quarta-feira, 29 de outubro de 2014

VIAGEM SOBRE O ESPELHO

Cassiano Ricardo (1895-1974)


Na grande tarde, que é um arco
vermelho
oscila o barco
sobre o espelho.

Nesse barco navega o meu rosto.
O meu rosto de tripulante
olha o meu rosto de náufrago
no espelho.

A viagem é longa. A paisagem
também oscila
entre o meu mundo em viagem
e a água tranquila.

Tudo é oscilação na tarde.
A água como que balança
em cada curva
entre o futuro e a demora.

Depois caminha oscilando
entre as duas margens opostas
como uma pergunta: até quando?
entre duas respostas.

Mas a oscilação mais grave
é a da viagem sobre o espelho.
Em que cada um de nós navega
com dois rostos.

Tripulante sobre o barco
e náufrago no meu reflexo
sob a tarde, em forma de arco,
vou eu, cada vez mais perplexo.

O meu rosto que se debruça,
vê o outro, caído ao fundo.
E sente, através do outro,
o abismo que aos meus pés carrego.

Antípoda de mim mesmo
entre mim e a minha mágoa
levo os dois rostos a esmo
um em meu corpo, outro n’água

O que, por força, conduzo
preso ao corpo
é o que não naufragou ainda.
O outro é o que perdi para sempre.

Viagem dupla, quase sem alvo,
em que o meu barco desliza,
entre o que há em mim de salvo
e o que de salvação precisa.

Na grande tarde, que é um arco
vermelho
oscila o barco
sobre o espelho.


RICARDO, Cassiano. Melhores Poemas. Seleção Luiza Franco Moreira. São Paulo: Global, 2003. p.66-68

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

NOVAS LUTAS

Friedrich Nietzsche (1844-1900)


Depois que Buda morreu, sua sombra ainda foi mostrada numa caverna durante séculos – uma sombra imensa e terrível. Deus está morto; mas, tal como os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada. – Quanto a nós – nós teremos que vencer também a sua sombra!


NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Tradução, nota e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. §108

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

TEU RISO

Pablo Neruda (1904-1973)


Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, porém nunca
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que debulhas,
a água que de repente
em tua alegria estala,
essa onda repentina
de prata que te nasce.

De áspera luta volto
com olhos fatigados
por vezes de ter visto
a terra que não muda,
mas ao chegar teu riso
sobe ao céu me buscando,
e abre para mim todas
as portas desta vida.

Amor meu, no momento
mais escuros desata
o teu riso, e se acaso
vês que meu sangue mancha
as pedras do caminho,
ri, porque teu riso
será, em minhas mãos,
como uma espada fresca.

Junto ao mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e em primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que eu esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Que te rias da noite,
ri do dia, da lua,
das ruas tortas da ilha,
ri do desajeitado
rapaz que te quer tanto,
porém quando mal abro
os olhos, quando os fecho,
quando os meus passos vão,
quando os meus passos voltam,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
senão, amor, eu morro.


TU RISA

Quítame el pan, si quieres,
quítame el aire, pero
no me quites tu risa.

No me quites la rosa,
la lanza que desgranas,
el agua que de pronto
estalla en tu alegría,
la repentina ola
de plata que te nace.

Mi lucha es dura y vuelvo
con los ojos cansados
a veces de haber visto
la tierra que no cambia,
pero al entrar tu risa
sube al cielo buscándome
y abre para mí todas
las puertas de la vida.

Amor mío, en la hora
más oscura desgrana
tu risa, y si de pronto
ves que mi sangre mancha
las piedras de la calle,
ríe, por que tu risa
será para mis manos
como una espada fresca.

Junto al mar en otoño,
tu risa debe alzar
su cascada de espuma,
y en primavera, amor,
quiero tu risa como
la flor que yo esperaba,
la flor azul, la rosa
de mi patria sonora.

Ríete de la noche,
del día, de la luna,
ríete de las calles
torcidas de la isla,
ríete de este torpe
muchacho que te quiere,
pero cuando yo abro
los ojos y los cierro,
cuando mis pasos van,
cuando vuelven mis pasos,
niégame el pan, el aire,
la luz, la primavera,
pero tu risa nunca
por que me moriría. 

NERUDA, Pablo. Os versos do capitão. Tradução Thiago de Mello. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. p.28-31

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

CAFÉ EXPRESSO

Cassiano Ricardo (1895-1974)


1

Café expresso — está escrito na porta.
Entro com muita pressa. Meio tonto,
por haver acordado tão cedo…
E pronto! parece um brinquedo…
cai o café na xícara pra gente
maquinalmente.

E eu sinto o gosto, o aroma, o sangue quente de São Paulo
nesta pequena noite líquida e cheirosa
que é a minha xícara de café.

A minha xícara de café
é o resumo de todas as coisas que vi na fazenda e me vêm à memória apagada…

Na minha memória anda um carro de bois a bater as porteiras da estrada…
Na minha memória pousou um pinhé a gritar: crapinhé!
E passam uns homens
que levam às costas
jacás multicores
com grãos de café.

E piscam lá dentro, no fundo do meu coração,
uns olhos negros de cabocla a olhar pra mim
com seu vestido de alecrim e pés no chão.

E uma casinha cor de luar na tarde roxo-rosa…
Um cuitelinho verde sussurrando enfiando o bico na catléia cor de sol que floriu no portão…

E o fazendeiro, calculando a safra do espigão…

Mas acima de tudo
aqueles olhos de veludo da cabocla maliciosa a olhar pra mim
como dois grandes pingos de café
que me caíram dentro da alma
e me deixaram pensativo assim…

2

Mas eu não tenho tempo pra pensar nessas coisas!
Estou com pressa. Muita pressa.
A manhã já desceu do trigésimo andar
daquele arranha-céu colorido onde mora.

Ouço a vida gritando lá fora!
Duzentos réis, e saio. A rua é um vozerio.
Sobe e desce de gente que vai pras fábricas.

Pralapracá de automóveis. Buzinas. Letreiros.
Compro um jornal. O Estado! O Diário Nacional!
Levanto a gola do sobretudo, por causa do frio.
E lá me vou pro trabalho, pensando...

Ó meu São Paulo!
Ó minha uiara de cabelo vermelho!
Ó cidade dos homens que acordam mais cedo no mundo!


RICARDO, Cassiano. Melhores Poemas. Seleção Luiza Franco Moreira. São Paulo: Global, 2003. p.49-51

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

EINSTEIN E A EDUCAÇÃO

Irineu Monteiro


Einstein encara os problemas educacionais a partir de sua experiência e convicções pessoais. Em Pensamento Político e Últimas Conclusões – obra que abrange cerca de 15 anos de atividades intelectuais e práticas, em contacto com o mundo e suas lutas, reflete ele sua vivência filosófica, política, social e espiritual. Penetra em áreas muito atuais para a humanidade de hoje. Suas reflexões têm conteúdo vivo e que pode produzir, na mente dos interessados no assunto, uma reação positiva em busca de conclusões satisfatórias para os problemas educacionais da sociedade mutante:

Sobre a escola, o cientista-filósofo assim se expressa:

“A escola sempre foi o meio mais importante para transferir a riqueza da tradição de uma geração para outra. Isso se passa hoje num grau mais elevado do que em épocas anteriores, pois, através do desenvolvimento moderno da vida econômica, a família como portadora da tradição e da educação perdeu seu poder. A continuidade e a sanidade da sociedade humana, portanto, dependem hoje bem mais da escola do que antigamente.”

Critica o fato de que a escola, encarada por alguns educadores mal informados, é encarada como “instrumento”, ou, talvez, máquina destinada a colocar na cabeça dos alunos “certa quantidade máxima de conhecimentos”. Einstein afirma que o conhecimento em si mesmo é morto. O educando não, este é vivo:

“Algumas vezes considera-se a escola simplesmente como instrumento para transferir uma certa quantidade máxima de conhecimento à nova geração. Mas isto não é correto. O conhecimento é morto; a escola, porém, serve aos vivos. Deveria desenvolver nos indivíduos jovens as qualidades e capacidades que são valor para o benefício da comunidade. Mas isso não significa que a individualidade deveria ser destruída para que o indivíduo se tornasse mero instrumento da comunidade, como uma abelha ou uma formiga. Uma comunidade de indivíduos padronizados, sem originalidade pessoal e sem aspirações pessoais, seria uma comunidade inferior, sem possibilidade de desenvolvimento.”

A motivação é que ativa o educando. Sem este elemento dinamizador, não haverá interesse por parte do homem face a uma possível realização. A instrução fornece ao homem o que se denomina conhecimento – instrumentos ou objetos destinados aos profissionalismos. A educação por sua vez, tem por finalidade esperar no homem suas potencialidades (valores da sua natureza interna), desenvolvendo-as criadoramente. A instrução tem seus limites e mutações no correr dos tempos. Lida com coisas e não com vidas, com seres racionais. Num manual escolar há coisas estáticas. Numa vida racional sempre há elementos dinâmicos, criatividade latente, adormecida e que deve ser despertada ou ativada. Sem motivação, a educação não tem sentido. Einstein tece reflexões sobre o assunto:

“Por detrás de cada realização existe a motivação que é seu fundamento e que, por sua vez, é fortalecida e alimentada pela própria realização do empreendimento (...) A motivação mais importante do trabalho, na escola e na vida, é o prazer no próprio trabalho, prazer em seu resultado e o conhecimento do valor desse resultado para a comunidade. No despertar e no fortalecer dessas forças psicológicas no jovem, vejo a tarefa mais importante fornecida pela escola.”

Opõe-se Einstein ao tipo de ensino que torne o indivíduo uma espécie de “ferramenta”:

“Quero opor-me à ideia de que a escola tem de ensinar diretamente o tipo especial de conhecimento e as técnicas que uma pessoa tenha que utilizar mais tarde diretamente na vida. As exigências da vida são demasiado múltiplas para permitir que uma preparação tão especializada seja possível na escola. Além disso, parece-me também digno de objeção tratar o indivíduo como uma ferramenta morta. A escola deveria sempre ter como alvo que o jovem saísse dela como uma personalidade harmoniosa, não como um especialista. Isso, na minha opinião, se aplica até certo ponto às escolas técnicas, cujos alunos se dedicarão a uma profissão bem definida.”

A primazia do “desenvolvimento da capacidade geral do pensamento e julgamento” é um fato perfeitamente aceito por Einstein. E nisto está evidente que a criatividade se projeta:

“O desenvolvimento da capacidade geral de pensamento e julgamento independentes, sempre deveria ser colocado em primeiro lugar, e não a aquisição de conhecimento especializado. Se uma pessoa domina o fundamental no seu campo de estudo e aprendeu a pensar e a trabalhar independentemente, ela encontrará o seu caminho e, além do mais, será capaz de adaptar-se ao progresso e às mudanças do que a pessoa cujo treinamento consiste principalmente na aquisição de conhecimento detalhado.”

A ausência de estímulo mental, o treinamento mental obliterado, a ênfase do “êxito no sentido costumeiro” são elementos negativos na educação dos jovens. De maneira sabiamente formulada, Einstein levanta o problema, aguçando a mente daqueles que se interessa pelo assunto:

“O desejo de obter reconhecimento e consideração, está firmemente arraigado na natureza humana. Com a ausência de estímulo mental desse tipo, a cooperação humana seria inteiramente impossível; o desejo de aprovação por parte dos semelhantes é certamente um dos mais importantes fatores de coesão da sociedade (...) O homem deve sua força na luta pela vida, ao fato de ser um animal que vive em sociedade (...) Deveríamos abster-nos de pregar aos jovens o êxito, no sentido costumeiro, como alvo da vida. Pois um homem bem sucedido é aquele que recebe muito de seus semelhantes, geralmente muitíssimo mais do que corresponde ao serviço que lhes prestou. O valor de um homem, no entanto, deveria ser avaliado pelo ele dá e não pelo que é capaz de receber.”

Finalmente, o treinamento – sua importância para o educando – e aqui se pode citar a frase de John Dewey: “Só se aprende a fazer, fazendo”. Einstein dá ênfase ao treinamento:

“Se um jovem treinou seus músculos e sua resistência física pela ginástica e pelas caminhadas, mais tarde ele estará apto a qualquer tipo de trabalho físico. isto também é análogo no treinamento da mente e no exercício da habilidade mental e manual. Assim, não estava errado o sábio que definiu a educação do seguinte modo: ‘A educação é o que sobra, quando se esqueceu tudo aquilo que se aprendeu na escola.’ Por esta razão não tenho nenhum desejo de tomar partido na luta entre os seguidores da educação clássica filológico-histórica e os educadores mais dedicados às Ciências Naturais.”


MONTEIRO, Irineu. Einstein: reflexões filosóficas. São Paulo: Martin Claret, s/d. p.89-93

domingo, 19 de outubro de 2014

“CRUZ DO MEU PENSAR”

Fernando Pessoa (1888-1935)


Mundo, confranges-me por existir.
Tenho-te horror porque te sinto ser
E compreendo que te sinto ser
Até às fezes da compreensão.
Bebi a taça [...] do pensamento
Até o fim; reconheci-a pois
Vazia, e achei horror. Mas eu bebi-a.
Raciocinei até achar verdade,
Achei-a e não a entendo. Já se esvai
Neste desejo de compreensão,
Inalteravelmente,
Neste lidar com seres e absolutos,
O que em mim, por sentir, me liga à vida
E pelo pensamento me faz homem.
...................................................................
...................................................................
...............................E neste orgulho certo
Fechado mais ainda e alheado
Me vou, do limitado e relativo
Mundo em que arrasto a cruz do meu pensar.


PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. p.454

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

CRISTIANISMO

Raul de Leoni (1895-1926)


Sonho um cristianismo singular
Cheio de Amor divino e de prazer;
O Horto de Mágoas sob um céu virgiliano,
A beatitude com mais luz e com mais ar...

Um pequeno mosteiro em meio de um pomar,
Entre loureiros-rosa e vinhas de todo o ano,
Num misticismo lírico, a sonhar
Na orla florida e azul de um lago italiano...

Um cristianismo sem renúncia e sem martírios,
Sem a pureza melancólica dos lírios,
Temperado na graça natural...

Cristianismo de bom humor, que não existe,
Onde a Tristeza fosse um pecado venial,
Onde a Virtude não precisasse ser triste... 


LEONI, Raul de. Melhores poemas. Seleção Pedro Lyra. São Paulo: Global, 2002. p.97

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

PROFESSOR

Friedrich Nietzsche (1844-1900)


Retribuímos mal a um professor, se continuamos apenas alunos.


NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.75

terça-feira, 14 de outubro de 2014

CANSA SENTIR

Fernando Pessoa (1888-1935)


Cansa sentir quando se pensa.
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar.

Neste momento insone e triste
Em que não sei quem hei de ser,
Pesa-me o informe real que existe
Na noite antes de amanhecer.

Tudo isto me parece tudo.
E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.

(Tudo isto me parece tudo.
Mas noite, frio, negror sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo –
Ah, nada é isto, nada é assim!)


PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. p.163-164

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

LEGENDA DOS DIAS

Raul de Leoni (1895-1926)


O Homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousas... e, à saída,
Leva uma crença vaga, indefinida,
De achar o Ideal nalguma encruzilhada...

As horas morrem sobre as horas... Nada!
E ao Poente, o Homem, com a sombra recolhida,
Volta, pensando: “Se o Ideal da Vida
Não veio hoje, virá na outra jornada...”

Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim,
Mais ele avança, mais distante é o fim.
Mais se afasta o horizonte pela esfera.

E a vida passa... efêmera e vazia:
Um adiamento eterno que se espera,
Numa eterna esperança que se adia...


LEONI, Raul de. Melhores poemas. Seleção Pedro Lyra. São Paulo: Global, 2002. p.69

domingo, 12 de outubro de 2014

MENINO DO MATO

Manoel de Barros


Eu queria usar palavras de ave para escrever.
Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem
nomeação.
Ali a gente brincava de brincar com palavras.
tipo assim: Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!
A Mãe que ouvira a brincadeira falou:
Já você com suas visões!
Porque formigas nem têm joelhos ajoelháveis
e nem há pedras de sacristia por aqui.
Isso é traquinagem da sua imaginação.
O menino tinha no olhar um silêncio de chão
e na sua voz uma candura de Fontes.
O Pai achava que a gente queria desver o mundo
para encontrar nas palavras novas coisas de ver
assim: eu via a manhã pousada sobre as margens do
rio do mesmo modo que uma garça aberta na solidão
de uma pedra.
Eram as novidades que os meninos criavam com as suas
palavras.
Assim Bernardo emendou nova criação: Eu hoje vi um
sapo com olhar de árvore.
Então era preciso desver o mundo para sair daquele
lugar imensamente e sem lado.
A gente queria encontrar imagens de aves abençoadas
pela inocência.
O que a gente aprendia naquele lugar era só ignorâncias
para a gente bem entender a voz das águas e
dos caracóis.
A gente gostava das palavras quando elas perturbavam
o sentido normal das ideias.
Porque a gente também sabia que só os absurdos
enriquecem a poesia.


BARROS, Manoel de. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010. p.449-450

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

DO MEU EVANGELHO

Raul de Leoni (1895-1926)


Para possuíres a filosofia
Das cousas, como um cético risonho,
Cheio de uma bondade comovida,
É preciso que tenhas algum dia
Escapado da Vida para o sonho
E voltado do sonho para a vida.


LEONI, Raul de. Melhores poemas. Seleção Pedro Lyra. São Paulo: Global, 2002. p.83

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

MAGIA E FELICIDADE

Giorgio Agamben


Benjamin disse, certa vez, que a experiência que a criança tem do mundo não é a de que “os adultos são mais fortes, mas sua incapacidade de magia”. A afirmação, proferida sob o efeito de vinte miligramas de mescalina, não é, por isso, menos exata. É provável, aliás, que a invencível tristeza que às vezes toma conta das crianças nasça precisamente dessa consciência de não serem capazes de magia. O que podemos alcançar por nossos méritos e esforço não pode nos tornar realmente felizes. Só a magia pode fazê-lo. Isso não passou despercebido ao gênio infantil de Mozart, que, em carta a Bullinger, vislumbrou com precisão a secreta solidariedade entre magia e felicidade: “Viver bem e viver feliz são duas coisas diferentes, e  a segunda, sem alguma magia, certamente não me tocará. Para isso, deveria acontecer algo verdadeiramente fora do natural”.

As crianças, como os personagens das fábulas, sabem perfeitamente que, para serem felizes, precisam conquistar o apoio do gênio na garrafa, guarda em casa o burrinho-faz-dinheiro ou a galinha dos ovos de ouro. E, em todas as ocasiões, conhecer o lugar e a fórmula vale bem mais do que esforçar-se honestamente para atingir um objetivo. Magia significa, precisamente, que ninguém pode ser digno da felicidade, que, conforme os antigos sabiam, a felicidade à medida do homem é sempre hybris, é sempre prepotência excesso. Mas se alguém conseguir dobrar a sorte com o engano, se a felicidade depender não do que ele é, mas de uma noz encantada ou de um “abre-te-sésamo”, então, e só então, pode realmente considerar-se bem aventurado.

Contra essa sabedoria pueril, que afirma que a felicidade não é algo que se possa merecer, a moral colocou desde sempre sua objeção. E o fez com as palavras do filósofo que, menos do que qualquer outro, compreendeu a diferença entre viver dignamente e viver feliz. “O que em ti tende ardorosamente para a felicidade”, escreve Kant, “é a inclinação; o que depois submete tal inclinação à condição de que deves primeiro ser digno da felicidade é tua razão”. Mas de uma felicidade de que podemos ser dignos, nós (ou a criança em nós) não sabemos o que fazer. É uma desgraça sermos amados por uma mulher porque o merecemos! E como é chata a felicidade que é prêmio ou recompensa por um trabalho bem feito!

Na antiga máxima segundo a qual quem se dá conta de ser feliz já deixou de sê-lo, mostra-se que o estreitamento do vínculo entre magia e felicidade não é simplesmente imoral, e que ele pode até ser sinal de uma ética superior. A felicidade tem, pois, com seu sujeito uma relação paradoxal. Quem é feliz não pode saber que o é; o sujeito da felicidade não é um sujeito, não tem a forma de uma consciência, mesmo que fosse a melhor. Nesse caso a magia faz valer sua exceção, a única que permite a um homem dizer-se ou considerar-se feliz. Quem sente prazer de algo por encanto da hybris implícita na consciência da felicidade, porque a felicidade, embora ele saiba que a tenha, em certo sentido não é sua. Assim, Júpiter, que se une à bela Alcmena, assumindo as feições do consorte Anfitrião, não sente prazer com ela como Júpiter. Nem sequer, apesar das aparências, como Anfitrião. Sua alegria pertence totalmente ao encanto, e se sente prazer, consciente e puramente, só com o que se obteve pelos caminhos tortuosos da magia. Só o encantamento pode dizer sorrindo: “eu”, e só a felicidade que nem sonharíamos merecer é realmente merecida.

Essa é a razão única do preceito segundo o qual só existe sobre a terra uma possibilidade de felicidade: crer no divino e não aspirar a alcançá-lo (uma variável irônica é, em conversa de Kafka com Janouch, a afirmação de que há esperança, mas não para nós). Essa tese aparentemente ascética só se torna inteligível se entendermos o sentido do não para nós. Não quer dizer que a felicidade esteja reservada apenas a outros (felicidade significa, precisamente: para nós), mas que ela só nos cabe no ponto em que não nos estava destinada, não era para nós. Ou seja, por magia. Nesse momento, quando a arrebatamos da sorte, ela coincide inteiramente com o fato de nos sabermos capazes de magia, com o gesto com que afastamos, de uma vez por todas, a tristeza infantil.

Se for assim, se não houver felicidade a não ser sentindo-nos capazes de magia, então se torna transparente também a enigmática definição dada por Kafka sobre a magia, ao escrever que, se chamarmos a vida com o nome justo, ela vem, porque “esta é a essência da magia, que não cria, mas chama”. Tal definição está de acordo com a antiga tradição que cabalistas e necromantes seguiram escrupulosamente em todos os tempos, segundo a qual a magia é, essencialmente, uma ciência dos nomes secretos. Cada coisa, cada ser, tem além de seu nome manifesto, um nome escondido, ao qual não pode deixar de responder. Ser mago significa conhecer e evocar esse arquinome. Disso nascem as intermináveis listas de nomes – diabólicos ou angélicos – com as quais o necromante garante para si o domínio sobre potências espirituais. O nome secreto é para ele apenas a sigla de seu poder de vida e de morte sobre a criatura que o traz.

Há, porém, outra e mais luminosa tradição, segundo a qual o nome secreto não é tanto a chave da sujeição da coisa à palavra do mago, quanto, sobretudo, o monograma que sanciona sua libertação com relação à linguagem. O nome secreto era o nome com o qual a criatura havia sido chamada no Éden, e, ao pronunciá-lo, os nomes manifestos e toda a babel dos nomes acabaram em pedaços. Por isso, segundo a doutrina, a magia chama por felicidade. O nome secreto é, na realidade, o gesto com o qual a criatura é restituída ao inexpresso. Em última instância, a magia não é conhecimento dos nomes, mas gesto, desvio em relação ao nome. Por isso, a criança nunca fica tão contente quanto quando inventa uma língua secreta própria. Sua tristeza não provém tanto da ignorância dos nomes mágicos, mas do fato de não conseguir se desfazer do nome que lhe foi imposto. Logo que o consegue, logo que inventa um novo nome, ela ostentará entre as mãos o passaporte que a encaminha à felicidade. Ter um nome é a culpa. A justiça é sem nome, assim como a magia. Livre de nome, bem-aventurada, a criatura bate à porta da aldeia dos magos, onde só se fala por gestos.


AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução e apresentação Silvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. p.23-25

terça-feira, 7 de outubro de 2014

EU SEI, MAS NÃO DEVIA

Marina Colasanti


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.


COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. p.9-10