre uma estação dura de um sol
escaldante o homem descansa.
- Orate, fratres, orai irmãos, agnus dei,
agnus dei, cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo, tende piedade de
nós, cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo, dai-nos a paz.
- És louco, como podes falar das coisas
sagradas desta forma? Que blasfêmia! – exclama um passante.
- Tu preferes música a que fale em Deus?
Ouvem-se então as canções doces da
pomba. Doces aragens agitam o ar... Mas os ventos ameaçadores do norte
subitamente aparecem. O pastor pedinte treme, temendo a violenta tempestade e o
seu destino.
- Uma inspiração bem na hora sagrada qual
um tormento... Que pecado! Prefiro a inspiração que se perde com o vento, não
posso deixá-la ir, pois veio ao meu encontro, minha respiração é a inspiração.
- Minha culpa, minha tão grande culpa.
Com dificuldades caminha. O medo dos
relâmpagos e ferozes trovões rouba o descanso aos seus membros cansados. As
moscas voam zumbindo furiosamente. O lixo das ruas escuras se confunde com a
escuridão de sua alma.
Apenas um sopro, um som o separa das
graças de Deus. Infelizmente, os seus receios estavam justificados, os trovões
rugem e majestosamente cortam o milho e estragam o grão.
A música embala o mendigo.
A música alimenta o mendigo.
A música é o pecado do mendigo.
Uma grande muralha divide os palácios
luxuosos de ouro da miséria humana, da sujeira espiritual, dos desvalidos, dos
sem medalhas, dos sem pátria, dos sem títulos, dos sem dotes, dos abandonados,
dos sem alma...
Não se sabe o porquê, então, um aleijado
passa pelo mendigo vestido com uma capa, meio escondido, cego e com um cajado.
Ninguém o vê, apenas o mendigo que o reconhece:
- Monge Hermano!
Este apenas lhe diz sorrindo:
- Salve rainha, mãe de misericórdia,
vida, doçura, esperança nossa, salve!
A vós bradamos os degredados filhos de
Eva.
A vós suspiramos, gemendo e chorando
neste vale de lágrimas.
Eia, pois, advogada nossa, esses vossos
olhos misericordiosos a nós volvei, e depois deste desterro nos mostrai Jesus,
bendito fruto do vosso ventre.
Aproxima-se de um pequeno chafariz e
molha o seu rosto quente.
A febre alta lhe traz devaneios e alucinações.
São cavalos alados. Misturam-se numa dança celestial, celebram com canções e
danças.
A felicidade de uma boa colheita.
Cavalo negro,
Cavalo cor de fogo,
Cavalo esverdeado,
Cavalo branco.
Todos esquecem as suas preocupações,
cantam e dançam.
O ar está temperado com prazer e pela
estação que convida tantos, tantos a saírem do seu recobro para participarem e
se divertirem. O tempo passa e o mendigo parece sofrer muito com uma respiração
ofegante. Uma dor no peito. Um espírito angustiado nas madrugadas...
Os caçadores aparecem com a madrugada.
Com trompetes e cães, além de espingardas começando a sua caçada. A caça foge e
eles seguem o seu rasto, ela aterrorizada e cansada de tanto ruído. De
espingardas e cães, a caça, ferida, morre.
Sem posses e abandonado, o mendigo
misterioso sofre e é acolhido por uma viúva artesã. Mora de caridade, numa
modesta casa. Anônimo. Com o passar dos dias, a luz lhe parece mais distante,
mais sombria.
O tempo muda lentamente. Chega o inverno.
A saudade lhe visita sempre. Até dos inimigos tem saudades.
- Aquele cretino do Benedetto... Bem que
deveria ter dado-lhe um soco!
Saudades do luxo de outrora.
- Por onde andarão os meus irmãos?
Ah! Doce recanto de virgens belas.
- Maria nossa mãe, tenha piedade de mim!
Queria apenas cantar a vida, a natureza, o belo de Deus que aqui se faz.
A música é o meu refúgio, a única forma
que tenho para traduzir as maravilhas do sagrado.
Sinto-me inquieto, como se o tempo fosse
um pequenina chama de vela acesa ao ponto de apagar-se...
E, pressa, tenho muita pressa e
necessidade da contemplação ao mesmo tempo, da extravagância, do imediato, do
finito, do profano...
- Uma vontade de dar glória, glória,
glória, glória a Deus nas alturas, no entanto, meu corpo já não corresponde meu
espírito cansado.
- Essa agonia, esse desejo sufocado, oh
Deus, o que fiz de minha vida?
- O que a vida fez de mim?
- Tanto eu queria Te servir, mas preferi
servir aos homens e seus enganos fúteis, onde tudo tem um valor.
Meu espírito abatido chega a ti em
súplicas. Enquanto houver fagulhas de teu sopro divino, ainda restará
esperanças para os que o temem.
- Queria que me ouvisse no alto do céu,
meu coração atormentado e juvenil de outrora, agora, abandonado.
- Quantas vezes, chorando, orei a ti o
salmo 38 de Davi: ‘‘Não me repreendas, Senhor, na tua ira, nem me castigues no
teu furor.
Cravam-se em mim as tuas setas, e a tua
mão recai sobre mim. Não há parte sã na minha carne, por causa da tua
indignação; não há saúde nos meus ossos, por causa do meu pecado. Pois já se
elevam acima de minha cabeça as minhas iniquidades; como fardos pesados,
excedem as minhas forças. Tornam-se infectas e purulentas as minhas chagas, por
causa da minha loucura”.
Ele, tremendo de frio, no meio de
cortantes ventos.
Os dentes tremem de frio. Descansa
contente na sala, enquanto os que estão fora são atingidos pela chuva que não
para.
Andamos com cuidado no caminho gelado com
medo de escorregar e cair.
Depois voltamos abruptamente e com
cuidado, mas caímos no chão e atravessamos o gelo enquanto não se quebra.
Voltamos a sentir o cortante vento norte
apesar das portas fechadas.
Isto é o inverno que não obstante tem as
suas delícias.
Vivo a mendigar o pão que, em outros
tempos, era farto.
Desfruto da angústia! Preciso de ar. Pega
a sua bíblia, corroída pelo tempo, guardada numa maleta velha de couro.
Emociona-se, quando reconhece a caligrafia de seu pai escrito:
À
meu filho Antônio Vivaldi com amor,
Giovanni
Battista Vivaldi,
Veneza,1963.
Então, um fiapo de voz, lê com muita
dificuldade, o salmo 143, como uma despedida.
- “Ó senhor Deus, ouve a minha oração!
Escuta o meu pedido.
Responde-me, pois és fiel e bom.
Não julgues a mim, este teu servo,
...Ele me pôs numa prisão escura,
…E eu sou como aqueles que morreram.”
Ouço a tua música aos meus ouvidos. É
um som refrescante, tem cheiro de rosas brancas...
Sente-se sonolento, ao mesmo tempo,
feliz.
-
Quem será ele?
- Não tem nome.
- Deve ser um coitado qualquer sem
estirpe!
- Está morto...
- Olhem, tem algo na suas roupas.
- Parece uma... medalha de ouro!
-
Ouro?
- Ele era um cavaleiro?
- Quem sabe... Pode ter sido roubada.
Foi enterrado como um indigente.
Uma
gôndola navega no céu de Viena.
Um violinista mascarado o espera lá
dentro. É o seu pai. Que lhe entrega o instrumento.
Antônio toca, divinamente,
não há tristezas, não há mais alegrias, não mais ilusões, não há mais vaidades,
eles continuam a navegar até os altos do céu.
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