“Dizem que finjo ou
minto tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto com a imaginação.” Isso aí
aspeado é do Fernando Pessoa. Fiz questão de colocar essa afirmação logo na
abertura de meu livro Suindara, talvez antevendo que as firulices que tenho
rememorado seriam postas em dúvida.
Li
a palavra TRIBUZANA no texto do amigo Eurico, o homem de Tabuí. Era o mote que
faltava para falar de mais uma, a do Totó das Teteias.
Faz
parte do meu show, antes de começar a escrever, olhar-me no espelho onde não
mais me enxergo (tenho problemas com as vistas), e, tal qual adolescente, ficar
a procurar um cravinho aqui, uma espinita ali. Tudo na base do tateado.
Cutucando, cutucando, as palavras pelas quais procuro, por dizerem, ao pé da
letra, sobre o que quero escrever, vão surgindo, surgindo, até poder sentar e
armar a escrita. Tenho em minha mente algumas palavras que não dispensarei em
textos futuros. O som delas é bonito demais da conta. Espiem estas: osmose,
medieval, emblemático, incipiente, circunspecto, arrebol, chauvinista, exógeno,
caudaloso. Não são lindas? Tem outras também lindas e insinuantes, mas não
quero desgastá-las nas citações. O segredo, segundo dizem, é a alma do negócio!
Totó
das Teteias era sargento do Batalhão de Engenharia, num distante pedaço da
Amazônia. Moreno, olhos verdes, pele curtida de sol, era chegado numa
tribuzana.
Pronto!
Aqui começa a história propriamente dita.
Sabedor
de sua beleza, Totó tinha o péssimo habito da gabolice. No mercadão Marechal
Rondon, todos os dias, juntava-se aos bruacos aposentados e de paus murchos, só
para contar sua última aventura com as mulheres. Toda mulher que
"comia" era representada num colar de botões que pendurava no
pescoço. Não era um colar qualquer, com qualquer botão. Não. Tudo tinha ordem,
cor e simbologia. Um botãozinho cor de rosa, por exemplo, queria dizer que
pegou uma teteia virgem. Um botão marrom, grande, queria dizer que pegou uma
coroa desgastada e "arrombada", como fazia questão de enfatizar. E
ali, no senadinho dos aposentados babões, ia explicando, com riqueza de
detalhes, suas orgias com as belezuras dependuradas no pescoço.
-
Ó - dizia -, esse aqui é da Tonha Nepomuceno. Comi ontem.
Uma
trabalheira danada. Estava para pedir uma talhadeira e um auxiliar para ajudar
na tarefa. Com 19 anos, aqui por essa bandas, não existe mais esse negócio de
virgem, mas era, era de verdade! Dureza, senhores! Dureza de vida!
-
Ó – continuava –, esses dois aqui, representam mãe e filha. Foi na semana
passada. Não tinha contado para vocês por achar que duvidariam. Esse é da Maria
Lopes, que foi mulher daquele turco safado daquela merda de loja na ladeira de
Nossa Senhora da Glória. E esse, pequenininho, é da Marilúcia, a filha dela com
pai desconhecido. A menina não é do turco, de jeito e maneira. Se fosse, a
deixaria pra depois, sabe como é? Quem tem aquilo, tem medo! Não é que tenha
medo, mas, é melhor deixar quieto, principalmente com gente que a gente não
conhece a ruindade. Estou certo?
A
moçada aposentada ia ao delírio quando Totó descrevia umas posições quase tipo
missão impossível. Vez por outra, Tenório do Boi levantava para verter água,
não sem antes pedir:
-
Aguenta um tempo, Totó, que volto num relâmpago!
Ninguém
reparou nos olhos do Miguel, da banca de abacaxi. Eu, sim. Ninguém se aluiu que
ele deu uma saidinha e voltou, sem nada falar. Eu, sim. Fazia de conta que não
estava ouvindo nada, mas vi uma coisa estranha no brilho dos seus olhos. Coçava
o bigode, alisava a faca, cortava uma rodela de abacaxi para a freguesa,
vendia, recebia, passava troco e sentava.
Na
volta de Tenório do Boi, devidamente mijado, a conversa de Totó das Teteias
voltou ao ponto onde havia sido interrompida.
–
Pois é, primeiro dei um trato na Maria Lopes. A veinha tava perfumadinha,
gostosinha e arrumadinha. Teria ficado com ela a tarde inteira, mas, o diabo do
cramulhão atentou e ela teve que sair, para entregar umas costuras. Fiquei
deitado e aí, sem conter minha bicha quieta, lembrei da menina. Fui lá e...
Entrou
nos detalhes, mas não vou aqui repetir. É nauseabundo. Olhei pro Miguel, mas
ele desviou e apenas puxou um fôlego comprido.
Na
época, a mania dos valentões era assistir o Ringo e os dólares furados.
Qualquer banana com vontade de ser macho, vivia a repetir: My name is Ringo!
Terminada
a conversa, já pelas 9 da manhã, Tenório pergunta se não tinha medo de bolinar
menor.
–
Tenho nada! Se eu não comer, a terra come! Afinal, amigo Tenório, my name is
Totó das Teteias!
Nisso,
levanta-se Miguel. Pé ante pé, caminha até onde está o morenão e, de chofre,
pergunta:
–
Como é teu nome, cabra?
–
Totó das Tetéias.
–
Era.
Dois
estalidos secos. Um tiro no peito e outro no pescoço. Totó caiu já do outro
lado das trevas, arrodeado de botõezinhos e botõezões.
Miguel
acha o de Marilúcia, sopra, beija, limpa na perna da calça, guarda–o
carinhosamente no bolso da camisa suada e sai, como se não tivesse acontecido
nada.
Tudo
foi verdade, e dou fé. Eu estava na cidade e fui a última freguesa que comprou
dois abacaxis de puro mel, depois da prova servida na pontinha da peixeira
afiada e colocada, com ternura, em minha boca.
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