João Quirino/Diário de Pernambuco |
Também não gosto
desse seu papel
de vender ilusões à
burguesia.
Se os garotos
humildes da cidade
soubessem do seu
ódio à humildade,
jogavam pedra nessa
fantasia.
Você talvez nem se
recorde mais.
Cresci depressa, me
tornei rapaz,
sem esquecer, no
entanto, o que passou.
Fiz-lhe um bilhete,
pedindo um presente
e a noite inteira
eu esperei, contente.
Chegou o sol e você
não chegou.
Dias depois, meu
pobre pai, cansado,
trouxe um trenzinho
feio, empoeirado,
que me entregou com
certa excitação.
Fechou os olhos e
balbuciou:
“É pra você, Papai
Noel mandou”.
E se esquivou,
contendo a emoção.
Alegre e inocente
nesse caso,
eu pensei que meu
bilhete com atraso,
chegara às suas
mãos, no fim do mês.
Limpei o trem, dei
corda,
ele partiu dando
muitas voltas,
meu pai me sorriu e
me abraçou pela última vez.
O resto eu só pude
compreender quando cresci
e comecei a ver
todas as coisas com realidade.
Meu pai chegou um
dia e disse, a seco:
“Onde é que está
aquele seu brinquedo?
Eu vou trocar por
outro, na cidade”.
Dei-lhe o
trenzinho, quase a soluçar
e como quem não
quer abandonar
um mimo que nos deu,
quem nos quer bem,
disse medroso: “O
senhor vai trocar ele?
Eu não quero outro
brinquedo, eu quero aquele.
E por favor, não vá
levar meu trem”.
Meu pai calou-se e
pelo rosto veio descendo um pranto que, eu ainda creio,
tanto e tão santo,
só Jesus chorou!
Bateu a porta com
muito ruído, mamãe gritou
ele não deu
ouvidos, saiu correndo e nunca mais voltou.
Você, Papai Noel,
me transformou num homem que a infância arruinou, sem pai e sem brinquedos.
Afinal, dos seus
presentes, não há um que sobre
para a riqueza do
menino pobre
que sonha o ano
inteiro com o Natal.
Meu pobre pai
doente, mal vestido,
para não me ver
assim desiludido,
comprou por
qualquer preço uma ilusão,
e num gesto nobre,
humano e decisivo,
foi longe pra
trazer-me um lenitivo,
roubando o trem do
filho do patrão.
Pensei que viajara,
no entanto depois
de grande,
minha mãe, em
prantos,
contou-me que fora
preso
e como réu, ninguém
a absolvê-lo se atrevia.
Foi definhando, até
que Deus, um dia,
entrou na cela e o libertou pro céu.
Aldemar Paiva foi poeta, radialista e
jornalista pernambucano. Faleceu em 2014, aos 89 anos. “Grande contador de causos, também escreveu páginas de humor no Jornal
do Commercio, Diário da Noite e Diário de Pernambuco, e contos satíricos
reunidos no livro O causo eu conto.
Sua produção literária reúne, também, um livro de poesias (Monólogos e outros poemas) e os cordéis A chegada de Nelson Ferreira no céu e Auto do Batizado.”
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