quinta-feira, 25 de março de 2021

IVANILSON SOUSA: alguns poemas

Ivanilson Sousa é natural de Rio Branco-AC, onde nasceu a 15 de junho de 1992. Licenciado em Pedagogia, pela UNIP, o poeta e artista plástico vive atualmente no município de Senador Guiomard-AC. Sua arte, poesia e pintura, é marcada pela identificação com o seu ser e a causa negra, refletida nas suas memórias, lutas, orixás, dores e sonhos. Bem como o seu lugar de fala, a Amazônia acreana. Ivanilson integra a safra dos jovens poetas acreanos da contemporaneidade, que se distancia da grande maioria pelo conteúdo e pela forma, uma poesia mais humana, sofrida, até, mas profundamente verdadeira e bela.




LOUVORES A TODOS NEGROS SANTOS

 

Como quero unir sua pele negra

Junto à minha

Você sabe, quando

a gente pega chuva e sol

Nossa cor brilha

Tive privilégio de amar o negro

Que existe em quase toda a terra;

Sangramos com as mesmas mãos

Que tocaram blues e soul music

Fiz amor com o universo da cor negra

Parece que entrei em ti

E você em mim

Fazemos parte de uma só carne

Essa carne apedrejada e morta

Não me traga cruzes com pessoas brancas

Me deixe girar e girar

Sentir os orixás

E beijar nosso terreiro de macumba

Umbanda e candomblé

Quero ir no barco com Xangô e Iemanjá

Com minhas filhas vestidas de branco

Jogando flores brancas e rosas no rio e no mar

Quero dar dinheiro pra os índios

Para eles se vestirem de ouro que roubaram deles

Caminhe

Com espinhos nos pés

Amei

Amei

As cavernas, mata e quilombo

O paraíso existente na terra

Terra queimada por pessoa do Oriente

O que aconteceu?

Não quero ouvir grito e nem chicote

Só louvores aos homens negros santos.

 


A CHUVA NA CACHOEIRA

 

Águas brilham seu corpo dourado negro

Cabelos cacheados da cor da noite

Só tua luz guia nossos corações

Luz transparente viva e da fonte

Cai o sereno como no mar

A beleza se constrói gota por gota

Chegam-te até as flores

No espelho a tua imagem brilha

Teu canto pra ouvir sonhando

Teu canto pra quem te amar

E pra quem te odeia

Ouvi teus nomes em outras vidas

Mas sua história é uma só

Fui me banhar numa cachoeira

Lembra-te

Unindo-se à floresta, tempo de chuva

Não parava de chover

Um carinho imenso

Tal quando a mãe dá abraço ao filho

Depois de reencontrá-lo há anos.

 


O NASCIMENTO DA SENSIBILIDADE

 

Banho de estrela de águas

Um sorriso tímido

Uma brincadeira

Música de nossa adolescência

Tipo só voz e violão

Temos a vida e natureza para ser feliz

Uma amiga e um abraço carinhoso

A gente pouco sabe

Com um pouco de amor

Nos amamos

Parece um coração de mãe

E as verdades e a verdadeira amizade?

Tenho guardado paisagem do pôr do sol

Para você

Amo as cores da flor de seu vestido

Amo o simples humano

Compreendo e ao mesmo tempo entendo

Eu e outro

Passei um tempo nascendo numa rosa

Pude tocar, sentir e renascer

Num índio e

viver livre com todos que amamos



O ENCONTRO DAS LUAS EM RISCO ESCURO

 

As luas se encontraram com risco escuro

Outras eram luzes pegando fogo na terra

As cinzas viram nuvens sem cor

Na cabeça do poeta

Escreva estrela

Escreva sol com arco chuva

Brilhando sem parar o arco-íris da maldade

São dias de amarelo na terra

Ninguém pisa,

só corre como se andasse

Plantei uma árvore velha no meu coração

E vivi cem anos de idade



CAPOEIRA POR TODA VIDA

 

A capoeira é para quem sabe dar valor

Ela foi feita por negro sonhador

Que sonharam com a liberdade

E esse sonho um dia se realizou

Capoeira, capoeira é para quem quer

E sabe dar seu valor real.

 

Ginga ginga na roda

Que o toque do mestre bimba

Tá tocando no berimbau

Capoeira é capoeira é para todos

Tem música

Tem história de negro raiz

Tem várias décadas de vida

Viva a capoeira por toda vida.

 


PERFEITA NATUREZA DA PAZ

 

Beleza em palavras

Sempre clareando a consciência

De nossos caminhos

Veio ao justo e ao pecador

E a rosa em verdade com luz do sol

O sol, o céu e uma estrela de felicidade

Nosso caminho a guiar

Ao meio dia fez uma luz dourada

No sagrado útero nasce o bem

Mostrou a verdade em vários caminhos

Um coração fiel

Tudo é certo

Muito verdadeiro como justiça divina

Em oração são jardim de tantas flores

Cure

Ame

Uniu céu com a terra

Nasceu a perfeita natureza da paz.

 


TODOS NÓS TEMOS CAMINHOS A SEGUIR

 

Eu sorri muito

Lágrimas brilharam no seu rosto

Não foi à escola

Te chamei comigo

Para fazer uma história

Uma história diferente de todas as outras

Longe da vida normal

Vamos ser feliz

Pois já existe muita tristeza escondida

Vamos ser um só

Vivendo a loucura de ser nós mesmos

Com as roupas simples

Sempre fiel ao nosso caminho verdadeiro

Colhendo fé aos velhos amigos

Quero ser um idoso jovem

Caminhando diante de qualquer pessoa

Ouvindo o choro dos recém nascidos

Falando pouco e estudando

Eu sei, haverá dias de saudade

Vamos juntos para o destino do amor

da felicidade

 


QUADRO FOTOGRÁFICO DE IEMANJÁ NEGRA

 

Outro dia encontrei flores

Outra noite encontrei mortos

Ao meio dia, amores

Na primavera encontrei sábios senhores

Fiz delta blues com os mendigos

E os bêbedos da boca da noite

Namorei a beiro do rio

Pensando que era mar

Rezei com as cruzes e os escravos

Para Senhora Rainha Iemanjá

Na tempestade em alto mar.

 


HOMENAGEM AO POETA

 

Poeta é um profeta

Poeta é uma sabedoria

Só para quem sabe o valor de uma poesia

Um dia vi poeta falando de rosas

Disse que o coração dele era jardim de flores

O poeta fez arte da poesia e do poema

O poeta viveu tudo e escreve tudo

Olhei o pôr do sol

Consegui ver imagem do poeta

Vi poeta numa tristeza

Vi poeta na última felicidade

Poeta fez amor que ninguém viveu

Poeta foi seu próprio Deus

Poeta vive na lembrança

Poeta nunca morreu

Poeta está vivo em todos

Que acreditam no amor e na vida

 


CASA DE AVÓS

 

Saudades da avó

Saudades do céu cor da mata

Perfume do rio

Carregar balde de água na cabeça

E trabalho duro com filhos

Bater o arroz

Lavar roupa na água do igarapé

A roupa tá toda varal

Menina mulher vai limpar casa

E depois vai estudar

Para ser doutora

Vida batida

Eita, vida de sol quente.

 


MINHA PELE NEGRA

 

Minha pele negra

tem sangue de blues

Minha pele negra tem

quase todas as religiões

Sou negro e amo a todos

Sou guerreiro

Sou zumbi

Sou umbanda

Sou candomblé

Sou do rapper

que fala da minha vida

Sou do cabelo black

Sou do jazz e funk

Sou negro poeta

Sou negro família

Sou negro

e sempre vou querer a paz e justiça para todos

Sou negro, tem ouro

pelo meu corpo todo

Tenho sangue forte

Sou negro e

estamos em qualquer lugar

Até na hora de você pensar.

 


O DESENHO DO SOL PARA A PROFESSORA

 

Cheguei cedo na escola

Peguei o caderno

Desenhei um dia perfeito

Abracei forte a professora

Disse que ia ser bom homem

Pelo caminho deixei flores e espinhos

Mas da tristeza, tirei sorriso

No final de boa partida de futebol

Fui olhar o sol

O sol acendia minha cor negra

Cheguei a casa com minha mãe

Comi ovo, arroz e feijão

Ouvi programação da rádio

Onde tocava uma música local

Esperei a chuva cair

Para eu sair correndo pela rua

E encontrar os meninos.

 


A DAMA EM CAMINHO QUADRADO

 

Brincamos pela manhã, e na tarde

Tinha som riscando linhas

Parecia confuso

Mas te conheci em uma cor escura

Jogar e esquecer-se dos problemas

Vencemos a depressão

Ela tem rosto de tempestade

Sem fim

Pulamos em nuvens

Cheguei na cachoeira do teu coração






 
Todas as obras que ilustram os poemas são também de autoria de Ivanilson Sousa.

sábado, 20 de março de 2021

LEILA MÍCCOLIS: alguns poemas

Leila Míccolis, poeta, ensaísta, romancista, contista, roteirista de cinema e televisão, dramaturga. Leila integrou a geração da poesia dos anos 70, da geração do mimeógrafo, da contestação e das lutas, que deu aos Brasil grandes poetas. Leila acumula mais de 50 anos de poesia, desde 1965, quando publicou Gaveta da solidão. Considerada umas das primeiras poetas feministas, em 2013, pela editora Annablume, saiu “Desfamiliares: poesia completa de Leila Míccolis, 1965-2012”. Os poemas abaixo foram retirados dos livros Mercado de Escravas (Rio de Janeiro, Achimé/Trote, 1984), em coautoria com Glória Perez; e De 4 (São Paulo, Edicon, 1990), também com Glória Perez, além de Marçal Aquino e Ona Gaia.  


Do livro MERCADO DE ESCRAVAS (1984)

 

ponto de vista

 

Eu não tenho vergonha

de dizer palavrões,

de sentir secreções

(vaginais ou anais).

As mentiras usuais

que nos fodem sutilmente

essas sim são imorais,

essas sim são indecentes. p. 56

 

guerra fria

 

Sou mulher: minha trincheira

é de pó

e aspira dor.

O meu campo de batalha

e também minha mortalha

é dentro da minha casa

a fazer balas (de açúcar),

e a tratar dos ferimentos

dos filhos que caem no chão.

Fogo e facas, uso apenas

pra cozinhar minhas penas.

É inofensivo o arsenal

que utilizo, a ponto tal

que o meu tanque (de cimento)

arma que nunca enferruja

é feito de roupas sujas. p. 60

 

alvos

 

Se saio com quatro pedras na mão

me chamam de doida.

Eu sorrio e os apedrejo,

para aprenderem

que as loucas têm perfeita pontaria. p. 64

 

desgraça pouca é bobagem...

 

Minha mãe se preocupava

quando bem tarde eu voltava

sem saber com quem eu andava;

agora que estou casada

e não saio mais de casa,

dias e dias trancada,

entediada, amolada,

ela está mais sossegada... p. 74

 

preconceito

 

Quando Aída Curi foi currada,

estuprada,

violada,

morta por três homens

ouvi gente puritana

dizer ainda: – “Bem feito!,

quem mandou ser leviana?”... p. 80

 

santo remédio

 

Eu já tinha quinze anos

e nada de menstruar.

Foi então que mãe me disse:

– “uma mocinha direita

prum bom partido arranjar,

tem de aprender a lavar,

passar, coser, cozinhar,

falar baixo, ser discreta,

sem emoções demonstrar,

senão os homens abusam

depois não querem casar

e ainda fazem fedelhos...”

Após seus sábios conselhos

eu comecei a sangrar. p. 85

 

missão cumprida

 

Você conseguiu tudo na vida:

uma grande barriga

bem alimentada,

uma amante infiel

uma esposa comportada

carro do ano

filhos rebeldes ao teu jugo tirano

casa própria, emprego com crachá

um sítio em Visconde de Mauá

um ufanista amor pelo país

tudo como manda o figurino

(de Paris).

E morrerás, cumprindo a sua parte,

de tensão ou de enfarte,

de repente,

sem ao menos de longe perceber

que podia ter sido diferente. p. 94

 

do livro De 4 (1990)

 

TENTATIVA DE SUICÍDIO

 

Foi ao toalete

e cortou os sonhos,

a gilete. p. 45

 

MARÉ ALTA

 

O bar entrou pelo mar

e se pôs a navegar. p. 46

 

POSIÇÃO

 

Injustiça e veneno

é dizer que só me deito sobre os louros

Também sob os morenos... p. 47

 

EXERCÍCIO

 

Atrito palavras.

Poesia pra mim

é f(r)icção. p. 54

 

PÁREO DURO

 

Às vezes

entre o amar e o querer,

a distância é de um corpo. p. 55

 

PLANOS CRUZADOS

 

“Tudo congelado”

– se decreta.

E penso: menos o poeta. p. 70

 

AQUÉM DA IMAGINAÇÃO

 

Num viver tão dicotômico

o ser humano que é cósmico,

tornou-se cômico. p. 70

 

Do livro POESIA JOVEM ANOS 70 (São Paulo, Abril Educação, 1982)

 

Estabilidade

 

Vivemos como casal:

você trabalha demais,

me sustenta,

proíbe isso e aquilo,

exige a casa arrumada,

quer almoço à uma hora,

o jantar às sete e meia,

sobremesas variadas...

 

com teus caprichos concordo

e por vingança, te engordo. p. 98