sábado, 8 de fevereiro de 2014

EVALDO – EM NOME DO PAI E DO FILHO

José Augusto de Castro e Costa


Não necessariamente, mas instintivamente, seguindo os passos de conterrâneos antepassados, o cearense Augusto Gouveia, jovem ainda, todavia já curtido pelas secas e tocado pelo canto da Sereia, que convocava Sertão adentro, jovens para compor um grande Exército denominado “Soldados da Borracha”, tomara a decisão de partir para a Amazônia, ao final da terceira década do século XX.

Talvez não tenha levado em conta executar um plano de ida e volta, como alguns, a exemplo  do primeiro explorador, o lendário Comendador João Gabriel de Carvalho Melo, filho de Uruburetama, Ceará, que após a sua fuga, provocada por desentendimento com um tio fazendeiro rico, retornara ao sertão após vinte anos, já abastado e possuidor de grandes posses, para buscar a família e outros seguidores, a fim de dar continuidade a real colonização que iniciara no médio Rio Purus, mais precisamente nas adjacências da embocadura do Rio Acre adentro.

Logo que chegara a Rio Branco, o jovem Augusto percebera não haver dificuldades para amar sinceramente aquela terra que os nordestinos desbravaram, povoaram e defenderam do domínio estrangeiro, com sacrifício de inúmeras vidas, na decantada Revolução Acreana.

Sim, havia abandonado a família em busca de melhor qualidade de vida e estabelecera-se ali no Acre, primeiro como Seringueiro, depois como agricultor e pequeno fazendeiro, sentindo-se acreano de coração, mas certamente sem ter esquecido o distante torrão natal, embora não tivesse jamais regressado ao seu Iguatu.

A  ausência não explicada ou  propositada e a distância entre a sua família, no sertão, e o coração da Amazônia, motivou-lhe o desconhecimento de que em Iguatu, o alto falante na pracinha central, passara o menino prodígio, de seis anos, que vinha encantando os ouvintes entusiasmados, ao interpretar lindas canções da época.

Devido a falta de oportunidades em Iguatu, aquele garotinho, aos onze anos de idade, mudara-se para Fortaleza, com o objetivo principal de estudar, porém, sempre envolvido com a música, não obstante a atividade de feirante, que passara a exercer na cidade grande, como meio de sobrevivência.
Trio Nagô (Evaldo ao centro)
Foto Bossa-Brasileira

Passados quase dez anos na prática do fatigante e não menos estressante serviço diário  na feira livre de Fortaleza, Evaldo conseguira, afinal, aliviar sua qualidade de vida, ao ser contratado por uma rádio local, ocasião em que viera a formar um dos mais famosos trios musicais do Brasil o inesquecível “Trio Nagô”, com a participação efetiva de dois amigos, os alfaiates Mário Alves e Epaminondas de Souza, o EPAMI, parceiros das rodas boêmias.

O trio fizera tanto sucesso quanto uma das origens de seu nome (Nagô), inspirado no molho picante, feito de pimenta malagueta pisada com sal, camarão seco moído, quiabo, jiló e sumo de limão, tudo cozinhado na panela de barro.

Os ventos começaram a melhorar para Evaldo, quando o “Trio Nagô”, após representar o Ceará na Rádio Nacional, fora contratado pela Rádio Jornal do Brasil e, logo a seguir por boates cariocas e paulistas. Aos vinte anos Evaldo divulgara sua primeira composição (“DEIXE QUE ELA SE VÁ”), que logo tornara-se sucesso na voz marcante de Nelson Gonçalves. De ressaltar o vaticínio inserido na letra, visto nos versos:

 “pois  o dia em que ele parar
E pensar na maldade que fez,
Certamente ele há de voltar
Pro seu braço outra vez”...

De 1957 em diante Evaldo passara a colecionar sucessos, praticamente, em todas as suas inúmeras composições.

Paralelamente à atividade musical, Mário Alves ocupara-se do ofício da alfaiataria  e, para tal, abrira um atelier, situado na esquina da Travessa Carlos Sá, com a Rua Andrade Pertence, Bairro Catete/Flamengo, em que os altos do sobrado também serviria de residência para os três amigos, componentes do Trio Nagô. O sucesso, portanto, viera atrair a atenção dos vizinhos, que procuravam manter contatos com seus ídolos.

Um desses vizinhos, e seu admirador, o acreano Sálvio Montenegro, que morava na Rua Silveira Martins 140, então estudante no Rio de Janeiro, teve, posteriormente, que retornar a Rio Branco, a fim de prestar o serviço militar e, em lá permanecendo, foi presenteado pelo destino  como intermediador de uma das mais emocionantes histórias de reencontro de pais e filhos, envolvendo  justamente essa criatura maravilhosa: Evaldo Gouveia.

Frequentador casual da fazendinha Boa Água, “point” de entretenimento bastante procurado nos idos das décadas 1960/1970, situado  nas cercanias de Rio Branco,  que oferecia aos mais íntimos, como atrativo, banhos de açude, regado a cerveja gelada, e, como  tira-gosto, o peixinho Cará frito, Sálvio, ali estando, numa certa tarde de domingo, vira  aproximar-se o  proprietário e seu conhecido,  Augusto Gouveia, trazendo um exemplar da revista Manchete  e  acomodar-se, em um banquinho, junto ao grupo.  Com uma  expressão contida e sisuda, o velho sertanejo folheava a revista até deter-se numa foto de página inteira, ilustrando a reportagem ao lado. Tratava-se de Evaldo Gouveia, que passara a ser admirado pelas canções que começavam a guindar ao sucesso seus respectivos intérpretes, como  Altemar Dutra, Agnaldo Timóteo, Ângela Maria e muitos outros.

Quase parodiando o Pai Eterno, disse:

– Este é o meu filho!

O ambiente emudecera. Todos, em silêncio, porém, em conexão mental, passaram a observar minuciosamente, analisar cuidadosamente, e sentiram ser revelados os mínimos detalhes coincidentes nos traços do pai e do filho, mas sobretudo, as expressões refletidas no olhar de um e de outro. Não fizera-se necessário buscar mais o que provar. Como diria Machado de Assis: “quem quer que os vissem, os aceitariam por verdade, tal a expressividade e a verossimilhança dos pormenores”.

Quando Sálvio Montenegro, em viagem ao Rio de Janeiro, tivera oportunidade  de reencontrar Evaldo , tratara de colocá-lo a par do acontecimento, o que causara-lhe  um tremendo choque emocional, já que o artista considerava seu pai como falecido, em face  de jamais ter recebido  notícias de sua existência. Refeito do sobressalto e demonstrando uma reação de  dor e ódio profundo, cujos  motivos guardara em seu coração por toda sua trajetória de vida, ensaiou um desabafo, lamentando o fato de seu pai ainda  existir e referindo-se ao perverso abandono a que foram submetidos  sua mãe, ele, com três anos de idade  e seus dois irmãozinhos, mais novinhos. Sentira tanto a dor da crueldade,  que jamais pensara em perdoá-lo.

Atos e fatos relatados, no curso da conversa, Sálvio quisera saber se Evaldo aceitaria ir a Rio Branco, reencontrar seu pai. A primeira reação foi negativa, curta e grossa. Só em pensar vê-lo, dizia sentir repugnância.  Porém, com um pouco de insistência e ânimos serenados,  propusera-se a ideia de uma turnê ao Acre, com o “Trio Nagô”, o que a princípio,  fora aceito apenas  estudar-se  o assunto e que à partir daí os contatos seriam mantidos. 

Com o retorno do Sálvio Montenegro ao Acre, e mediante a colaboração dos amigos Hermano Diógenes (Manoca), Rufino Farias Vieira e  Dr. Ari Rodrigues, decidira-se  levar a efeito tal  propósito, acontecendo então, em determinado sábado, a apresentação do “Trio Nagô”, em ritmo de baile, no clube Rio Branco. 

No dia seguinte, um domingo, realizara-se o esperado reencontro de pai e filho, depois de mais de trinta anos separados, na Fazenda Boa Água, assistido por um pequeno número de convidados especiais que, em caravana, acompanharam o artista até a consumação daqueles fatos.

No trajeto para a  Fazenda Boa Água,  Evaldo Gouveia,  desculpara-se, antecipadamente, por possível  reação violenta, que infelizmente viesse a ocorrer. Ao chegar ao ponto do reencontro, notara-se  que o ambiente fora devidamente preparado a fim de que  os dois ficassem frente a frente,   para definir e tomar  suas respectivas posições.

No pequeno, humilde, porém agradável  bar, à beira de um lago, com  varandas ao redor, tendo ao fundo o balcão, aí postara-se  o velho Augusto Gouveia, portando um chapéu  de coro batido na testa e uma viola escorada ao lado.  Com a entrada do Evaldo,  um silêncio profundo tomara  conta do ambiente, quando os dois  encararam-se  por mais de um minuto, fixando-se olhos nos olhos.

No decorrer dessa cena, carregada de expectativa, angústia, apreensão, ódio e amor, à beira de  uma explosão de violência, o que se vira foram  lágrimas rolarem em ambas as faces,  e pai e filho apressarem os passos, um de encontro ao outro, abraçarem-se e chorarem copiosamente. Afinal, um era a cara do outro!

Triunfara nesse instante,  o sentimento maior do  amor paternal e filial e da certeza da felicidade de uma antiga criança triste, que após muitos e muitos anos,  como num sonho maravilhoso, abrira seus olhos, deparando-se com o seu ídolo e Pai Herói. Um verdadeiro despertar de um novo dia, para aqueles bem abençoados.

Os amigos expectadores, naquele momento de emoção ímpar, onde ouvia-se até o bater de asas das moscas, todos com os olhos marejados de lágrimas, não pouparam aplausos selando um encontro, dos mais emocionantes, acontecido em solo acreano.

Como era de se esperar,  Augusto e  Evaldo, pai e filho, a partir daí,  jamais se perderam de vista e de quando em vez, com o velho pai vivo, quer em Rio Branco, quer no Rio de Janeiro, quer em Fortaleza, estavam sempre juntos,  tentando recuperar o tempo perdido, que o destino caprichosamente os separara, apenas por alguns anos.

Evaldo, o filho, que gerara de suas entranhas cerebrais, criaturas musicais, visionara por certo, naquele instante, os Alguém Me Disse, Bloco da Solidão, Que Queres Tu de Mim, Sentimental Demais, Brigas, Somos Iguais...  e, visivelmente extasiado, dera mais um passo para, afinal, abraçarem-se, ao som de risos e banhados de lágrimas.

Assim, o Acre restara-se maravilhado em ter sido o palco daquele reencontro original, que tornar-se-ia indelével, na memória romântica dos mais autênticos menestréis acreanos.


> O texto integra a série História que o Acre Escreveu, que o escritor acreano José Augusto assina nesta página.
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