segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

ROGEL SAMUEL: alguns poemas

CASA ABANDONADA
Rogel Samuel

Por lá não há mais ninguém
nesta casa abandonada
nem os fantasmas esguios
nem as fadas enamoradas
nem mendigos nem ninguém
mesmo o tempo por lá não encosta
mesmo as recordações se desfazem
as memórias as cansadas
naves da madrugada
cinzas do que passou
solidão das marés
esquecimento e silêncio


NOITE NEGRA
Rogel Samuel

Noite negra
Noite. Noite negra, nessa montanha.
Negra noite
Unidos pelo mesmo hálito,
o mesmo manto sem estrelas.
Nesse mundo, onde estamos nós?
Nessa noite negra. Tão negra
que deixamos acesa aquela luz.
Entre nós. Nossas luzes.
Negra noite.


JARDIM ANTIGO
Rogel Samuel

um fato aconteceu
no silêncio das flores do jardim abandonado
entre os arbustos
e folhas secas
aumentaram as cores
a vivacidade variada
libertaram
não sabem a nenhum
germinam grandes entre pedaços de
estatuária
debaixo de pedras
dentro dos tanques surdos
somente perdidos anjos
e o cão preto
aquelas aves desgarradas
aquelas murtas velhas
não a veem
à noite um lagarto verde
entre as estrelas azuis
as flores dormem
as flores há muito tempo lá estavam
elas dormem


Acesse a página de Rogel Samuel:

sábado, 25 de fevereiro de 2017

EZRA POUND: dois poemas

ALBA
Ezra Pound (1885-1972)

Enquanto o rouxinol à sua amante
Gorgeia a noite inteira e o dia entrante
Com meu amor observo arfante
Cada flor,
Cada odor,
Até que o vigilante lá da torre
Grite:
            “Levante, patife, sus!
                Vê, já reluz
                     A luz
                     Depressa, corre,
                     Que a noite morre...” p.102


SOIRÉE
Ezra Pound (1885-1972)

Ao ser informado de que a mãe escrevia versos,
E de que o pai escrevia versos,
E de que o filho mais novo trabalhava numa editora,
E que o amigo da filha segunda estava escrevendo um romance,
O jovem peregrino americano
Exclamou:
            “Eta penca de gente sabida!” p.103


POUND, Ezra. Poesia. Introdução, organização e notas de Augusto de Campos; traduções de Augusto de Campos... [et al.]; textos críticos de Haroldo de Campos. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1993.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O TRISTE DOER DE UMA MORTE NO RIO ENVIRA...

Jairo Lima 
Crônicas indigenistas

A super lua. Foto: Assis Kaxinawa
Parecia um dia como outro qualquer. O rio barrento mostrava vazante, quando as monções torrenciais dos últimos dias davam uma trégua. O barranco ainda estava bastante enlameado, mas já mostrava firmeza suficiente para que fosse possível subir sem se arriscar a um tombo bem feio e sujo.

O dia não estava quente, nem frio. Depois de dias de chuva, os pássaros cantarolavam suas melodias numa “bagunça” de gorjeios por vezes indefiníveis.

Alguns nawa apareceram, subindo o rio com grande algazarra, pilotando seu batelão com certo descuido. Pararam na aldeia e ofereceram trocar umas “botijas”* de cachaça pelo que tivesse de carne. O negócio foi feito escambiando sete botijas por sete jabutis: “nawa estúpido e burro! Bicho tem um monte por aqui, mas bebida não!” – devem ter pensado os parentes ao fecharem o negócio. Este tipo de escambo era normal, afinal, esse nawa são vizinhos da terra indígena, dividindo com estes a solidão e a imutabilidade cotidiana de se viver em locais tão isolados.

A festa depois foi muito boa, e no mesmo dia todas as botijas estavam devidamente consumidas e jogadas em algum canto do terreiro.

Diana Kulina estava muito alegre, muito entorpecida pelo álcool, havia conversado e até cantado junto com os homens. Havia passado um pouco mal, pois não tinha costume de beber cachaça, mas logo acostumou. Assim como os demais envolvidos na festa, não se deu conta da passagem do tempo, e já de noitinha foi que, trôpega, decidiu retornar para casa, onde estava sua mãe e seus quatro filhos. A mãe ao vê-la naquele estado começou a reclamar muito, dando um “carão”, e lembrando à Diana Kulina sobre os cuidados com o uso do “veneno da alma” que tem dentro destas botijas. Gritou muito com ela por ter saído tão cedo e voltado naquele estado para casa. Isso não podia mais ocorrer, era preciso “tomar vergonha e respeitar a comunidade e a família” alertou.

Diana Kulina não falou muito, a confusão mental promovida pela embriaguez refletia-se nas palavras mal pronunciadas e na hostilidade de seus gestos. Calou-se e ficou somente sentada enquanto sua mãe continuava a ladainha sobre o que havia ocorrido. Diana fechou os olhos, meio que adormecida e a mãe, cansada de tanto que gritara resolveu ir dormir, levando consigo as crianças para suas redes, deixando-a sozinha, no escuro, encostada na parede de paxiúba**.



Amanhecer. Foto: Jairo Lima
O dia amanheceu trazendo o concerto característico das aves e dos animais domésticos, anunciando que o astro rei voltara para sentar-se em seu trono, onde iluminaria e aqueceria um dia que parecia ser tão quente e seco como o anterior. O rio continuava vazando, carregando em suas águas barrentas todo o tipo de “balseiro”*** possível: de pedaços de árvores a pequenas embarcações “raptadas” de portos ao longo das cabeceiras do rio.

Na aldeia o dia começa cedo, antes do sol esquentar. É nesse horário que se cozinha a macaxeira, faz-se o “quebrajum”**** necessário para as labutas diárias. A mãe, enquanto olhava o movimento do rio, chamou logo pela Diana Kulina, pois precisava de lenha e água para preparar a comida. As crianças estavam agitadas e a menor havia molhado a rede, que precisava ser estendida no varal ao lado da casa: “DIANA” – chamou mais forte a mãe, já impaciente e lembrando-se da raiva que tivera no dia anterior e indo em direção ao local onde deixara sua filha na noite anterior, largada e dormindo o sono entorpecido do álcool. Não a encontrando chamou-a novamente, mais forte e com a preocupação começando a tomar-lhe os pensamentos.

Diana não podia responder ao chamado da mãe, pois se encontrava morta, pendurada pelo pescoço. Havia cometido suicídio usando a rede como instrumento de sua morte.

Sua mãe desesperou-se e gritando acordou os vizinhos que ainda estivessem dormindo. Todos correram para a casa, tentando de todo custo ajudar. Era tarde demais, sua filha já estava morta fazia muito tempo, estava com a língua inchada. Morreu em silêncio, pois nada se ouviu na casa durante a noite.

O dia agora já estava claro, o astro rei já aquecia o mundo daquela aldeia. Os pássaros já não gorjeavam tanto, escondidos sob as sombras ou fazendo as coisas que os pássaros fazem em seu cotidiano. O rio continuava vazando. O céu azul indicava que não haveria chuva neste dia. Mas isso não seria percebido pela Diana Kulina, vinte e três anos de idade, que morreu pelas próprias mãos de maneira ignóbil, deixando quatro filhos pequenos que, certamente, jamais esquecerão a cena de encontrar a mãe naquele estado.

E assim mais uma vida se foi às margens do rio Envira. Uma vida vendida por exatos sete jabutis.



Foto: Ion David
Um dia depois chegou a equipe da FUNAI, tentando ajudar, perguntando quem havia dado as bebidas para a comunidade. Ninguém quis falar, evitando criar uma situação de conflito com os vizinhos. Foi relatado que outro parente, de nome Antonio Kulina, que participou da “festa” e morava noutra aldeia, também havia morrido, tendo sido assassinado por outro parente bêbado na mesma noite.

O enterro dos dois seria realizado neste dia. O astro rei não sentou em seu trono, pois chovia muito enquanto cavavam o buraco onde os corpos sem vida da Diana e Antonio seriam sepultados. As mulheres da aldeia choravam muito e as crianças estavam caladas, nos cantos ou perto das avós. Ao final do dia, os corpos de Diana e Antonio já se encontravam sob o nível dos pés dos seus parentes vivos. Suas covas não tinham inscrições que indicassem ser ali a última morada de suas vidas em matéria, no entanto, foi colocada uma cruz em cada sepultura, para indicar ser ali uma sepultura. Objeto estranho que traz consigo tantos significados e significantes.

Os homens que participaram da “festa” junto com Diana e Antonio estavam calados, com aquele ar “desconfiado” de quem não queria admitir ter feito parte da tragédia.

A mãe de Diana já falava em ir embora pra outra aldeia, levando as crianças. Não adiantava ficar ali, pois o espírito da filha estaria constantemente por perto, sem conseguir seguir seu caminho para o retorno à aldeia dos antepassados. Junto com as crianças começaria uma nova vida em outra aldeia, prometendo que não deixaria nenhum dos netos se envolverem com a bebida dos nawa. Alguns comentaram a revolta que a situação causou: “mais dois que morreram por causa desse veneno...”.

Ao fim, descobriu-se a identidade dos que forneceram a bebida para troca, porém, a princípio, pouco se poderia fazer em relação ao ocorrido *****.

Hoje faz vinte dias que Diana e Antonio foram encontrados mortos. Nenhuma nota desta tragédia foi registrada em jornais ou mídias locais, afinal, este tipo de informação não interessa para a população das cidades que ficam próximas à Terra Indígena. Este drama somente ficou na memória dos que presenciaram e registrada em relatório institucional, que li no dia de ontem, para servir de base para futuras ações da equipe de indigenistas.

Seu suicídio somou-se a outros que vem ocorrendo nas aldeias do povo Madija que habitam as margens do rio Envira e Purus. Mortes por suicídio ou homicídio que sempre tem como protagonista a presença do álcool. Situação que vem se complicando cada vez, onde os esforços de indigenistas para reverter a situação, até o momento, não vem surtindo efeito.



Foto: Pedro Devani
O rio já não está na vazante. O dia está nublado e os pássaros não gorjeiam. O que estará ocorrendo na aldeia que outrora foi o lar de vida da Diana e que agora somente guarda seus restos mortais? – Não sei, somente sei que, mesmo sem conhecê-la pessoalmente, a narrativa de seu infortúnio, que chegou-me através de relatórios e demais contatos com a equipe que atendeu a ocorrência, tocou-me profundamente, deixando-me em claro à noite, pensando nesta tragédia. Por quê? Não saberia responder. Talvez seja o fato de ter morrido ainda tão jovem; Talvez tenha sido o fato de ter deixado filhos pequenos que presenciaram a cena grotesca de sua morte; Talvez pelo fato de que sua morte apenas reforça a impotência do esforço em tentar reverter estas situações; Talvez por ver que nossos esforços nos últimos anos não tenham surtido efeito; Talvez por não saber, ainda, como evitar que mais tragédias como estas ocorram....

Talvez seja porque sua morte custou exatos sete jabutis...

O que posso fazer, no momento, é desejar que seu yuxin e o de Antonio descansem em paz e possam encontrar o caminho para a aldeia dos Ancestrais. Muito me dói não ter conseguido descobrir seus kena kuin (nome verdadeiro – nome indígena) para que sua lembrança pudesse ter sido devidamente registrada. 

Boa semana a tod@s!

* Botija – é o termo usado para designar pequenas garras plásticas de cachaça que são pequenas e de forma arredondada.
** Paxiúba – espécie arbórea em que sua casca é utilizada para cobrir paredes das residências;
*** Balseiro – Detritos oriundos de alagações provocadas pelo aumento dos rios, geralmente é formado por pedaços de paus ou de árvores inteiras levadas pela correnteza.
**** Quebrajum – ou “quebra jejum”, termo regional com o qual se designa o “café da manhã”.
***** A questão de venda e consumo de bebidas alcoólicas por indígenas é um debate que vem ganhando proporções, uma vez que o Estatuto do Índio, de 1973 estabelece o crime por tal prática, no entanto, a partir da Constituição de 1988 os povos indígenas adquiriram o status de cidadão brasileiro, com os mesmos direitos e deveres dos não-índios (acrescentando-se, claro, as especificidades contidas no Art 231 da Constituição). Mais sobre esta questão será tratado em textos posteriores.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

PORONGO: POEMAS DE PAULO BENTES


PORONGO 
Paulo Bentes (1908-1979)

O Porongo ficou dependurado no moirão
do meio do terreiro.
Choveu muito à noite.
Eu ouvia o barulhinho da chuva
acariciando o telhado da casa
e
achando bonita a cantiga da água caindo,
parecia ver,
lá fora,
no campo,
as árvores esparsas se lavando
e o capinzinho alegre e novo
tomando banho...

                                               Corriam as horas....
                                               A chuva continuava caindo...

Da minha rede eu julgava
que a chuva
que o céu chorava
no lenço escuro da noite
havia de entrar pela terra,
secando,
nada restando mais
pela manhã...

                        dia.
                            Despertei.
                                   Olhei tudo ao redor da fazenda:
                                               Vi o campo verde
                                               todo molhado
                                               e no terreiro lavado
                                               o porongo cheio... cheio...

cheio de pingos de chuva
que são entornados agora... p.11-12


CANARANA DA BEIRA DO RIO
Paulo Bentes (1908-1979)

Canarana bonita
que na beira do rio
cantas
no teu chiado alegre
quando passa o vento...

És a alegria
das jaçanãs ligeiras
que procuram
à sombra amena
das tuas moitas
um abrigo feliz
aos seus amores...

Tu és tão boa
canarana bonita...

Vives fazendo o bem
e os barrancos te querem
como quê...

Mas um dia vem o rio
brutal
numa carreira louca
procurando o mar...
e sem ver o que faz
vai arrastando tudo...

indiferente e forte
passa
quebrando
e levando consigo
o barranco partido...
O rio leva tudo.
O rio come tudo.
Nunca está satisfeito...

E assim
canarana
a cidade tão verde
que tu fazes
bonita
na beira do rio,
lá se vai
na corrente...

Lá se vai... na corrente... p.27-29


A LANCHA CAURÉ
Paulo Bentes (1908-1979)

Tam-Tam
Tam-Tam...
Tam-Tam
Tam-Tam...

Café com pão
Bolacha não...

É esta a cantiga
da lancha “Cauré”.

Fungando
roncando
riscando
a corrente,
a lancha possante
fumando o charuto
da sua chaminé,
lá vai arrastando
sem pressa nenhuma,
reboques em linha
que vão arranhando
de leve,
de leve
o dorso do rio...

Chiiiii...

Começam cantando
os louros bigodes
das águas brilhantes
no escudo das proas
das rasas canoas...

As máquinas vibram
pingando suor
e dando mais força,
lá vai a cantiga:

Tam-Tam
Tam-Tam...
Tam-Tam
Tam-Tam...

Café com pão
bolacha não...

Café com pão
bolacha não...

A cadência
é certa.
É o batuque
das máquinas
pretas como carvão...

E assim
anda
anda...
De repente
gritos da popa:

Para!
Paara!..
P-a-a-a-ra, diabo!..
Olha a canoa!...

Logo em cima do rebojo!
Tlim...
Tliiim...
Param as máquinas.

“O que foi?”
“O que não foi?”

Quebrou o cabo!

A caboclada
das canoas que ficaram
sozinhas
no meio do rio
rema.

Anda com isso
diabo!
Rema!
Diabo de gente mole!

Amarra, amarra logo!

Aparece sempre um cabo mais forte
e
lá se vai novamente
a lancha da linha
puxando as fieiras
compridas
de reboques,
cheios de leiteiros
e roceiros...

Tlim...
Tliiim...
Tliiim...

E começa de novo
a cantiga tão certa
de batuque...

Tam-Tam
Tam-Tam...
Tam-Tam
Tam-Tam...

Café com pão
bolacha não...

Café com pão
bolacha não...

Chiiii...
Cantam
os bigodes
dourados
das águas...39-43


MURURÉ
Paulo Bentes (1908-1979)

Ó mururé bonito
que passas
deslizando
na corrente veloz
dessas águas barrentas
que retalham
a terra verde
onde nasci...

Porque
confias tanto assim
nos caprichos
dessa estrada larga
que corre,
te arrastando
a um destino
que não conheces?

És tu,
“nimphea alba”,
como certas criaturas
que passam pela vida
sem lutar...
Que indolentes
se entregam
a um destino qualquer...

Que confiam demais...

E assim vão descendo...
Vão descendo
o rio grande
da Vida,
passando ligeiro
como a galera
aprisionada,
que perdeu
a bandeirinha
verde
da esperança...
e que passa,
como tu
mururé
que és bem um símbolo,
ostentando
no tope
a flor
aberta ao vento...

Flâmulas lilás
da Resignação... p.47-49


CASA DE FARINHA
Paulo Bentes (1908-1979)

Na casa de farinha
que o velho meu avô mandou fazer,
toda coberta de palha,
embarreada
e agora esburacada,
velhinha,
a roda grande gira,
gira,
manhosamente.

Caboclo forte
espadaúdo
automaticamente
mecanicamente
a faz girar...

Na casa de farinha
a roda grande
que faz o fubá,
rodando
rodando
manhosamente,
parece tanto com a nossa vida...
parece tanto com a minha vida...

Caboclo forte
espadaúdo,
neste caso é o Destino
que não se cansa
de rodar...
Que não se lembra
de parar...

E a roda segue
girando sempre
girando sempre
monotonamente...
manhosamente...

monotonamente...
manhosamente...
....................................................

Eu olho atento
a roda grande
que gira
gira
manhosamente
e fico achando
tão parecida
tão parecida
com a nossa vida...

Com a minha vida... p.61-63


RIO CHEIO
Paulo Bentes (1908-1979)

Rio cheio.
Tudo coberto dágua.

Os campos
que eram verdes,
tão verdes,
estão escondidos
debaixo
do lençol ondulante,
cor de barro.

O gado que vivia solto
pelos campos largos,
claros,
inundados de sol,
está trepado
nas “marombas” altas.
Magro.
Zangado.
Comendo ração pequenina.

Os moradores da zona alagada
ficam presos na barraca.

Ficam presos
ilhados
tudo é água
ao redor.

A barraca
na enchente,
é “maromba”
de gente...

Quanta vez até isso
o guloso do rio
vai levando também...

Rio guloso
faminto
come tudo o que pode:

Come barraca,
lambe a roça
já crescidinha,
devora os campos,
engole barranco...

e vai embora...

Depreda
e vai passando.

Fugindo
pra longe...

Deixando atrás
tudo vazio...

Vazio... p.87-89


AMANHECER
Paulo Bentes (1908-1979)

Cinco da manhã.
O galo canta
no meio
do terreiro...

As ovelhas mansinhas
fazem coro
no curral distante.

Lá fora
escuro ainda...

Noite que se vai embora
de mansinho,
se arrastando,
mostrando uma vontade
louca
de ficar...

Mas a vez é do sol
que vem chegando,
medroso
ainda,
espiando por cima
das árvores imóveis,
clareando,
mostrando devagarinho
o dia
que quer entrar...

O capim
todo branco
molhado do orvalho
que a noite chorou.

O rio
grande
se espreguiça...

O urucuzeiro carregado
salpica
um pingo de sangue
na parede verdíssima
da mata.
A fazendo Alegria
abre os olhos
ao dia.

É hora:
levanta-se o pessoal.
Prepara-se o café,
o beijú
o mingau.

No terreiro
as cunhãs:
Tuc-Tuc-Tuc...
batendo no fundo das cuias...

As galinhas avançam:
é o milho.

Os caboclos saindo
em busca dos roçados,
levam longos terçados
e cambitos nas mãos...

Os porquinhos gordinhos
grunhindo
correm
irrequietos,
e no alto das bananeiras
os papagaios
discursam.

Os moleques em bando
correndo
gritando
vão pra beira do rio
carregando porongos...

Tudo agora é atividade.
Ruído.
Tudo trabalha
e faz o seu pedaço
de barulho...

É quando o sol
perde o medo
e levanta-se
espancando
as últimas neblinas.

Fica tudo dourando...
Cheio de luz... p.117-120


AMAZÔNIA
Paulo Bentes (1908-1979)

No isolamento dos grandes desertos,
no meio das águas
e das florestas,
o neto dos índios
está fazendo
um Mundo... p.123


BENTES, Paulo. Porongo. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1940.

PAULO de Meneses BENTES nasceu em Manaus-AM no dia 19 de agosto de 1908, filho de Antônio da Gama Bentes e de Ester de Meneses Bentes. Advogado, engenheiro agrônomo, e deputado federal pelo Pará e pelo Amazonas, Paulo Bentes foi ainda jornalista, escritor e poeta. Foi membro fundador da Academia Acreana de Letras e da Academia Carioca de Letras e pertenceu à Associação das Academias de Letras do Brasil e à Sociedade de Homens de Letras do Brasil. Foi diretor da Superintendência de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), da Colônia Agrícola Nacional do Pará, da Fundação Zoobotânica de Brasília e da Colônia Agrícola de Jaguaquara, na Bahia. Foi também procurador da Justiça Eleitoral no Acre e fundador da Legião Amazônica, entidade destinada à defesa dos recursos naturais da região. Faleceu no Rio de Janeiro em 5 (ou 6) de dezembro de 1979. Era casado com Carmem Dolores de Sisnando Bentes, com quem teve seis filhos. Além de lançar as revistas Academia de Letras do Acre e A Selva, publicou várias obras sobre a Amazônia, entre as quais O outro Brasil, Tavares Bastos e a Amazônia, Parongo e A hiléia.