sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

CAFÉ PINGADO

Jacques Prévert (1900-1977)


É terrível 
O barulhinho de ovo quebrado contra o balcão de zinco
terrível esse barulho 
quando ele se agita na memória do homem faminto
terrível também a cabeça do homem
a cabeça do homem que tem fome
quando se vê às seis da manhã
no espelho da grande loja
uma cabeça cor de poeira
mas não é a sua cabeça que ele vê
na vitrine da casa Fauchon
pouco lhe importa essa sua cabeça de homem
não pensa nela
sonha
imagina uma outra cabeça
cabeça de vitela por exemplo
com molho de vinagre
ou cabeça de qualquer coisa que se come
e mexe lentamente o maxilar
lentamente
e trinca os dentes lentamente
pois o mundo se diverte à custa da sua cabeça
e ele nada pode contra o mundo
e conta com os dedos, um, dois, três
um dois três
três dias que não come
e já está cansado de repetir por três dias
As coisas não podem continuar assim
mas continuam
três dias
três noites
sem comer
e por detrás do vidro
patês garrafas conservas
peixes mortos protegidos pelas latas
latas protegidos pelo vidro
vidro protegidos pelos tiras
tiras protegidos pelo medo
quantas barricadas por seis sardinhas infelizes...
Mais adiante o bar e o restaurante
café com leite e pãezinhos quentes
o homem titubeia
e lá dentro de sua cabeça
um nevoeiro de palavras
um nevoeiro de palavras
sardinhas para comer
ovo cozido café com leite
café pingado rum
café com leite
café com leite
café com crime pingado sangue!...
Um homem muito estimado no bairro
cortaram a garganta dele em pleno dia
o assassino o vagabundo lhe roubou
dois francos
ou seja um café pingado
zero franco setenta centavos
dois pãezinhos com manteiga
e vinte e cinco centavos de troco a gorjeta do garçom
É terrível 
o barulhinho do ovo cozido quebrado contra o balcão de zinco
terrível esse barulho
quando se agita na memória do homem faminto.


LA GRASSE MATINÉE

Il est terrible
le petit bruit de l'oeuf dur cassé sur un comptoir d'étain
il est terrible ce bruit
quand il remue dans la mémoire de l'homme qui a faim
elle est terrible aussi la tête de l'homme
la tête de l'homme qui a faim
quand il se regarde à six heures du matin
dans la glace du grand magasin
une tête couleur de poussière
ce n'est pas sa tête pourtant qu'il regarde
dans la vitrine de chez Potin
il s'en fout de sa tête l'homme
il n'y pense pas
il songe
il imagine une autre tête
une tête de veau par exemple
avec une sauce de vinaigre
ou une tête de n'importe quoi qui se mange
et il remue doucement la mâchoire
doucement
et il grince des dents doucement
car le monde se paye sa tête
et il ne peut rien contre ce monde
et il compte sur ses doigts un deux trois
un deux trois
cela fait trois jours qu'il n'a pas mangé
et il a beau se répéter depuis trois jours
Ça ne peut pas durer
ça dure
trois jours
trois nuits
sans manger
et derrière ces vitres
ces pâtés ces bouteilles ces conserves
poissons morts protégés par les boîtes
boîtes protégées par les vitres
vitres protégés par les flics
flics protégés par la crainte
que de barricades pour six malheureuses sardines....
Un peu plus loin le bistro
café-crème et croissants chauds
l'homme titube
et dans l'intérieur de sa tête
un brouillard de mots
un brouillard de mots
sardines à manger
oeuf dur café-crème
café arrosé rhum
café-crème
café-crème
café-crime arrosé sang!.....
Un homme très estimé dans son quartier
a été égorgé en plein jour
l'assassin le vagabond lui a volé
deux francs
soit un café arrosé
zéro francs soixante-dix
deux tartines beurrées
et vingt-cinq centimes pour le pourboire du garçon.
Il est terrible
le petit bruit de l'oeuf dur cassé sur un comptoir d'étain
il est terrible ce bruit
quand il remue dans la mémoire de l'homme qui a faim.


PRÉVERT, Jacques. Poemas. Introdução, seleção e tradução de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p.26-31

A CHEIA DO MADEIRA E ALGUMAS VERDADES SOBRE O ACRE

Depois da publicação da postagem abaixo, o nosso passarinheiro de plantão Luiz Felipe Jardim enviou-nos as seguintes passarinhanças:





quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A CHEIA DO MADEIRA E ALGUMAS VERDADES SOBRE O ACRE

Israel Souza[1]


            Não foi preciso mais que uns poucos dias de cheia do Madeira para jogar por terra uma década e meia de propaganda sobre o desenvolvimento do Acre.
Ficou claro que não conseguimos nos alimentar sem contar com o que vem de fora, mesmo com tanta terra e gente disposta a trabalhar. Assim, até parece que somos um estado de indolentes.
Isto porque a atual política de desenvolvimento impôs uma especialização por essas bandas. Especializamo-nos em vender madeira e carne para os outros! Como é amplamente sabido, estas são atividades econômicas de grande impacto ambiental e contribuem para a concentração de terra e renda.
E que benefícios trouxeram para a população local? Que julgue o leitor, pois continuamos na dependência dos repasses do governo federal... 
            Para entender melhor a relação da cheia do Madeira com o Acre, é preciso fazer ainda outras considerações. Lembremos, então, do papel ativo que Jorge Viana (PT-AC) desempenhou na defesa do projeto de construção das barragens (Santo Antônio e Jirau) em nosso estado vizinho.
            Quando ali os movimentos sociais se levantaram contra o projeto, o senador pôs-se ao lado de Ivo Cassol (PP-RO), argumentando que Acre e Rondônia não abririam mão de estar dentro do projeto, que ele (o projeto) traria oportunidades incríveis para nosso estado (ver o documentário O chamado do Madeira e a entrevista do professor Elder).
            Bem. Não sei que bons frutos chegamos a colher do projeto, mas os frutos ruins estão aí e a tendência é que se multipliquem e se tornem cada vez mais amargos. 
           Agora, que parte da estrada que liga o Acre a Rondônia está alagada, Jorge Viana quer cobrar satisfação dos engenheiros responsáveis pela construção da BR. Não nos deixemos enganar por essa tentativa de distorcer os fatos e tirar o foco do que realmente ocorreu. Não foi a estrada que baixou. Foram as águas que subiram e subiram em razão das barragens que aguerridamente ele defendeu.
Francamente, a nosso ver, o senador deveria pedir desculpas ao povo acreano e aos nossos irmãos de Rondônia que estão sofrendo com a situação que ele ajudou a criar[2].
               A atuação de Jorge de Viana no Senado tem contribuído enormemente para fazer da Amazônia uma espécie de colônia das regiões desenvolvidas do país[3]. No caso das barragens, estas regiões e as empresas ficam com a energia e os lucros. Nós ficamos com os prejuízos sociais e ambientais.
            Cumpre ressaltar que, se os problemas estão acontecendo, não foi por falta de aviso ou conhecimento. Movimentos sociais, técnicos do IBAMA e vários cientistas alertaram sobre os perigos de tal obra. Já no século XIX, Engels (O papel do trabalho na transformação do macaco em homem) dizia que “Na natureza, nada acontece isoladamente: os fenômenos exercem entre si influências recíprocas, num movimento universal” (ENGELS: 1990, 31). Dizia ainda que “não nos deixemos entusiasmar apenas pelo fato de sermos vitoriosos em relação à natureza, pois a cada vitória assim conquistada, a sábia natureza prepara sua vingança” (ENGELS: 1990, 33).
            Desse modo, se o problema está posto, foi em razão dos grandes interesses em jogo. De acordo com Boulos (Por que ocupamos? Uma introdução à luta dos sem-teto), 54%

dos deputados federais e senadoras eleitos em 2010 receberam ‘doações’ de grandes construtoras. As mais ‘generosas’ foram a Camargo Corrêa, que triplicou suas ‘doações’ em relação a 2006, chegando a R$ 80 milhões; e a Andrade Gutierrez, com R$ 58 milhões. As grandes empresas sozinhas representam 25% de todos os gastos com campanha eleitoral no Brasil (BOULOS: 2012, 34).

            E, num pragmatismo que suplanta qualquer exclusivismo ideológico partidário, elas foram as principais financiadoras tanto da campanha de Dilma Roussef (PT) quanto da de José Serra (PSDB) (BOULOS: 2012, 34).
Uma vez chegando ao poder estatal, a força política financiada pelas construtoras deve então criar as “oportunidades” de obras que, num certo sentido, servem como “acerto de uma dívida”. Compreende-se, dessa maneira, porque pesquisas que apontam que, potenciando as usinas existentes, não haveria mais necessidades de construção de novas. 
             No momento, o governo local se desdobra para acalmar a população e evitar o caos.  A busca de um Plano B ou C apenas mostrou que nós não temos um Plano A. E, independentemente do que o governo faça, a subida das águas do Madeira pôs a descoberto aquilo que faz tempo vimos denunciado: o fracasso de nosso modelo de desenvolvimento, um modelo que tanto tem de farsa quanto de tragédia.
Amparados pela imprensa, as forças governistas têm chamado a atenção para a construção da bendita ponte que há de ligar os dois estados. Entretanto, segundo informações, a estrada já conta com 14 km inundados. Diante disso, poderá a ponte resolver o problema?
            Na iminência de faltar alimento, senti uma vontade enorme de criar galinha, de resgatar a cultura de nossos avós e plantar uma horta num cantinho aqui do quintal. Farei isso e vou preparar também um fogareiro.
            Ah... Ia esquecendo. O carnaval se aproxima e disseram que pode faltar cerveja. Vou me apressar e fazer meu rancho... Nesses dias de tantas águas, não quero passar a seco.
            Sigo na esperança de que, como eu, a população acreana esteja cansada e queira mudar de enredo em nossa política. Por ora, vou cantarolando... “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”...



[1] Cientista Social com habilitação em Ciência Política, mestre em Desenvolvimento Regional e membro do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental - NUPESDAO. E-mail: israelpolitica@gmail.com
[2] Ao que tudo indica, deve pedir desculpas também aos bolivianos. Ver Bolivianos culpam Brasil por enchentes.
[3] A proposta do Novo Código Florestal em que ele tomou parte ativamente é disso um exemplo. Embora não tenham conseguido tudo o que pretendiam com tal código, os ruralistas podem comemorar. Parte significativa de suas reivindicações encontrou ali acolhida.
> Também publicado no blog do Altino Machado.

MÚSICA DE CÂMARA

James Joyce (1882-1941)


VI

Quem dera o doce peito eu habitasse
(Tão belo ele é, tão doce e vero!)
E o vento rude nunca me rondasse...
Por causa do árido ar severo
Quem dera o doce peito eu habitasse.

Tivesse nesse coração morada
(De leve, bato, imploro à moça!)
E nele a paz me fosse partilhada...
Esse ar severo fora doce
Tivesse nesse coração morada.

VII

Amor, vestes leves, passeia
Entre as macieiras – via
Por onde o vento alegre anseia
Correr em companhia.

Lá, onde o vento alegre para
E corteja a jovem rama,
Amor vai lento, a se inclinar à
Sombra sobre a grama,

E o céu pálido e azul é a taça
Por sobre a terra gaia,
Amor vai leve, a mão com graça
A segurar a saia.

IX

Ventos de maio, em dança mar afora,
Dançando lá numa giranda em glória,
De sulco em sulco, a espuma esvoaçando
Ao alto, até tornar-se uma guirlanda
De arcos prateados que atravessam o ar –
Não viram meu amor nalgum lugar?
Malandança, malandança!
Ah ventos de maio em dança!
Amor é triste se amor está a distância!


JOYCE, James. Música de câmara. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Iluminuras, 1998. p.61, 63, 67

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

AGORA NO PORTAL ENTRETEXTOS

Agora editamos a COLUNA LEITURAS, no PORTAL ENTRETEXTOS, do escritor e prof. Dilson Lages Monteiro, um dos grandes agitadores da cultura literária no Piauí, sobretudo na capital, Teresina, onde encontra-se sediado o Portal. O convite veio do escritor Rogel Samuel, a quem agradeço, bem como ao prof. Dilson. A Coluna é um convite à Leitura dos mais variados e importantes poetas de todos os tempos e lugares.

DEUS NOS ACUDA!

Elson Martins


As alagações não são novidades  na Amazônia. E no Acre temos notícia de que no passado aconteceram algumas maiores que as que se vê nos invernos da atualidade. Uma vez eu entrevistei um idoso de Tarauacá, no vale do Juruá, e ele contou que seus avós falavam de um dilúvio que invadiu a floresta assustando até os macacos. Estes, coitados, são sempre lembrados nas tragédias que viram piada. No tempo da malária braba, se dizia que eles trocavam um cacho de banana por um comprimido de Aralem na fronteira com a Bolívia. Imagino que nas inundações preferem sacos encauchados.

O problema é que hoje tem mais gente a ser acudida nas áreas urbanas e isso agita os segmentos políticos, a mídia e, claro, as famílias socialmente desarrumadas que moram nos bairros atingidos. Tanto que já contamos com alguns “bruxos” fazendo previsões e manchetes que ignoram os macacos. Um deles é o doutor professor da Universidade Federal do Acre (UFAC), David Friale, especialista em climas que acerta nas previsões de chuvas, temporais e friagens.

Mais recentemente um outro professor, o Reginâmio Bonifácio de Lima, licenciado em história e doutor em Teologia apareceu com previsões nem tanto científicas quanto as do Friale, mas que em 2008, contrariando as previsões oficiais, alertou que as águas subiriam muito em 2009 e acertou: 1.500 famílias tiveram que abandonar suas casas naquele ano.

Da mesma forma, contrariando as expectativas, ele descartou alagação em 2013, mas advertiu que em 2014 o aguaceiro poderia atingir 60% da capital.

Reginâmio, 32 anos, acreano de Rio Branco, é especialista em Cultura, Natureza e Movimentos Sociais na Amazônia e atua como pesquisador e policial  na diretoria de Ensino da Polícia Militar do Acre. Também lidera o “Grupo de Pesquisa Sobre Terras e Gentes: Amazônia em Foco, que publica livros na área de história e estudos culturais, entre os quais “Memórias de Velhos”.
Rio Madeira, foto de Sérgio Vale

Ele encabeça um grupo de estudiosos  que inclui a esposa, Maria Iracilda, os irmãos Pedro e Regineison e a especialista em história e cultura Lelcia Maria Monteiro de Almeida. Reginâmio recorre a estudos feitos pelo professor Antônio Monteiro, da Universidade de São Paulo (USP), que permite previsões bastante confiáveis; à Prefeitura de Rio Branco que disponibiliza mapas obtidos por satélite; ao Ministério de Ciência e Tecnologia e ao Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia) que também fornecem pistas.

Nas suas fontes “confiáveis” estão os velhinhos da floresta. Essa turma tem entre 90 ou cem anos de idade e sabe coisas “do Acre da velha” que beiram a precisão. Eles sabem que quando as formigas ficam agitadas na floresta é sinal de muita água. E que os jabutis tratam com antecedência de subir os barrancos mais altos quando o inverno vem com força. Os mais sofisticados se guiam pelas safras de manga e outros frutos: se são grandes num ano, tem alagação no outro.

As previsões para 2014, entretanto, oferecem elementos novos que, certamente, as formigas e os jabutis desconhecem. A Organização das Nações Unidas divulgou ano passado que o aquecimento global até o final do século 21 será “provavelmente superior” a 2 graus, superando o limite considerado seguro pelos especialistas. E que até 2100 o nível do mar deve aumentar perigosamente de 45 a 82 centímetros; e o gelo do Ártico poderá diminuir até 94% durante o verão local. Isso pode significar que também o gelo dos Andes derreta em nossa proximidade, gerando enchentes capazes de encobrir cidades amazônicas como Manaus, Belém e Macapá, para citar somente capitais.

Mas isso são previsões remotas, ainda, e quem sou eu pra me arvorar a “bruxo” e sair assustando as pessoas! De qualquer modo, é novidade que fortes chuvas nas cabeceiras do Rio Madre de Dios, no Peru,  estejam influindo na alagação do Rio Madeira em Rondônia. Tanto que a BR-364 foi interrompida e o Acre permanece sem contato terrestre com o mundo, sem gasolina etc.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

FAVELÁRIO NACIONAL

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

À memória de Alceu Amoroso Lima,
que me convidou a olhar para as favelas
do Rio de Janeiro.


1. Prosopopeia

Quem sou eu para te cantar, favela,
que cantas em mim e para ninguém a noite inteira de sexta-feira
e a noite inteira de sábado
e nos desconheces, como igualmente não te conhecemos?
Sei apenas do teu mau cheiro: baixou a mim, na viração,
direto, rápido, telegrama nasal
anunciando morte... melhor, tua vida.

Decoro teus nomes. Eles
jorram na enxurrada entre detritos
da grande chuva de janeiro de 1966
em noites e dias e pesadelos consecutivos.
Sinto, de lembrar, essas feridas descascadas na perna esquerda
chamadas Portão Vermelho, Tucano, Morro do Nheco,
Sacopã, Cabritos, Guararapes, Barreira do Vasco,
Catacumba catacumbal tonitruante no passado,
e vem logo Urubus e vem logo Esqueleto,
Tabajaras estronda tambores de guerra,
Cantagalo e Pavão soberbos na miséria,
a suculenta Mangueira escorrendo caldo de samba,
Sacramento... Acorda, Caracol. Atenção, Pretos Forros!
O mundo pode acabar esta noite, não como nas Escrituras se estatui.
Vai desabar, grampiola por grampiola,
trapizonga por trapizonga,
tamanco, violão, trempe, carteira profissional, essas drogas todas,
esses tesouros teus, altas alfaias.

Vai desabar, vai desabar
o teto de zinco marchetado de estrelas naturais
e todos, ó ainda inocentes, ó marginais estabelecidos, morrereis
pela ira de Deus, mal governada.

Padecemos este pânico, mas
o que se passa no morro é um passar diferente,
dor própria, código fechado: Não se meta,
paisano dos baixos da Zona Sul.

Tua dignidade é teu isolamento por cima da gente.
Não sei subir teus caminhos de rato, de cobra e baseado,
tuas perambeiras, templos de Mamalapunam
em suspensão carioca.
Tenho medo. Medo de ti, sem te conhecer,
medo só de te sentir, encravada
favela, erisipela, mal-do-monte
na coxa flava do Rio de Janeiro.

Medo: não de tua lâmina nem de teu revólver
Nem de tua manha nem de teu olhar.
Medo de que sintas como sou culpado
e culpados somos de pouca ou nenhuma irmandade.
Custa ser irmão,
custa abandonar nossos privilégios
e traçar a planta
da justa igualdade.
Somos desiguais
e queremos ser
sempre desiguais.
E queremos ser
bonzinhos benévolos
comedidamente
sociologicamente
mui bem comportados.
Mas favela, ciao,
que este nosso papo
está ficando tão desagradável.
Vês que perdi o tom e a empáfia do começo?

2. Morte Gaivota

O bloco de pedra ameaça
triturar o presépio de barracos e biroscas.
Se deslizar, estamos conversados.
Toda gente lá em cima sabe disso
E espera o milagre,
ou, se não houver milagre, o aniquilamento instantâneo,
enquanto a Geotécnica vai tecendo o aranhol de defesas.
Quem vence a partida? A erosão caminha
nos pés dos favelados e nas águas.
Engenheiros calculam. Fotógrafos
esperam a catástrofe. Deus medita
qual o melhor desfecho, senão essa
eterna expectativa de desfecho.

O morro vem abaixo esta semana
De dilúvio
ou será salvo por Oxosse?
Diáfana, a morte paira no esplendor
do sol no zinco.
Morte companheira. Morte,
colar no pescoço da vida.
Morte com paisagem marítima,
gaivota,
estrela,
talagada na manhã de frio
entre porcos, galinhas e cabritos.
Tão presente, tão íntima que ninguém repara
no seu hálito.
Um dia, possivelmente madrugada de trovões,
virá tudo de roldão
sobre nossa ultra, semi ou nada civilizadas cabeças
espectadoras
e as classes se unirão entre os escombros.

3. Urbaniza-se? Remove-se?

São 200, são 300
as favelas cariocas?
O tempo gasto em contá-las
é tempo de outras surgirem.
800 mil favelados
ou já passa de um milhão?
Enquanto se contam, ama-se
em barraco e a céu aberto,
novos seres se encomendam
ou nascem à revelia.
Os que mudam, os que somem,
os que são mortos a tiro
são logo substituídos.
Onde haja terreno vago,
onde ainda não se ergueu
um caixotão de cimento
esguio (mas vai-se erguer)
surgem trapos e tarecos,
sobre fumaça de lenha
em jantar improvisado.

Urbaniza-se? Remove-se?
Extingue-se a pau e fogo?
Que fazer com tanta gente
brotando do chão, formigas
de formigueiro infinito?
Ensinar-lhes paciência,
conformidade, renúncia?
Cadastrá-los e fichá-los
para fins eleitorais?
Prometer-lhes a sonhada,
mirífica, róseo-futura
distribuição (oh!) de renda?
Deixar tudo como está
para ver como é que fica?
Em seminários, simpósios,
comissões,congressos,cúpula
de alta vaniloquência
elaborar a perfeita
e divina solução?

Um som de samba interrompe
tão sérias cogitações,
e a cada favela extinta
ou em vila transformada,
com direito a pagamento
da Comlurb, ISS, Renda,
outra aparece, larvar,
rastejante, desafiante,
de gente que nem a gente,
Desejante, suspirante,
ofegante, lancinante,
O mandamento da vida
explode em riso e ferida.

4. Feliz

De que morreu Lizélia no Tucano?
Da avalanche de lixo no barraco.
Em seu caixão de lixo e lama ela dormiu
o sono mais perfeito de sua vida.

5. O nome

Me chamam Bonfim. A terra é boa,
não se paga aluguel, pois é do Estado,
que não toma tenência dessas coisas
por enquantemente. Na vala escorre
a merda dos barracos. Tem verme
n’água e n’alma. A gente se acostuma.
A gente não paga nada pra morar,
como ia reclamar?

Meu nome é Bonfim. Bonfim geral.
Que mais eu sonho?

6. Matança dos inocentes

Meu nome é Rato Molhado.
Meus porcos foram todos sacrificados
para acabar com a peste dos porcos.
Fiquei sem saúde e sem eles.
Uma por uma ou todas de uma vez
pereceram minhas riquezas. Em Inhaúma
sobram meus ratos incapturáveis.

7. Faz Depressa

Aqui se chama Faz Depressa
porque depressa se faz
a casa feita num relâmpago
em chão incerto, deslizante.
Tudo se faz aqui depressa.
Até o amor. Até o fumo.
Até, mais depressa, a morte.
Ainda mesmo se não se apressa,
a morte é sempre uma promessa
de decisão geral expressa.

8. Guaiamu

Viemos de Minas, sim senhor,
fugindo da cerca braba lá do Norte.
Em riba de cinco estacas fincadas no mangue
a gente acha que vive
com a meia graça de Deus Pai Nosso Senhor.
Diz – que isto aqui tem nome Nova Holanda. 
Eu não dou fé, nem sei onde é Holanda velha.
Me dirijo à Incelência: Isso é mar?
Mar, essa porcaria que de tarde
a onda vem e limpa mais ou menos,
e volta a ser porcaria, porcamente?
Vossa Senhoria tá pensando
que a gente passa bem de guaiamu
no almoço e na janta repetido?
Guaiamu sumiu faz tempo.
Aqui só vive gente, bicho nenhum
tem essa coragem.
Espia a barriga,
espia a barriga estufada dos meninos,
a barriga cheia de vazio,
de Deus sabe o quê.
Ele não podendo sustentar todo mundo
pelo menos faz inchar a barriga até este tamanho.

9. Olheiros

Pipa empinada ao sol da tarde,
sinal que polícia vem subindo.
Sem pipa, sem vento,
sem tempo de empinar,
assovio fino vara o morro,
torna o corpo invisível, imbatível.

10. Sabedoria

Deixa cair o barraco, Ernestilde,
deixa rolar encosta abaixo, Ernestilde,
deixa a morte vir voando, Ernestilde,
deixa a sorte brigar com a morte, Ernestilde.
Melhor que obrigar a gente, Ernestilde,
a viver sem competência, Ernestilde,
no áureo, remoto, mítico
– lúgubre
conjunto habitacional.

11. Competição

Os garotos, os cães, os urubus
guerreiam em torno do esplendor do lixo.
Não, não fui eu que vi. Foi o Ministro 
do Interior.

12. Desfavelado

Me tiraram do meu morro
me tiraram do meu cômodo
me tiraram do meu ar
me botaram neste quarto 
multiplicado por mil
quartos de casas iguais.
Me fizeram tudo isso 
para o meu bem. E meu bem 
ficou lá no chão queimado
onde eu tinha o sentimento
de viver como queria
no lugar onde queria
não onde querem que eu viva
aporrinhado devendo
prestação mais prestação
da casa que não comprei
mas compraram para mim.
Me firmo, triste e chateado,
Desfavelado.

13. Banquete

Dia sim dia não, o caminhão
despeja 800 quilos de galinha podre,
restos de frigorífico,
no pátio do Matruco,
bem na cara do Morro da Caixa d’Água
e do Morro do Tuiuti.
O azul das aves é mais sombrio
que o azul do céu, mas sempre azul
conversível em comida.
Baixam favelados deslumbrados,
cevam-se no monturo.
Que morador resiste
à sensualidade de comer galinha azul?

14. Aqui, ali, por toda parte

As favelas do Rio transbordam sobre Niterói
e o Espírito Santo fornece novas pencas de favelados.
Morro do Estado ostenta sem vexame sua porção de miséria.
Fonseca, Nova Brasília (sem ironia)
estão dizendo: “Um terço da população urbana
selou em nós a fraternidade de não possuir bens terrestres.”
Os verdes suspensos da Serra em Belo Horizonte
envolvem de paisagem os barracos da Cabeça de Porco.
Se não há torneiras, canos de esgoto, luz elétrica,
e o lixo é atirado no ar e a enchente carrega tudo, até os vivos,
resta o orgulho de ter aos pés os orgulhosos edifícios do Centro.
Belo Horizonte, dor minha muito particular.
Entre favelas e alojamentos eternamente provisórios de favelados expulsos
( pois carece de manda-los para “qualquer parte”, pseudônimo do Diabo),
São Paulo cresce impertubavelmente em esplendor e pobreza,
com 20 mil favelados no ABC.
Em Salvador, os alagados jungidos à última condição humana
colhem, risonhos, a chuva de farinha, macarrão e feijão
que jorra da visita do Presidente.
No Recife...
quando se aterra o mangue
fogem os miseráveis para as colinas
entre dois rios. E tudo continua
com outro nome.

15. Indagação

Antes que me urbanizem a régua, compaso,
computador, cogito, pergunto, reclamo:
Porque não urbanizam antes 
a cidade? 
Era tão bom que houvesse uma cidade
na cidade lá embaixo.

16. Dentro de nós

Guarda estes nomes: bidonville, taudis, slum,
witch-town, sanky-town,
callampas, cogumelos, corraldas
hongos, barrio paracaidista, jacale,
cantegril, bairro de lata, gourbville,
champa, court, villa miseria,
favela.
Tudo a mesma coisa, sob o mesmo sol,
por este largo estreito do mundo.
Isto consola?
É inevitável, é prescrito, 
lei que não se pode revogar 
nem desconhecer?
Não, isto é medonho,
faz adiar nossa esperança
da coisa ainda sem nome
que nem partidos, ideologias, utopias
sabem realizar.
Dentro de nós é que a favela cresce
e, seja discurso, decreto, poema
que contra ele se levante,
não para de crescer.

17. Palafitas

Este nasce no mangue, este vive no mangue.
No mangue não morrerá.
O maravilhoso Projeto X vai aterrar o mangue.
Vai remover famílias que têm raízes no mangue
e fazer do mangue área produtiva.
O homem entristece.
Aquilo é sua pátria,
aquele, seu destino,
seu lodo certo e garantido.

18. Cidade grande

Que beleza, Montes Claros.
Como cresceu Montes Claros.
Quanta indústria em Montes Claros.
Montes Claros cresceu tanto, 
ficou urbe notória,
prima-rica do Rio de Janeiro,
que já tem cinco favelas 
por enquanto, e mais promete.

19. Confronto

A suntuosa Brasília, a esquálida Ceilândia
contemplam-se. Qual delas falará
primeiro? Que tem a dizer ou a esconder
uma em face da outra? Que mágoas, que ressentimentos
prestes a saltar da goela coletiva
e não se exprimem? Por que Ceilândia fere
majestoso orgulho da flórea Capital?
Por que Brasília resplandece
ante a pobreza exposta dos casebres
de Ceilândia,
filhos da majestade de Brasília?
E pensam-se, remiram-se em silêncio
as gêmeas criações do gênio brasileiro.

20. Gravura baiana

Do alto do Morro de Santa Luzia,
Nossa Senhora de Alagados, em sua igrejinha nova,
abençoa o viver pantanoso dos fiéis.
Por aqui andou o Papa, abençoou também.
A miséria, irmãos, foi dignificada.
Planejar na Terra a solução
fica obsoleto. Sursum corda!
Haverá um céu privativo dos miseráveis.

21. A maior

A maior! A maior!
Qual, enfim, a maior
favela brasileira?
A rocinha carioca?
Alagados, baiana?
Um analista indaga:
Em área construída
(se construção se chama
o sopro sobre a terra
movediça, volúvel,
ou sobre água viscosa)?
A maior, em viventes,
bichos, homens, mulheres?
Ou maior em oferta
de mão-de-obra fácil?
Maior em aparelhos
de rádio e de tevê?
Maior em esperança
ou maior em descrença?
A maior em paciência,
a maior em canção,
rainha das favelas,
imperatriz-penúria?
Tantos itens... O júri
declara-se perplexo
e resolve esquivar-se
a qualquer veredicto,
pois que somente Deus
(ou melhor, o Diabo)
é capaz de saber
das mores, a maior.


ANDRADE, Carlos Drummond de. Corpo. Rio de Janeiro: Record, 1984. p.109-124