quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

A POESIA DE MAZE OLIVER

Maze Oliver é natural de Rio Branco-AC. Pedagoga formada pela Universidade Federal do Acre, especialista em educação, com pós-graduação em Ensino Infantil e Fundamental, aposentou-se como professora, depois de uma vida inteira dedicada à educação. Ao longo dos anos, Maze tem marcado presença no cenário cultural do Acre. No cinema acreano, dirigiu os documentários “História Musical do Grupo Capu”, em que conta a história do primeiro grupo de rock do Acre, filme vencedor, na categoria documentário, do V Festival Acreano de Vídeo (2003); e “História do Cinema Acreano”. Ainda atuou e roteirizou o filme “Menina Mãe” (1997), também premiado. Estreou na literatura em 2015, com o livro “Devaneios”; em seguida, para o público infantil, publicou “A Poção Mágica” (2016); e tem outros trabalhos no prelo, a aguardar publicação. Juntamente com outros artistas, em 2016, fundou a Sociedade Literária Acreana – SLA, a qual preside, grupo que tem como missão apoiar e realizar iniciativas literárias voltadas para o desenvolvimento artístico e cultural do Acre, incentivando e apoiando novos autores. Entre outras atividades, a SLA tem-se feito presente, na sociedade e nas escolas, por meio dos saraus literários, onde Maze também apresenta a sua performance de bruxa, baseada em seu livro A Poção Mágica


Para adquirir os livros de Maze Oliver:
Blog da autora:


FALSA REPÚBLICA
Maze Oliver

Quem dá mais? Onde vendo?
Homens de paletó, vidas gordas, vidas caras!
Na feira do voto, feira do silêncio...
Vou seguir minha sina... Diz a menina.
Homem da boca, rei dos becos
Vidas curtas... Custa quanto?
A vida? O sorriso?
Correm os ratos. É a guerra!
Troca a faixa do príncipe!
Agora o novo rei do beco.
Enquanto alguns poetas contam sílabas,
Alguns cantores cantam o sexo...
Outros fecham os olhos, fingem...
Hipócritas, dormentes! Perdidos!
Feira de vidas, escravos da gravata, do nó, do pó...
Enquanto a grande prostituta no cio
(A falsa república)
Ceifa vidas, abafa dores e gritos.


MEDO DA MORTE
Maze Oliver

A morte não me dá medo
É o fim do amor platônico
Final de uma história de amor,
Do ser com o seu tempo.

A morte não me dá medo
Eu com a minha morte,
Tal encontro impossível.
Quando ela for existir,
Não mais estarei aqui.

A morte não me dá medo,
Creio estar num sono profundo
Num quase sono eterno,
Muito longe deste mundo.

Se a morte chegar a mim,
Dela só tenho UM medo
O medo de desistir,
Do medo, de não ter medo.


ACRE
Maze Oliver 

Nasci no Acre
Terra de índio e de índia,
Sou meio índia, pele de sol,
Sangue forte.
Da minha gente tenho orgulho,
Sou do norte.
Sou cabocla da floresta
O chão do Acre beijei.
Sou mulher quase índia,
Eu sei.
Nos mistérios da mata,
No calor do Acre, me gerei
No aceiro da mata me criei.
Acre que dizem fraco, ledo engano...
Ele é rico e soberano,
Pena que sua riqueza
Esvai-se nas mãos de porcos.


QUERO UM FERIADO
Maze Oliver

Ah, quem dera um feriado!
Aplaudir a TV
Tomar banho na lama do rio,
Tomar banho de chuva,
Ah, quem dera um feriado!
Beijar a amada
Ir ao cinema,
Ver os amigos, viver!
Repartição, lugar de ninguém
Quero um feriado!
Esbaldar na cachaça,
Ouvir música sertaneja,
Chorar as mágoas a sangrar...
Gastar os últimos centavos,
Do mísero salário
E zumbis, voltar à senzala.
Na segunda-feira: Sim senhor, não senhor!
Ah, um feriado!


ESCRAVOS
Maze Oliver

Somos escravos do poder
Da moeda e do capital,
Sem tempo para pensar;
Sem tempo para viver.
Negro ou branco,
Não importa!
Todos estão à mercê
De um papel moeda qualquer!
Cego é, quem não quer ver.


SONETO DA POESIA (Mundo Poético)
Maze Oliver

Não só por hoje, quero viver de emoção,
Poetizar, esquecer dores da vida           
Limpar, cicatrizar, acalmar a ferida,
Cantar, e acalentar o meu coração.

Não só por hoje, quero viver poesia,
Também exorcizar a dor da lida,
Rimar em verso a dor mais escondida,
Cercar, prender, domar a rebeldia.

Faço isso para esquecer o passado
Quero sim, cantar em verso a vida,
Renascer num viver apaixonado.

Jogar pro ar sentimentos dispersos
Sobreviver só, num mundo encantado,
Na realidade do mundo dos meus versos.


ESPELHO MEU
Maze Oliver

Onde fostes, juventude?
A tez, a pele de veludo?
As curvas sinuosas,
A boca provocante?
O lindo sorriso, quase miss,
Quase princesa, quase tudo?

No túnel da vida... Tudo muda
O tempo levou as curvas,
O relógio trouxe as rugas,
E os cabelos embranqueceram.

Mas, atributos permanecem
Pois a mulher se faz poema,
Maquiada em fantasia,
Adornada em belas rimas,
Eternizada em poesia.


O TEMPO
Maze Oliver

O tempo passa,
Refazendo caminhos,
Limpando trilhas,
Buscando horizontes,
Fazendo as malas,
Recuperando traumas,
Cicatrizando feridas,
Ampliando amizades,
Ceifando dores,
Apreciando arte,
Atravessando pontes.
É a vida que passa,
Com o passar do tempo.


BARGANHA
Maze Oliver

Tu que NÃO és político,
Mas dissimula e engana,
Vende e troca tua honra
Por títulos, troféus ou vinténs.
O que tens para ensinar?
E ousas cobrar de alguém!

Onde foram parar teus valores
Nessa sociedade nefasta?
Que troca dignidade por grana,
Teu conhecimento barganha
Contagiando até crianças,
Muitas vezes por vaidade ou façanha.

Só isso, homem, te basta?
Onde foi parar tua paixão?
O que te fez esquecer a emoção?


MULHER
Maze Oliver

Mulher respeita-te! O que és?
Corpo?! Não. És muito mais!
Além de cara, bunda e peitos,
Sentes, pensas, és alma. És mais!        

Não deixe que te façam vender
Carne de açougue, sem emoção.
Isso compra-se no mercado,
Produto de oferta, promoção.

Tens reflexão, inteligência,
Deus te fez dotada de razão.
Não dê coroa, a quem te usa!
Usufrui do teu reinado:
És dama, princesa, és musa!

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

ROBERTO CARLOS, JOVEM GUARDA, ACRE, DITAM...

Uma conversa com Luiz Felipe Jardim


Um Rei é pessoa que acumula privilégios. E o maior de todos é realmente o de ser rei. 

Se acumula, o Rei também distribui privilégios. Espalhando guerras ou canções, espada ou emoções, tudo de acordo com a natureza de seu reino e espírito de seu reinado.

Como não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo, e nem percorrer muito tempo tantos lugares de um reino tão grande como o do Brasil, o Rei coroa com o privilégio eterno da memória os lugares onde esteve. Os lugares por onde passou.

E o Rei esteve aqui...

Em meados de 1973, naqueles dias do ano em que – durante dias e noites – os dias e as noites são os mais quentes, (eventualmente, também os mais frios), Roberto Carlos apareceu para os acreanos.

Percorria o Brasil numa grande turnê, e quase como que de paraquedas por aqui aportou...

A seguir, você verá é uma entrevista que o Alma Acreana fez com quem, por lá estar, foi viu e... sobreviveu.
AA- Para você, quem são Jovem Guarda e Roberto Carlos?

LFJ- Antes de tudo, é importante lembrar que certas pessoas, por sua importância social, deixam de ser somente elas e passam a ser elas e muito mais. Essas pessoas representam épocas, são parâmetros para a História, Economia etc. Roberto Carlos é umas dessas pessoas. Ou seja, ele é o que ele é independente do que as pessoas acham que ele seja; mas é simultaneamente, tudo aquilo que as pessoas pensam, acham e dizem que ele é.  Portanto, RC é um ser plural: ele é ele mesmo, e muito mais. Aliás, muito mais do que ele mesmo rs.

AA- Em que aspecto pode RC ser parâmetro para a Economia?

LFJ- Veja, RC adentra o cenário cultural brasileiro, no momento em que, nos governos JK, Jânio, Jango e posteriores, a indústria automobilística brasileira se delineava, se enraizava e se consolidava como ponta de lança da economia nacional. Roberto Carlos é um dos arautos desse processo com o seu 'calhambeque', e também com sua Jovem Guarda. Ambos cantavam os carrões, difundindo um fascínio, que se convertia em vontade coletiva, que se convertia em moda e consumo. “Entrei na Rua Augusta à 120 por hr”... “papai me empresta seu carro”... “meu Mustang cor de sangue” são ícones da JG que ilustram bem esse momento.

O sucesso da música Calhambeque trouxe para o mercado uma grif de roupas para rapazes e moças também chamada Calhambeque. Suas calças para rapazes eram bem apertadas, e as saias Calhambeque eram Minissaias. Por que isso?

Em 1961 o governo de Cuba se mudou de mala e cuia para o outro lado frio da Guerra Fria, o lado Soviético. Na mala e cuia de Cuba estava, sua enorme produção de algodão, que até então abastecia parte significativa da indústria têxtil ocidental. Resultado: faltou algodão para todos os do lado da OTAN, principalmente, para o parque têxtil inglês.

Além de redesenhar e redimensionar as áreas de produção de algodão pelo mundo – onde até o nordeste brasileiro tirou uma casquinha revitalizando velhos e moribundos algodoais – outras duas linhas de emergência foram adotadas para superar a crise: intensificar pesquisas e produção de fios sintéticos, e além dos cintos, apertar as calças e diminuir o tamanho das saias do planeta. Lembra da camisa Volta ao Mundo? Da camisa Banllon? Das calças de Tergal? Eram todas marcas de fios inteiramente sintéticos que foram moda no planeta.

É nesse contexto que surge a minissaia. E embora ela tenha promovido uma grande revolução pelo mundo afora, nasceu de uma reação, de uma quase contra-revolução capitalista rsrs. Nasceu da necessidade imposta por uma conjuntura de mercado.

No Brasil, RC e JG estão imersos até o pescoço nesses primeiros 15 minutos de fama da sociedade de consumo brasileira.

Logo depois, já num segundo tempo e na prorrogação da Jovem Guarda, a indústria têxtil ocidental, abastecida e recuperada, vai à forra e aumenta o tamanho das saias e calças do mundo.

Os hippies usavam muita roupa de algodão, como aquelas batas imensas por exemplo.

Quando RC veio ao Acre, em 1973 já estava desvestido das apertadas calças Calhambeque do seu filme RC Em Ritmo de Aventura, de 1967. Usava, agora, calças bem mais largas, de enormes bocas-de-sino e de tipo toureiro, que iam até o umbigo. Ou seja, muito pano pras mangas para compensar as perdas recentes da indústria têxtil ocidental capitalista.

AA- Muitas análises indicam que a JG foi um movimento da juventude alienada da época. Da juventude que apoiava a ditadura militar e que era contra as revoluções, enfim, que a Jovem Guarda era um movimento de direita, no mínimo, alienado e infantil. O que você acha disso?

LFJ- O Brasil era um país essencialmente rural, mais de 70% de sua população estava no campo. Além disso, era iletrado e tinha taxa de natalidade de quase 6 filhos por mulher em idade fértil. Mas era um pais que mudava. E bem rápido, assim como Brasília nascendo. Havia intensa migração interna, intenso movimento. Aqui e no mundo todo.  Aliás, o mundo estava de mudanças e mudavam pessoas e ideias, por todo o mundo.

RC sai do interior do Espírito Santo e vai para o Rio.  Nunca lera Sartre, Beauvoir ou Jean Genet. Nem Marx, Lenin ou Trotsky. Quem poderia querer que ele fosse um líder revolucionário marxista ou um militante existencialista? Mesmo assim, em diversas medidas, ele contribuiu muito mais para certas mudanças significativas do que muitos discursos e práticas ditas revolucionárias e de esquerda da época. Lembre-se que o uso da guitarra elétrica pelos músicos brasileiros foi duramente criticado e até mesmo severamente atacado por segmentos importantes da nascente MPB, com direito a passeata e tudo o mais, promovida por Elis Regina em SP em 1965, (quem estava à direita e à esquerda nesta questão?). Lembre-se que, de certa forma, a Tropicália só foi possível depois que Caetano Veloso, alertado por Bethânia, sua irmã, compreendeu a importância da JG e a ela se aliou.

Esse maniqueísmo que nos diz que o comportamento da esquerda é assim e o da direita assado, nos impede de compreender coisas simples quando nos impede de ver as coisas com  naturalidade.

Muitas das mudanças que o mundo precisava fazer eram pontuais, não eram necessariamente as mesmas em todos os lugares. Para as mulheres de certos lugares do mundo, o uso de sutiãs poderia ser tão revolucionário como atirá-los em fogueiras em outros. Para os homens, usar cabelos compridos e roupas coloridas no nordeste brasileiro ou no sul italiano, poderia ter a mesma importância ou promover mais mudanças que inúmeras passeatas comunistas em Paris. O Mundo estava de mudanças, e mudava sua fisionomia de acordo com a fisionomia que mudava em cada ponto seu.  Assumindo diversos rostos, diversas formas, diversas expressões de si próprio...

AA- E a infantilidade...

LFJ- Não vejo isso de 'infantilidade' como algo necessariamente negativo. Até vejo como bons olhos esse lado da JG. Uma das qualidades do ser humano é a de ser capaz de levar para a vida adulta características próprias da infância, como a curiosidade, o fascínio pela novidade por exemplo. A isso chamam de neotenia que é algo como a permanência de caracteres infantis em animais sexualmente maduros. Essa característica foi fundamental para o ser humano quando esteve prestes a se extinguir em diversos momentos da Pré História.

A curiosidade, a busca pelo novo, pelo diferente também produz cultura e ciência. O que fazem ator e espectador senão ‘brincar de mentirinha’ do tipo ‘eu finjo que sou e você finge que acredita’? O que faz o milionário jogador de futebol senão ‘brincar de bola’? O que faz o cientista senão ‘olhar nas fendas’ (nas brechas, diria o acreano) da realidade buscando realidades nuas, ocultas ou semiocultas?...

Naquele momento da JG, a juventude do mundo reivindicava ferozmente o direito de ser jovem por mais tempo. Até então em quase todas as sociedades do mundo e em todos os tempos, a passagem da infância para a vida adulta acontecia muito rapidamente. As pessoas se casavam cedo e assumiam papéis de adulto muito cedo porque a mensagem biológica do crescei e multiplicai-vos incrustada no DNA é poderosíssima. Foi essa mensagem que garantiu a sobrevivência da espécie humana adaptando-a a todo o planeta.

Após a chamada Revolução Industrial, as coisas tenderam a mudar. Com o prolongamento da expectativa de vida e o desenvolvimento das ciências médicas, mais remédios e vacinas, etc, as pessoas já não precisaram ter tantos filhos e nem casar tão cedo para ter garantida a reprodução da espécie. Como o número de filhos por casal diminuiu, o homem fez um arranjo na natureza promovendo um prolongamento artificial da infância. Os filhos, cada vez menos, ficavam cada vez mais tempo em casa sob os cuidados dos pais, preparando-se para a vida de adulto. Isto era novo, nunca houvera acontecido na história da humanidade.

Foi então que, na segunda metade do século passado, houve uma ‘explosão de juventude’ no mundo. Nessa explosão os jovens ‘inventaram’ o Rock; com o Rock reinventaram o jeito de fazer música; reinventaram os modos de ouvi-la e dançá-la, e, principalmente, de cantá-la. Cantavam como que com um grito de quem entra em cena aos gritos, como os bebês humanos entram na vida.  Assim os jovens reinventaram a ‘juventude’ e trouxeram novos sons, tons e cores à fisionomia da humanidade. Criando música própria, literatura própria, vestuário próprio etc. E tudo mais de acordo com sua fisionomia, mais de acordo com as novidades que a novidade do ‘prolongamento da infância e adolescência’ podia propiciar.

Os ‘novos jovens’, que já não eram crianças e ainda não eram adultos, gritavam pelo direito de não serem crianças nem adultos, com direito às naturais inconsequências (entrei na R Augusta a 120 ph); à inevitável superficialidade (...que eu não ligo para nada); aventuras (vinha voando no meu carro); divertimento (olha o Brucutu)... ah, e namoro mais livre, já que não havia casamento para agora (casamento, enfim, não é papo pra mim), e ninguém é de ferro. rsrs

AA- E o Acre, mudava também?

LFJ- Claro, claro que sim, e com uma criatividade (desculpe a redundância) bem original.

O Acre fazia-se Estado, havia intensos debates.  Muito calor na vida política; voltavam para cá os primeiros acreanos médicos (Mário Maia), advogados (Lourival Marques, Jersey Nunes), engenheiros, arquitetos (Fernando Castro), sociólogos (Hélio Kury)... O próprio primeiro governador, José Augusto estudara Filosofia no RJ. Essas pessoas teriam importância grande na construção da fisionomia de nosso espírito coletivo. Além delas, chegavam outras pessoas que seriam relevantes naqueles anos e em posteriores, como Aderbal Maximiniano, Abrantes Guedes, Laélia Alcântara, Dom Giocondo, Antônio Anelli, Florentina Esteves e muito mais. Essas pessoas traziam, além de si e de sua jovialidade, ideias, livros, discos, novidades enfim, que alimentavam e realimentavam o panorama de mudanças. Essa fermentação de ideias e cristalização de possibilidades foi o combustível que produziu a FADA (Faculdade de Direito do Acre), que resultou na UFAC.

Se aqui chegavam, daqui também saiam pessoas que voltariam mais tarde e influenciariam sobremaneira as artes, jornalismo, ciência sociais, etc. Gente como Terry Aquino, Elson Martins, Kleber Barros, Robson Braga, Oscenir e Piri Fecury etc. Muitas dessas pessoas, antes de se formarem,  vinham passar férias e traziam livros, discos, roupas da moda, novos passos de dança, cortes de cabelo... Maneiras novas de ver e estar no mundo.

Ao seu tempo, a JG cumpriu muito bem com uma de suas funções, que era a de estimular o fluxo de novidades, ampliar a flexibilização das mentalidades dos interiores do Brasil, preparando-as para as novidades do consumo. Junto com a JG vinha um pacote de vontade de consumo que incluía desde vestuário até eletrodoméstico; desde disco de vinil até poltronas e sofás. Foi aí que a enceradeira elétrica substituiu o escovão colonial, e o fogão a gás o pré- histórico fogão a lenha. O imaginário que a JG trazia e suscitava, impulsionava esse tipo de modernização, promovendo flexibilidade nas mentalidades do Brasil rural, do Brasil do interior... Não se esqueça que em 1966 foi criado o JUVENTUS aqui. O nome diz e explica muita coisa.

AA- Tudo muito paroquial...

LFJ- Sim, sim, mas um paroquial sui generis. Porque éramos os atores das invenções e reinvenções. Éramos assim como um time de futebol que não tem nenhum dos melhores jogadores do campeonato, porém com conjunto e volume de jogo, que estava ao nível dos times onde estavam os melhores jogadores.

Não tínhamos televisão nem instantaneidade nos contatos com o mundo lá fora, (a não ser na Radional e no Zé Pinho rsrs), tendíamos a nos fazer mais próximos de como nos víamos, e nos fazíamos mais parecidos com o que éramos realmente...

E éramos pessoas muito legais, divertidas, curiosas, amáveis, receptivas, inteligentes, criativas, modéstia à parte. Por isso fizemos aqui uma Jovem Guarda de responsa. Embalados por conjuntos musicais compostos por gente talentosíssima como Edu e Elísio dos Bárbaros, como Roberto Galo e Roberval dos Mugs. Era realmente um privilégio ouvir essas pessoas nos shows e bailes e tê-las como colegas de sala de aula, como parceiros nas serenatas de adolescentes.  Éramos amigos dos nossos ídolos como Sônia Mubarac, Dadão, Dora, Carlitinho. A gente não só via o Dadão dar shows de bola no Estadium, mas, eventualmente, poderia dar-lhe um chagão no campo de pelada ali ao lado da catedral e ao mesmo tempo, acenar para a Sônia dos Bárbaros que estava cantando com o Marcelo dos Mugs na calçada do outro lado da rua. Isso era realmente fantástico.

E é exatamente por ser tão paroquial que contêm todos os elementos de universalidade possíveis. E coisas assim aconteciam não só aqui, mas em uma quantidade enorme de cidades do Brasil e do mundo.

AA- Bem, chegamos ao momento em que “os microfones estão à sua disposição para as suas considerações finais...” mas antes: gostaria que isso tudo se repetisse?

LFJ- Ah não, isso não, não sou saudosista. Gosto de História por que com ela se pode dialogar com o futuro. Não acho que o objetivo da História seja o resgate do passado, mas algo muito mais ficcional. A História é um instrumental que junto com a física, astrofísica, biologia, biotecnologia etc., etc., levará a humanidade às estrelas... Estamos nos aproximando dos primórdios da ante proto pré história desse processo. Mas daqui já dá para perceber que quando atingimos certo nível de entendimento sobre alguns pontos do passado, nos livramos do peso que eles podem representar para as libertações que a humanidade precisa realizar. Contraditoriamente, quanto mais amamos, conhecemos e entendemos o passado, mais dele nos livramos. Mais livres nos tornamos.  E quanto mais livres ficamos mais ampliamos o sentido de humanidade que existe em nós e que é obrigação de cada ser humano cultivar, nutrir e... curtir, que ninguém é de ferro. E sobre curtição, a Jovem Guarda dá aulas... Não só de História, mas para a História.

domingo, 24 de dezembro de 2017

MONÓLOGO DO NATAL

Aldemar Paiva (1925-2014)
João Quirino/Diário de Pernambuco
Eu não gosto de você, Papai Noel!
Também não gosto desse seu papel
de vender ilusões à burguesia.
Se os garotos humildes da cidade
soubessem do seu ódio à humildade,
jogavam pedra nessa fantasia.

Você talvez nem se recorde mais.
Cresci depressa, me tornei rapaz,
sem esquecer, no entanto, o que passou.
Fiz-lhe um bilhete, pedindo um presente
e a noite inteira eu esperei, contente.
Chegou o sol e você não chegou.

Dias depois, meu pobre pai, cansado,
trouxe um trenzinho feio, empoeirado,
que me entregou com certa excitação.
Fechou os olhos e balbuciou:
“É pra você, Papai Noel mandou”.
E se esquivou, contendo a emoção.

Alegre e inocente nesse caso,
eu pensei que meu bilhete com atraso,
chegara às suas mãos, no fim do mês.
Limpei o trem, dei corda,
ele partiu dando muitas voltas,
meu pai me sorriu e me abraçou pela última vez.

O resto eu só pude compreender quando cresci
e comecei a ver todas as coisas com realidade.
Meu pai chegou um dia e disse, a seco:
“Onde é que está aquele seu brinquedo?
Eu vou trocar por outro, na cidade”.

Dei-lhe o trenzinho, quase a soluçar
e como quem não quer abandonar
um mimo que nos deu, quem nos quer bem,
disse medroso: “O senhor vai trocar ele?
Eu não quero outro brinquedo, eu quero aquele.
E por favor, não vá levar meu trem”.

Meu pai calou-se e pelo rosto veio descendo um pranto que, eu ainda creio,
tanto e tão santo, só Jesus chorou!
Bateu a porta com muito ruído, mamãe gritou
ele não deu ouvidos, saiu correndo e nunca mais voltou.

Você, Papai Noel, me transformou num homem que a infância arruinou, sem pai e sem brinquedos.
Afinal, dos seus presentes, não há um que sobre
para a riqueza do menino pobre
que sonha o ano inteiro com o Natal.

Meu pobre pai doente, mal vestido,
para não me ver assim desiludido,
comprou por qualquer preço uma ilusão,
e num gesto nobre, humano e decisivo,
foi longe pra trazer-me um lenitivo,
roubando o trem do filho do patrão.

Pensei que viajara,
no entanto depois de grande,
minha mãe, em prantos,
contou-me que fora preso
e como réu, ninguém a absolvê-lo se atrevia.
Foi definhando, até que Deus, um dia,
entrou na cela e o libertou pro céu. 


Aldemar Paiva foi poeta, radialista e jornalista pernambucano. Faleceu em 2014, aos 89 anos. “Grande contador de causos, também escreveu páginas de humor no Jornal do Commercio, Diário da Noite e Diário de Pernambuco, e contos satíricos reunidos no livro O causo eu conto. Sua produção literária reúne, também, um livro de poesias (Monólogos e outros poemas) e os cordéis A chegada de Nelson Ferreira no céu e Auto do Batizado.”

sábado, 23 de dezembro de 2017

OS DOIS IRMÃOS LÁZARO E CATERPILLAR

GILBERTO A. SAAVEDRA – Rio de Janeiro
O contador de histórias acreanas não contadas

Esta narrativa não é uma história de reis, rainhas ou heróis, porquanto de duas pessoas simples e que, por suas excentricidades, se tornaram conhecidíssimas e queridas na cidade. Lázaro ficou popular pelas suas abafadas, curtas e estranhas gargalhadas, e o Caterpillar por suas aventuras de andar de bicicletas só em velocidade máxima.

Quem conviveu com esse tempo de 1950/60 em Rio Branco/Acre, se recordará das peripécias desses dois irmãos.

Lázaro e Caterpillar (apelido do segundo), pois não consegui descobrir o seu nome, eram filhos de uma família bem humilde.

Os dois irmãos residiam com os seus pais na cidade de Rio Branco – capital do Acre.

A residência estava situada no bairro José Augusto, na parte próxima do término do campo dos Guimarães que, iniciava no final do bairro do IPASE, indo até um campo de futebol.

Era uma casa muito simples (extremamente pobre); as paredes e o telhado foram construídos de palhas (folhas de palmeiras).

Numa parte, dava-se para notar, que o piso era de barro batido (saibro). À noite, várias redes de dormir eram armadas nos caibros do telhado.

Nesse tempo em Rio Branco, ainda existiam muitos casebres desses tipos. Notava-se muitos ainda em colônias.

Na pequena morada, não havia energia elétrica; várias lamparinas iluminavam o ambiente familiar.

Não sei quantas pessoas da família residiam ali. Também, não sei dizer se o Lázaro e Caterpillar tinham outros irmãos.

Sempre que passava nessa rua e, em frente do casebre, dava para notar mais gente (bem mais jovens) dentro da residência, talvez, parentes.

No campo dos Guimarães, havia em abundância um imenso goiabal; também muitos pés de Cajá (docinhas). Os meninos caíam dentro.

Lá, também tinha uma vertente (de águas cristalinas); alguns moradores da área, diziam já terem visto o aparecimento da Mãe D’Água.

Eu e os colegas de times de futebol, vimos várias vezes, o Lázaro se banhando nessa vertente d’água. Ficava perto de sua casa.

Tomei também muito banho lá (depois das peladas de futebol), mas sempre preocupado (medo) com essa aparição, de surgir na hora, me enfeitiçar e querer me levar (puxar) para o fundo da vertente (eu deveria ter uns 12 anos).

Dizem que era uma moça de cabelos negros e longos de uma beleza fascinante.

O Lázaro deveria ter no máximo de 25/30 anos.

Tinha estatura alta, aproximadamente um metro e oitenta e cinco; sempre barbudo (barba e cabelos cheios sem corte); seu rosto tinha uma pele com uma palidez acentuada.

Sempre vestindo no cotidiano uma indumentária constituída de blusões e calças largas (folgadas no corpo); caminhava rápido, sempre com os grandes pés descalços e um olhar de cabeça baixa; sorridente para quem lhe dirigisse algumas palavras.

Era só o que o Lázaro sabia fazer: sorrir!

Ficou conhecido na cidade pela sua maneira diferente (engraçada) e esquisita de soltar às suas gargalhadas, sons abafados e curtos (cortados repentinamente).

Quando se pensava que o Lázaro estava apenas começando a rir com suas famosas gargalhadas, mas ele já estava findando-a.

Por esse motivo, essa maneira de ser, de responder a todos somente com sorrisos e gargalhadas, muita gente se aproveitava das ocasiões, somente, para ouvir o Lázaro executar suas estranhas e inesquecíveis gargalhadas para se divertir.

Porém, era uma pessoa de bom coração que, não fazia mal a ninguém.

Seu ponto predileto era em frente da catedral Nossa Senhora de Nazaré, durante as missas ou os arraiais. Ele ficava lá no seu cantinho, quietinho sem perturbar ninguém. Lázaro já era um velho conhecido dos padres (Servos de Maria).

Lázaro não pedia esmola; também não respondia o que lhe perguntavam, apenas, ‘sorria’. Às crianças ele sorria mais. Elas gostavam dele e ficavam à sua volta.

Todos desse tempo se recordarão do grandalhão que, somente sabia ‘sorrir e sorrir’, seu jeito de ser, a marca registrada de “Lázaro”.


O PERSONAGEM CATERPILLAR

Acredito pela aparência que, ele seria mais jovem. Diferente do seu irmão Lázaro que não abria o bico para responder nada, Caterpillar era bem despachado. Ele trabalhava e até namorava.

Caterpillar não tinha estatura alta como o seu irmão Lázaro; era de altura mediana, não usava barba, só bigode.

Ficou conhecido em Rio Branco pelo seguinte motivo.

A cidade estava crescendo; expandindo-se ruas e lugares.

Muitas movimentações nos bairros, de máquinas (tratores) da marca “Caterpillar”, trabalhando nas benfeitorias das ruas.

Era um barulho infernal dos roncos dos poderosos motores, dessas máquinas a diesel. Mas, os meninos (crianças) adoravam ficar olhando.

Quando o trator vinha e passava ao lado das crianças com sua possante e afiada lâmina, cortando e deixando bem lisinho e brilhante, o barro vermelho, logo em seguida, os moleques corriam para cima do barro escorregadio (no meio da rua), querendo deslizar (havia uma ladeira) no barro liso deixado pela máquina.

Quando o trator iniciava o retorno, (em suas idas e vindas), pelo barulho ensurdecedor crescendo, os moleques entendiam que ele estava voltando e pulavam fora da rua.

O nosso personagem que trabalhava na Prefeitura, presenciava todos os dias, essa alegria (brincadeira) das crianças com os tratores da Caterpillar.

Passado algum tempo, foi instalada no bairro do Bosque, perto da descida da Getúlio Vargas, uma casa comercial para alugar bicicletas.

Era gente querendo alugar bicicletas que não acabava mais. Nenhuma magrela se conseguia na hora.

Nosso personagem (Caterpillar) tratou logo, também, de conseguir um horário.

Quando arranjava um tempo ficava o dia inteiro.

Primeiro ele teve que aprender a andar de bicicletas; foram muitas quedas e tempo.

Ao aprender a andar de kalanga, só pedalava em alta velocidade. De longe o transeunte já escutava que ele e a sua bicicleta estavam se aproximando.

Ele para não atropelar ninguém com sua bike, ao se aproximar de uma pessoa, começava a fazer um barulho forte na boca, imitando um trator Caterpillar (daí o apelido).

Quando ele vinha pedalando, já se ouvia o alto ronco “Brooommm” (= motor), produzido pela sua garganta e boca.

Dizem as más línguas (as boas ficam caladas) que ele gastava todo o seu salário do mês em alugueis de bicicletas.

Ele gostava de se divertir com elas; adorava colocar uma camisa branca de punho, por dentro da calça e um sapato novo. Presenciei várias vezes essas cenas.

Caterpillar adorava descer em alta velocidade a ladeira da maternidade Bárbara Heliodora no Bosque.

Sua imensa velocidade alcançada pela magrela era tanta que, por trás, sua camisa branca de punho vibrava tanto com o vento que, parecia mais um balão inflável flexível querendo subir, de tão cheia de ar.

Se o Caterpillar fosse magrinho o vento o teria levado no ar.

TESTAMENTO INÓCUO DA FALTA

João Veras 22/12/17 


A arte é minha religião e eu não tenho fé.

      A arte é a minha ideologia e alguma eu não possuo.

           A arte é o meu alimento e eu não sinto fome.

                A arte é o meu prazer e eu não me satisfaço.

                    A arte é a minha medida e eu assimétrico torto.

                         A arte é a minha vida e eu estou morto.


Dedico ao blog Alma Acreana (de Isaac Melo)