Roberto Gomes
Este é um mundo sem heróis e sem loucos. Já
não se fazem loucos como antigamente, pois o discurso dos loucos não é
politicamente correto. Todos trazem no bolso uma tabela de débitos e créditos,
custos e benefícios, vantagens e investimentos. Calculam afetos e amizades,
lucros e perdas, negociam os favores dos deuses em preces de aluguel.
Sartre? Aquele sujeito pequeno e feio,
vesgo e roufenho, com suas centenas de páginas a respeito do ser e do
nada? Nada disso. O pensador da hora usa oitenta palavras, vinte e duas frases
feitas, duas ideias solitárias. É politicamente correto e não escandaliza a
ninguém. Ama o que todos amam, aprova o que todo mundo aprova, cada um tem
afinal seu direito a brilhar.
E Foucault? Não, um bicho muito louco.
Deleuze? De modo algum. Os editores estão em busca de quem selecione frases
otimistas mesmo em Schopenhauer ou no indefeso Pascal. Que o pensamento
seja prêt-à-porter, um pijama folgado, um chapéu de aba larga.
O pensador da hora é bem alimentado e
regiamente pago. É um homem feliz. Esguicha otimismo e espírito positivo. Nada
de Gogol, Machado de Assis ou Proust. Produz textos como Narciso ordenha a si
mesmo e extrai das tripas o livro mais digerível, a história mais palatável, o
consolo para todos os males, passados e futuros.
Quanto aos políticos, nada de visionários que
pregam no deserto. Os políticos devem ser embalagem pura, exterioridade
absoluta. São perfumados, bem penteados, barba feita, usam ombreiras agudas,
gravatas cintilantes, ideias toscas, verbo solto, paranoia triunfante. Nada de
idealismos. O mundo é assim mesmo. Homens práticos, objetivos, obtusos. Homens
que nos matam de rir e de fome.
Nas escolas não se deve aprender nada de
inútil. Ler versos, desenhar, escrever poemas, contar histórias, especular
filosofias, descobrir novas matemáticas e espaços geométricos inesperados –
tudo isto, que não ajuda ao acúmulo de riquezas, deve ser banido em favor da
utilidade. Saber assinar o nome e fazer as quatro operações é o que basta. Um
empregado deve dominar coisas simples. Um empregador, menos ainda. Um chicote
basta. Portanto, abaixo os teóricos, as especulações, a perda de tempo e
dinheiro.
E aprenda a se vestir. Os que podem se
vestir. A ordem do mundo é esta: vista-se para ser visto. Vista-se por
dentro e por fora – logo você não verá mais diferença entre o dentro e o fora.
Você é um envelope. Vazio.
Seu corpo é público e não passa de um bem de
consumo. Exiba-o como mercadoria. Escolha se é com barba ou barbicha, espete ou
raspe os cabelos, encha os seios com silicone, espiche a cara com botox,
exiba o que não é seu – quem compra não sabe. Sua pele é uma roupa como outra
qualquer, suas idéias e frases preferidas não passam de um cosmético destinado
a fazer amigos e conquistar pessoas. Aliás, não leia livros que contenham mais
de uma ideia. Só vai atrapalhar.
Mova-se por decisões simples. Veja o filme da
moda, ouça a música de duplas românticas, faça o vestibular no qual basta
preencher um formulário, escolha a profissão mais lucrativa –, estacione seu
carrão no imenso pátio da universidade e suspire: quatro anos é coisa que passa
rápido. Logo você estará livre para operar, na bolsa ou no bolso de alguém.
E não esqueça: como dizem as fornidas
moçoilas e os esbeltos rapazes que posam na televisão e nas capas de revista, o
que importa é o sucesso. O sucesso a todo preço e a todo custo – o deus que a
tudo preside. Se puder, faça poses para nus frontais – artísticos, intelectuais
ou morais, pouco importa. Importa é o sucesso. Aliás, não queira fazer coisas,
apenas divulgue que você fez isto ou aquilo, o que você fez não importa. Não
inaugure uma biblioteca, um hospital ou uma escola – mande cartas, e-mails,
cartazes e anúncios de página inteira dizendo ao mundo que fez o que não fez
nem fará. Importa o que sai na mídia. Se for político, não realize obras. Chame
a imprensa e comunique que está decretando que se faça tal obra – é o que
basta, o resto o povo esquece. Não aprenda a desenhar, a pintar, a compor –
faça logo uma instalação, uma exposição, um release.
Assim, de olho no sucesso, vá em frente. E,
sobretudo, não pare para pensar. Pode ser fatal.
* Roberto Gomes nasceu em Blumenau. Reside em Curitiba. Escritor, editor, tradutor e professor aposentado do Departamento
de Filosofia da UFPR. É autor, entre outros, de Crítica
da Razão Tupiniquim (1977),
hoje em décima terceira edição, a propósito da qual Darcy
Ribeiro escreveu, em Aos Trancos e Barrancos: "O
Brasil volta, finalmente, a filosofar".
> Texto retirado do site Criar Edições, do autor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário