terça-feira, 27 de novembro de 2018

CRENTE

Romeu Jobim (1927-2015)


Quando o conheci, já beirava os cinquenta. Morava a pouco mais de uma hora do barracão. De inteira confiança, era quem me trazia da cidade, dois dias a cavalo, por ocasião das férias, e àquele me levava de volta, chegado o período escolar.
Recordo-o bem. Ruga funda entre os olhos, dois vincos fortes no canto da boca, um mestre-escola. Os seringueiros, em geral, são homens rudes, iletrados. Fugia à regra. Após a faina diária, à luz da lamparina de querosene, não se deitava sem ler quanto lhe caísse às mãos: jornal, revista ou livro.
Além de leitor constante, seria não só o que já se denominou, à francesa, de causeur, como o que hoje se costuma chamar de comunicador. Nem terá sido por outra razão que, em certa época, quando apareceu no seringal um grupo de crentes, se tornou um de seus adeptos fervorosos, em breve ninguém o excedendo em conhecimentos bíblicos e pregação do Evangelho.
Quem o conhecia de outros tempos, no entanto, do mesmo passo que demonstrava admiração, logo expressava incredulidade quanto à extensão da metamorfose. Em moco, dizia-se, não fora homem de levar desaforo para casa, tendo mesmo, acrescentava-se, muitas mortes nas costas, o que aliás sempre negava, embora de maneira um tanto inconvincente.
É: só mesmo a idade e a crença, garantiam todos, o poderiam ter transformado naquele manso pregador, incapaz de ofender o próximo. Conheci-o pouco antes da conversão religiosa, mas, entre atear e apagar um incêndio, realmente já preferia a última alternativa. Lembra-me também que, depois de se tornar um divulgador do Evangelho, o fazia à larga, citando a Bíblia a propósito de quase tudo, o que, convenhamos, apesar da simpatia pessoal, o limitava muito em meu gosto adolescente.
Foi aí que lhe ocorreu na vida o que, noutros tempos, afirmam quantos o conheciam bem, teria dado lugar a inevitável tragédia. A mulher, que era alguns anos mais nova, mas já lhe dera vários filhos, abandonou-o, partindo em companhia de outro seringueiro, que também se comentava não ser de brincadeira. O seringal ficou em polvorosa. Em face dos antecedentes, ninguém duvidava do que ia acontecer.
O imprevisto, porém, se verificou. Não só recebeu o golpe com humildade cristã, como ainda se fez pregador mais fervoroso. Dedicou-se aos filhos e tornou-se pastor, com grande e crescente número de seguidores na Assembleia de Deus, que passou a dirigir. Não restava qualquer dúvida: transformara-se no perfeito cristão, capaz de oferecer a outra face à segunda bofetada.
Tamanha foi a tranquilidade com que resistiu à desdita conjugal que a mulher e o amante, após algum tempo, retornando às proximidades, mandaram consulta-lo sobre como os receberia, uma vez que a primeira desejava rever as crianças. de acordo com o intermediário, o convicto pastor permaneceu um instante em silêncio e em seguida, sem perder a calma ou a postura e o tom que a religião lhe dera, respondeu:
– Não há problema. Diga a ela que, quando quiser, pode visitar os filhos. Nada lhe acontecerá. Mas seu companheiro não permito que venha nem apareça em minha frente.
E arrematou:
– Por uma razão muito simples: eu me tornei crente, mas meu rifle não. E eu não respondo por ele.

JOBIM, Romeu. Boa tarde, excelência!. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1990. p.7-8
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Romeu Barbosa Jobim nasceu em seringal do Acre, em 25 de fevereiro de 1927, filho de Armando de Oliveira Jobim e Francisca Barbosa Jobim. Cursou o primário e o ginásio em Rio Branco e Manaus. Depois foi para o Rio de Janeiro, fazendo o clássico e formando-se em Filosofia e Direito. Redator da Câmara dos Deputados, por concurso, em 1960, integrou a magistratura do Distrito Federal desde 1976. Lecionou, no Rio e em Brasília, Filosofia, Psicologia, História e Português. Iniciou-se nas letras aos quinze anos. Morreu no dia 30 de maio de 2015. Publicou: Justiça: Humor Forense; Em Tom Menor; Pássaros de Meus de meus bosques; Amanhã Cedo é Primavera; Cantos do Caminho; e Entre Crônicas e Contos.

TOTÓ DAS TETEIAS

Leila Jalul

“Dizem que finjo ou minto tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto com a imaginação.” Isso aí aspeado é do Fernando Pessoa. Fiz questão de colocar essa afirmação logo na abertura de meu livro Suindara, talvez antevendo que as firulices que tenho rememorado seriam postas em dúvida.
Li a palavra TRIBUZANA no texto do amigo Eurico, o homem de Tabuí. Era o mote que faltava para falar de mais uma, a do Totó das Teteias.
Faz parte do meu show, antes de começar a escrever, olhar-me no espelho onde não mais me enxergo (tenho problemas com as vistas), e, tal qual adolescente, ficar a procurar um cravinho aqui, uma espinita ali. Tudo na base do tateado. Cutucando, cutucando, as palavras pelas quais procuro, por dizerem, ao pé da letra, sobre o que quero escrever, vão surgindo, surgindo, até poder sentar e armar a escrita. Tenho em minha mente algumas palavras que não dispensarei em textos futuros. O som delas é bonito demais da conta. Espiem estas: osmose, medieval, emblemático, incipiente, circunspecto, arrebol, chauvinista, exógeno, caudaloso. Não são lindas? Tem outras também lindas e insinuantes, mas não quero desgastá-las nas citações. O segredo, segundo dizem, é a alma do negócio!
Totó das Teteias era sargento do Batalhão de Engenharia, num distante pedaço da Amazônia. Moreno, olhos verdes, pele curtida de sol, era chegado numa tribuzana.
Pronto! Aqui começa a história propriamente dita.
Sabedor de sua beleza, Totó tinha o péssimo habito da gabolice. No mercadão Marechal Rondon, todos os dias, juntava-se aos bruacos aposentados e de paus murchos, só para contar sua última aventura com as mulheres. Toda mulher que "comia" era representada num colar de botões que pendurava no pescoço. Não era um colar qualquer, com qualquer botão. Não. Tudo tinha ordem, cor e simbologia. Um botãozinho cor de rosa, por exemplo, queria dizer que pegou uma teteia virgem. Um botão marrom, grande, queria dizer que pegou uma coroa desgastada e "arrombada", como fazia questão de enfatizar. E ali, no senadinho dos aposentados babões, ia explicando, com riqueza de detalhes, suas orgias com as belezuras dependuradas no pescoço.
- Ó - dizia -, esse aqui é da Tonha Nepomuceno. Comi ontem.
Uma trabalheira danada. Estava para pedir uma talhadeira e um auxiliar para ajudar na tarefa. Com 19 anos, aqui por essa bandas, não existe mais esse negócio de virgem, mas era, era de verdade! Dureza, senhores! Dureza de vida!
- Ó – continuava –, esses dois aqui, representam mãe e filha. Foi na semana passada. Não tinha contado para vocês por achar que duvidariam. Esse é da Maria Lopes, que foi mulher daquele turco safado daquela merda de loja na ladeira de Nossa Senhora da Glória. E esse, pequenininho, é da Marilúcia, a filha dela com pai desconhecido. A menina não é do turco, de jeito e maneira. Se fosse, a deixaria pra depois, sabe como é? Quem tem aquilo, tem medo! Não é que tenha medo, mas, é melhor deixar quieto, principalmente com gente que a gente não conhece a ruindade. Estou certo?
A moçada aposentada ia ao delírio quando Totó descrevia umas posições quase tipo missão impossível. Vez por outra, Tenório do Boi levantava para verter água, não sem antes pedir:
- Aguenta um tempo, Totó, que volto num relâmpago!
Ninguém reparou nos olhos do Miguel, da banca de abacaxi. Eu, sim. Ninguém se aluiu que ele deu uma saidinha e voltou, sem nada falar. Eu, sim. Fazia de conta que não estava ouvindo nada, mas vi uma coisa estranha no brilho dos seus olhos. Coçava o bigode, alisava a faca, cortava uma rodela de abacaxi para a freguesa, vendia, recebia, passava troco e sentava.
Na volta de Tenório do Boi, devidamente mijado, a conversa de Totó das Teteias voltou ao ponto onde havia sido interrompida.
– Pois é, primeiro dei um trato na Maria Lopes. A veinha tava perfumadinha, gostosinha e arrumadinha. Teria ficado com ela a tarde inteira, mas, o diabo do cramulhão atentou e ela teve que sair, para entregar umas costuras. Fiquei deitado e aí, sem conter minha bicha quieta, lembrei da menina. Fui lá e...
Entrou nos detalhes, mas não vou aqui repetir. É nauseabundo. Olhei pro Miguel, mas ele desviou e apenas puxou um fôlego comprido.
Na época, a mania dos valentões era assistir o Ringo e os dólares furados. Qualquer banana com vontade de ser macho, vivia a repetir: My name is Ringo!
Terminada a conversa, já pelas 9 da manhã, Tenório pergunta se não tinha medo de bolinar menor.
– Tenho nada! Se eu não comer, a terra come! Afinal, amigo Tenório, my name is Totó das Teteias!
Nisso, levanta-se Miguel. Pé ante pé, caminha até onde está o morenão e, de chofre, pergunta:
– Como é teu nome, cabra?
– Totó das Tetéias.
– Era.
Dois estalidos secos. Um tiro no peito e outro no pescoço. Totó caiu já do outro lado das trevas, arrodeado de botõezinhos e botõezões.
Miguel acha o de Marilúcia, sopra, beija, limpa na perna da calça, guarda–o carinhosamente no bolso da camisa suada e sai, como se não tivesse acontecido nada.
Tudo foi verdade, e dou fé. Eu estava na cidade e fui a última freguesa que comprou dois abacaxis de puro mel, depois da prova servida na pontinha da peixeira afiada e colocada, com ternura, em minha boca.

DOIS POEMAS DE HILDA HILST

XVI

Tenho preguiça
pelos filhos que vão nascer.

Teremos que explicar
tanta coisa a tantos deles.
Um dia hão de me perguntar
Tudo o que perguntei:
Mãe, porque não posso
ver Augusto quando quero?
Mãe, andei lendo muito esses dias
e estou quase chegando
a encontrar o que eu queria.

Inutilidade das palavras.

Tenho preguiça,
Tanta preguiça
Pelos filhos que vão nascer.
Dez, vinte, trinta anos
e estarão procurando alguma cousa.
Nunca se lembrarão
daqueles que já morreram
e procuraram tanto.
Vão custar (ó deuses)
a entender aqueles
que se mataram.
Os filhos vão nascer,
coitados!
Hão de pensar que são eles
os destinados.
Hão de pensar que você
nunca passou o que eles estão passando.
Os filhos que vão nascer...

Insatisfeitos.
Incompreendidos. p.33-34

(do livro Presságio, 1950)

I

Eu cantarei os humildes
os de língua travada
e olhos cegos
aqueles a quem o amor feriu
sem derrubar.

Cantarei o gesto
dos que pedem e não alcançam
a resignação dos santos
o sorriso velado e inútil
dos homens conformados.

Eu cantarei os humildes
o homem sem amigos
o amante sem esperança
de retorno.

Cantarei o grito
de escuta universal
e de mistério nunca desvendado.
Serei o caminho
a boca aberta
os braços em cruz
a forma.

Para mim virão os homens desconhecidos. p.42

(do livro Balada de Alzira, 1951)


HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

DESENVOLVIMENTISMO NA AMAZÔNIA: a farsa fascinante, a tragédia facínora

Isaac Melo

Recentemente, por ocasião da XIII Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana, em Rio Branco-AC, de 6 a 11 de agosto, a comunidade presente pôde acompanhar o lançamento da obra “DESENVOLVIMENTISMO NA AMAZÔNIA: a farsa fascinante, a tragédia facínora” (IFAC, 2018), de autoria de Israel Pereira Dias de Souza, sociólogo, professor e pesquisador do Instituto Federal do Acre do campus Cruzeiro do Sul.
O livro, subdivido em duas partes, perfaz um total de nove textos independentes, embora persistindo o mesmo fio condutor, a saber, o “desenvolvimentismo”. Uma das ideias mais controversas e obscuras (nefastas, quiçá) no tocante à Amazônia é, talvez, a ideia de “desenvolvimento”. Desde que o europeu, a partir dos primeiros exploradores e das primeiras expedições científicas, tomou conhecimento da Amazônia, e de todas as suas potencialidades, inclusive, e, sobretudo, lucrativas, começou uma corrida não só pela posse material da região, bem como por um esforço no intuito civilizar e amansar a “gleba tumultuária”. Era preciso ocupar e colonizar o “deserto ocidental”. Era preciso o progresso para sair da “margem da história” para entrar na marcha da civilização europeia.
Duas ditaduras brasileiras se debruçaram sobre a “questão amazônica”, a de Getúlio Vargas e a de 1964. Ambas queriam resolver o “atraso” da região, integrá-la, desenvolvê-la, explorá-la a partir de seus potenciais naturais, minerais, vegetais. Sobretudo a 64, sob a pecha da cobiça internacional, se propôs, a qualquer custo, integrá-la para não entregá-la. Era preciso trazer para uma terra sem gente a gente sem terra dos grandes centros brasileiros. O progresso, no dorso de tratores, rugiu mata adentro. Aos povos indígenas, por exemplo, mais uma vez, massacrados e escorraçados, coube integrar-se e entregar tudo para não ver desintegrarem-se definitivamente da história.
Pois bem, o livro de Israel Souza vai perscrutar e desnudar o que, por detrás da simpática e benfazeja ideia de desenvolvimento sustentável, de fato se esconde. O desenvolvimento sustentado era a ideia de que era preciso desenvolver sem destruir. Surge a partir do momento, sobretudo na Amazônia, em que a questão ambiental é levantada, ainda que timidamente, pelos ecologistas e movimentos sociais. À medida que cresce a consciência ecológica, cresce também a “consciência capital” acerca do enorme potencial econômico da Amazônia.
A Amazônia sempre esteve refém dos interesses do capital internacional. É dele que o conceito de desenvolvimento sustentável deixa as suas origens humildes (movimentos ecológicos) e passa a ser um conceito do capital internacional, cujo carro chefe é o Banco Mundial, que passa a influenciar as políticas públicas de desenvolvimento. Dessa forma, ao longo do livro, o autor demonstra como inúmeras iniciativas (o MAP, por exemplo) não só reproduzem como legitimam concepções e diretrizes que orientam a atuação coordenada pelo BID e o Banco Mundial na Amazônia continental. O que resulta daí é a natureza como um grande produto, a sua mercantilização, a economia verde. E, sob o selo do desenvolvimento sustentável, a espoliação e apropriação dos recursos naturais, o desrespeito aos povos locais e a devastação da natureza.
A partir da década de 1970, o desenvolvimentismo, à maneira que era praticado, revela os seus graves problemas. Para o autor, “naquele momento, em que aflorava a “consciência ambiental”, a saída foi agregar o “sustentável” ao “desenvolvimento”. Dessa forma, o capitalismo ganhou uma ideologia poderosíssima, passando a operar encoberto pelo manto da “sustentabilidade””. Nesse sentido, prossegue Souza, seguido pelo “sustentável”, o “desenvolvimento” passou a ser encarado não apenas como “ambientalmente correto”, mas como uma força-projeto capaz de salvar a vida do planeta. Assim, por um toque de mágica, “o capital já não era a ameaça, e sim a salvação”.
Por fim, a mensagem que se patenteia da reflexão de Israel Souza é a de que a ideia de “desenvolvimento sustentável” não é senão capitalismo, e a sua manutenção consiste na manutenção do próprio capital, cujo sistema, por natureza, gera desiquilíbrio nas mais variadas esferas da vida. Nesses termos, o desenvolvimentismo na Amazônia é uma farsa. A farsa com que o capital tem seduzido, implantado e solidificado seus interesses a partir do financiamento de interesses de governos e classes dominantes locais. Dessa forma, para o autor “o desenvolvimentismo persiste na América Latina como uma ilusão a um só tempo fascinante e facínora”. E esclarece: “a farsa fica por conta dos de cima. Enquanto a tragédia pesa sobre os de baixo e sobre a natureza”.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

NO BOSQUE

Rogel Samuel


no bosque
neste regato do bosque
busco você entre árvores
quero
quero teu banho
tua luz

não te encontro
estás com as imagens misturada
lembranças nadas
nadas

debaixo da ponte
onde
te conheci
fonte

eras tão jovem
o teu amor
pulsante
mas éramos
já não somos
não estamos

neste regato do bosque
entre árvores
te procuro


muro

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

TARAUACÁ: múltiplos olhares





































Fotos: Isaac Melo

SOBRE OS FESTIVAIS DAS NOVAS ESPERANÇAS

João Veras


O que mais queres tu de mim, colonizador?

Além desse acre de terras com fartas madeiras sem lei?

Que eu rogue por seus empréstimos, essa tua riqueza que me roubas?

Que eu continue seguindo as tuas bulas, fórmulas e mapas-armadilhas?

Que eu viva a sorri pra ti? A abrir pernas, estradas e mentes?

Queres ainda mais meus pobres conhecimentos que valem outro?

Minhas ignorâncias sobre tuas estratégias de saber?

Que eu faça mais poses para tuas fotografias de viagens?

Que eu consuma mais as tuas artes, as que eu não entendo e as que são feitas justamente para eu entender?

Que eu continue acreditando em teus deuses?

Que eu viva a te receber como um dos meus melhores?

Queres ainda que eu morra desejando ser como você?

Que eu viva sonhando ser um dia você?

Que eu seja você?

E que me mantenha sem vestes a seios nus matando a sede dos teus baratos com minhas bebidas? Ofertando-te o que me resta de sagrado?

O que mais queres, além de meu corpo, da minha história, dos meus sonhos?

Pois agora eu não te dou mais! (...assim pensou alguém lá nos fundos da aldeia, no mais respeitoso silêncio).

terça-feira, 13 de novembro de 2018

MÃE NHÁ EUGÊNIA

Leila Jalul

Os negros que conheci na minha infância, invariavelmente, eram empregados domésticos ou seringueiros. Assim foram o velho Bahia, (da Bahia, só o nome), o seu Teodorico Francisco do Sacramento, o João Mulato, Benedito e Deolinda, tios de minha mãe, Antonio Lopes, Nhá Eugênia e Irineu Serra. Destes, apenas Antonio Lopes era cearense, de Quixeramobim. Os demais vieram diretamente do Maranhão. Alguns eram quilombolas nas terras de Sarney.
         Como os antigos sabem, nas casas dos grandes comerciantes e seringalistas, havia empregado para tudo. Sem salário, de preferência. Eles ganhavam um teto, uns molambos para vestir, uma rede para embalar o corpo e as saudades e o apelido de “agregado”. Empregados remunerados só os de balcão e os que sabiam ler e escrever, ainda que um tiquim de nada. Não errando no troco e nas anotações de borrador, já tava de bom tamanho.
Mãe Nhá Eugênia, por economia, era lavadeira e torradeira de café na casa do meu avô. Em dias marcados, acendia o fogo de lenha a céu aberto, pegava o tisnado torrador feito de metade da lata de querosene de vinte litros, a pá, os grãos e lá se ia para a tórrida função. O café, já catado e esquentado ao sol, era medido numa lata de banha, misturado ao açúcar gramixó, na proporção correta e, pá pra lá, pá pra cá, mexia os grãos, ao som dos estalidos da lenha. A fumaça invadia seu rosto. Algumas fagulhas iam parar em seus braços e mãos, sem direito a reclamação.
– Nhá, deixa eu ajudar um pouquinho?
– Sai daqui, traste, cê qué ficá preta como a Nhá?
– Nhá, deixa eu bater no pilão? Só um pouquinho, deixa?
– Sai daqui, diacho! Minina impertinente qui tu é! Sai daqui ou tu qué ficar feia como a Nhá?
Nhá mostrava sempre os braços musculosos para mostrar que tinha forças, apesar dos não sei quantos anos. Com ela aprendi a dar um beliscão no músculo até subir aquela bolotinha: o mosquito, dizia ela. Dizia, ainda, que precisava ser forte, até achar os filhos que se haviam embrenhado nos seringais e não davam notícias.
De todos ela lembrava. No entanto, era pela filha Florinda o choro que derramava.
– Fia, desde que a danada ajuntou-se com aquele desgramado, fie duma égua, que num se alembra mais da mãe. Num sei se tem minino, minina, num sei. Nhá, com a força do Pai do céu, ainda vai saber. Desalmada...
O tempo passando e Nhá já não era mais a negra forte. Vovó foi notando que ela não estava bem. Sempre acordava antes do sol, mas foi ficando devagar, levantando com dificuldade, dizendo coisa sem coisa. Foi ficando biló, peidadinha da cabeça. Passou a tremelicar que nem vara verde.
Uma noite, lembro como se hoje fosse, já com meus 9 anos, acordei com Nhá Eugênia andando e falando sozinha. As palavras eu não compreendia, porém, lá no seu resmungo, ouvi o nome de Florinda, ou Flô, como chamava sua “minina”.
O café já não torrava. A roupa não mais lavava. As tarefas foram passadas para Iracy, a arrumadeira. E Nhá Eugênia dizia, quando o juízo voltava:
– Ô minina Iracy, prestenção, a roupa do seu Ibrahim tá ficando uma mundiça! Esferga a folha do mamoeiro, minina! Tu é braba dimais! Tescunjuro! A gente insina, insina e o diacho num aprende! Vôte!
Num dia qualquer de 1957, Nhá procurou a desalmada Florinda. Passou a noite procurando. Deve de ter achado. Não acordou. Só pode ter achado...

DIÁRIO DE BERNARDO SOARES

Há sensações que são sono, que ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam pensar, que não deixam agir, que não deixam claramente ser. Como se não tivéssemos dormido, sobrevive em nós qualquer coisa de sonho, e há um torpor do sol do dia a aquecer a superfície estagnada dos sentidos. É uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde despejado para o quintal por um movimento indolente do pé à passagem.
Olha-se, mas não se vê. A longa rua movimentada de bichos humanos é uma espécie de tabuleta deitada onde as letras fossem móveis e não formassem sentidos. As casas são somente casas. Perde-se a possibilidade de dar um sentido ao que se vê, mas vê-se bem o que é, sim.
As pancadas de martelo à porta do caixoteiro soam com uma estranheza próxima. Soam grandemente separadas, cada uma com eco e sem proveito. Os ruídos das carroças parecem de dia em que vem trovoada. As vozes saem do ar, e não de gargantas. Ao fundo, o rio está cansado.
Não é tédio o que se sente. Não é mágoa o que se sente. E uma vontade de dormir com outra personalidade, de esquecer com melhoria de vencimento. Não se sente nada, a não ser um automatismo cá em baixo, a fazer umas pernas que nos pertencem levar a bater no chão, na marcha involuntária, uns pés que se sentem dentro dos sapatos. Nem isto se sente talvez. À roda dos olhos e como dedos nos ouvidos há um aperto de dentro da cabeça.
Parece uma constipação na alma. E com a imagem literária de se estar doente nasce um desejo de que a vida fosse uma convalescença, sem andar; e a ideia de convalescença evoca as quintas dos arredores, mas lá para dentro, onde são lares, longe da rua e das rodas. Sim, não se sente nada. Passa-se conscientemente, a dormir só com a impossibilidade de dar ao corpo outra direção, a porta onde se deve entrar. Passa-se tudo.
Que é o pandeiro, ó uso parado?


PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. Barueri: Cirando Cultural, 2018. p.80-81