terça-feira, 13 de novembro de 2018

MÃE NHÁ EUGÊNIA

Leila Jalul

Os negros que conheci na minha infância, invariavelmente, eram empregados domésticos ou seringueiros. Assim foram o velho Bahia, (da Bahia, só o nome), o seu Teodorico Francisco do Sacramento, o João Mulato, Benedito e Deolinda, tios de minha mãe, Antonio Lopes, Nhá Eugênia e Irineu Serra. Destes, apenas Antonio Lopes era cearense, de Quixeramobim. Os demais vieram diretamente do Maranhão. Alguns eram quilombolas nas terras de Sarney.
         Como os antigos sabem, nas casas dos grandes comerciantes e seringalistas, havia empregado para tudo. Sem salário, de preferência. Eles ganhavam um teto, uns molambos para vestir, uma rede para embalar o corpo e as saudades e o apelido de “agregado”. Empregados remunerados só os de balcão e os que sabiam ler e escrever, ainda que um tiquim de nada. Não errando no troco e nas anotações de borrador, já tava de bom tamanho.
Mãe Nhá Eugênia, por economia, era lavadeira e torradeira de café na casa do meu avô. Em dias marcados, acendia o fogo de lenha a céu aberto, pegava o tisnado torrador feito de metade da lata de querosene de vinte litros, a pá, os grãos e lá se ia para a tórrida função. O café, já catado e esquentado ao sol, era medido numa lata de banha, misturado ao açúcar gramixó, na proporção correta e, pá pra lá, pá pra cá, mexia os grãos, ao som dos estalidos da lenha. A fumaça invadia seu rosto. Algumas fagulhas iam parar em seus braços e mãos, sem direito a reclamação.
– Nhá, deixa eu ajudar um pouquinho?
– Sai daqui, traste, cê qué ficá preta como a Nhá?
– Nhá, deixa eu bater no pilão? Só um pouquinho, deixa?
– Sai daqui, diacho! Minina impertinente qui tu é! Sai daqui ou tu qué ficar feia como a Nhá?
Nhá mostrava sempre os braços musculosos para mostrar que tinha forças, apesar dos não sei quantos anos. Com ela aprendi a dar um beliscão no músculo até subir aquela bolotinha: o mosquito, dizia ela. Dizia, ainda, que precisava ser forte, até achar os filhos que se haviam embrenhado nos seringais e não davam notícias.
De todos ela lembrava. No entanto, era pela filha Florinda o choro que derramava.
– Fia, desde que a danada ajuntou-se com aquele desgramado, fie duma égua, que num se alembra mais da mãe. Num sei se tem minino, minina, num sei. Nhá, com a força do Pai do céu, ainda vai saber. Desalmada...
O tempo passando e Nhá já não era mais a negra forte. Vovó foi notando que ela não estava bem. Sempre acordava antes do sol, mas foi ficando devagar, levantando com dificuldade, dizendo coisa sem coisa. Foi ficando biló, peidadinha da cabeça. Passou a tremelicar que nem vara verde.
Uma noite, lembro como se hoje fosse, já com meus 9 anos, acordei com Nhá Eugênia andando e falando sozinha. As palavras eu não compreendia, porém, lá no seu resmungo, ouvi o nome de Florinda, ou Flô, como chamava sua “minina”.
O café já não torrava. A roupa não mais lavava. As tarefas foram passadas para Iracy, a arrumadeira. E Nhá Eugênia dizia, quando o juízo voltava:
– Ô minina Iracy, prestenção, a roupa do seu Ibrahim tá ficando uma mundiça! Esferga a folha do mamoeiro, minina! Tu é braba dimais! Tescunjuro! A gente insina, insina e o diacho num aprende! Vôte!
Num dia qualquer de 1957, Nhá procurou a desalmada Florinda. Passou a noite procurando. Deve de ter achado. Não acordou. Só pode ter achado...

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