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terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

PRANTO PELA AMAZÔNIA E POR MANAUS

João de Jesus Paes Loureiro

 

“Nos últimos tempos                                    

Ando pensando

Que este país

Retrocedeu

4 ou 5 décadas(…)”

 

(Excerto do poema “Putrefação”, de Charles Bukowski. Precursor da poesia Beat nos EEUU).

 

 

 


É verdade, Bukowski.

Chego a pensar que os avanços sociais

os sentimentos bons

foram varridos pelos ventos intolerantes.

E recuamos não apenas 4 ou 5 décadas.

Mas até à Idade Média.

Volto a clamar no deserto, incansável

a subir os degraus da escadaria do poema:

 

Amazônia! Amazônia!

Quem te ama?

Não bastaram tantas mortes

na mão dos invasores d’além mar.

Tantas mortes.

Não bastaram nem bastam tantas mortes no campo.

Tantas mortes.

Tantas mortes na vida ribeirinha.

Tantas mortes.

Tantas mortes na paz de tuas aldeias.

Tantas mortes.

Tantas mortes nos refúgios quilombolas.

Tantas mortes.

Agora, são as mortes na cidade.

Mortes de homens e mulheres.

Tantas mortes de crianças.

A vida ainda em botão.

Tantas mortes para viverem apenas na saudade.

Não bastava o extermínio dos povos da floresta

desde as bárbaras invasões

dos autoproclamados civilizados.

O argumento mortífero das armas

e a caveira da morte em suas bandeiras.

O estatuto era o sangue derramado.

Escravizaram os reais donos da terra.

Na cruz crucificaram Tupã e os caruanas.

 

Amazônia! Amazônia!

 

Não bastava o abandono em que ficaste

por tanto séculos seculorum amem.

 

Tua riqueza retalhada

confiscada

em troncos vegetais.

Troncos humanos.

Sangrados músculos.

Coagulado látex.

A enriquecer a quem não trabalhava.

Não bastava e lei da morte na cobiça

da terra e seu tesouro mineral.

Não bastava devastarem há séculos

as vastidões sem males de tua terra

e plantarem nessa terra novos males.

Não bastavam os rios envenenados

pelos garimpos ilegais ou permitidos

matando ribeirinhos, águas e seus mitos.

Não bastava a natureza devastada

e a plantação de desertos em lugar.

Não bastava.

Não bastava Ajuricaba suicidar-se

em tua defesa.

A morte de Guaimiaba

flechas contra balas

no Forte do Castelo de Belém.

A matança de cabanos e de teus deuses

de tuas crenças.

A morte continuada

de Angelim, Chico Mendes, Doroty Stang

Padre Josino, Canuto, Paulo Fonteles, Kátia, Verônica,

de mulheres fora da estatística.

De tantos aldeados e aldeadas

invisíveis na floresta.

Não bastava.

Agora continuam mortes sem sentido

flagelando a cidade de Manaus.

Pátria de Ajuricaba e da etnia manaós.

Tanto pranto derramado.

Tanto adeuses no cais do nunca mais.

O riomar nasceu

de um olho d’água andino

no rosto da cordilheira olhando o céu.

Hoje é a imensa lágrima de Deus

rolando pelo rosto da Amazônia.

Vai encharcar o lenço azul do mar

e naufragar soluços no oceano.

Agora, feito praga do destino

o genocida Covid 19

com sua artilharia de várias cepas

e a logística ilógica do poder.

Não transfiram ao povo a culpa-crime.

A não ser para aqueles que aceitaram

aquela voz a dizer burlescamente

que é inútil usar a meia máscara

e que a Covid é apenas gripezinha.

Cadáveres empilhados como troncos

de árvores matadas na floresta.

A morte sendo o berço de crianças.

Estetoscópios de escutar a vida

passam a ouvir corações silenciando.

Missionário da vida

profissionais da saúde

com sua vida a enfrentar as mortes,

em uma terra que oxigena o ar do mundo

não tendo ar para salvar a sua gente.

Tantas mulheres e homens incansáveis

a ensopar de insônia  sangue a lágrimas

sua branca vestimenta de pureza,

que lembra lírios, garças e asas dos arcanjos.

E ter a morte o preço de salvar as vidas.

 

Oh! Meus Irmãos de Manaus.

 

Meus amigos e poetas e poetas.

Meus intemporais irmãos e irmãs no verso.

Oh! Thiago de Mello, Luiz Bacellar, Elson Farias, Astrid Cabral, Aníbal Beça, Aldisio Filgueiras, Márcio Souza, Tenório Telles, Milton Hatoum, Renan Freitas, Jorge Tufic, Neiza Teixeira, Marilene Corrêa, Marilza Foucher, Totonho Auzier, Isaac Maciel, Zemaria Pinto, José Seráfico, Graça, Dori Carvalho, José Maria – livreiro.

 

O que pode a poesia contra essa tragédia?

Talvez não possa nada.

O seu poder não impera em mundo de aparências.

Desconhece cotação na bolsa de valores.

Os invisíveis relâmpagos poéticos

Iluminam

a caminhada verbal deste poema.

A poesia tem o poder de outros poderes.

Seu poder

é celebrar a vida

a amizade a esperança e a utopia.

 

É celebrar o amor.

 

É garantir-nos o direito de sonhar.

Este poema

é meu coração em versos palpitando

para entregar a vocês

amigas e amigos de Manaus.

 

Ao povo da Amazônia.

 

Consolar as pessoas inconsoláveis nestas horas.

 

Oh! Manaus,

bela cunhã poranga da floresta.

Recebe este poema

coroa de saudade aos que se foram.

Confiança na vida aos que ficaram.

Uma flecha de esperança no arco da utopia.

E a certeza que temos de viver lutando

por essa terra sem males.

Pátria do amor e da poesia.

 

*Poema retirado do site: https://www.amazonamazonia.com.br

sábado, 5 de setembro de 2020

DESLENDÁRIO

 João de Jesus Paes Loureiro

 

No verde, verde medo, entre ciladas

e nos cipós ardentes das queimadas

enforca-se o uirapuru

na clave de seu canto.

 

Longe,

           no arco da preamar

a proa

           seta

                   investe contra o eterno...

 

Na canoa bubuiando acorda o anjo.

 

Erguem-se asas no ar...

                                      O além aninha-se nas velas.

 

Pálpebras de penas

                                gaivotas

                                              olhar do canoeiro.

 

Pelas margens sentenciadas

                                   o ronco de tratores esmagando

 

gerações atônitas, safras, sóis do meio-dia...

 

Amazônia! Amazônia!

A destroçada árvore de lendas.

A desmatada agenda de cereais.

O desmentido estandarte de minérios.

Outrora era Tupã lento ensinando

Jesus Menino a nadar entre as iaras.

agora o capital acumulando

a latifúndia razão

a primitiva

a concentrada estação da mais-valia.

E a desvalia do homem, atroz, desadorado

em relatórios, cifrões, mercadorias,

– adeuses presos em cárceres de calos –

Expulso de suas terras,

no ingênuo rio gêmeo de estrelas com essas noites.

 

Rio que já não corre puro em meus poemas

coroado de espumas, mururés.

Rio, pão líquido, trigal de escamas,

que alimentou de lendas o poemário

– piracema de ânsias, sílabas, espumas.

Rio agora de águas humilhadas,

com incessante rumor de morte às cabeceiras.

Rio ex-metafísico a correr entre os humanos

barrancos comprimidos da descrença.

Rio que naveguei no útero de tábuas,

da vigilenga, em busca do mistério.

Rio, paisagem ágil, andor, horizontal bandeira,

de meu reino de infância destronada.

 

Como é difícil falar do eu-profundo

quando canoeiros se perdem das águas

que se querem de todos, preamar;

como é difícil falar da forma pura,

quando o futuro mineral da terra

com sementes de chumbo se semeia,

entre horizontes de moedas delinquentes;

como é difícil falar do belo-belo

se há camponeses sangrando, mortes cruzes,

cemitérios, hortos na estatística,

cova e propriedade...

 

É hora em que o relógio das marés se desgoverna

e punhaladas buscam látex, minério

no coração de colonos.

A terra já não sabe quem nela trabalha,

pois, muito menos que flores, verdes, pão e safra,

é documento, é salário,

é subordinação do trabalho ao capital.

 

E morre o homem

no olhar agônico mundiante da boiúna,

enquanto, nos ouvidos do silêncio,

a solidão é uma notícia muda...

 

LOUREIRO, João de Jesus Paes. Obras reunidas (vol. 1). Rio de Janeiro: Escrituras, 2000. p. 101-103

Foto: jornal A Crítica

quarta-feira, 22 de abril de 2020

4 e 5 de abril. 2020

João de Jesus Paes Loureiro
Foto: Valmir Lima

Eu olho da janela e vejo o entardecer.
As mangueiras abarrotadas de garças.
E penso nestes dias
                                     E penso nestes dias.
Ah! Esse fardo de tristeza
curvando o ombro das horas.
Lamentações desgrenhadas
ecoam do beco das almas.
A manada dos carros
em fúria vai mugindo pelas ruas.
E retorna o silêncio,
essa esfinge indecifrável do medo.
As angústias espreitam das janelas.
Os presságios confabulam nas esquinas.
As palavras de amor
                                                engaioladas
no silêncio da voz, sangram suas asas
nos espinhos da flor da liberdade.
Quem diria que a Barca de Caronte,
a transportar a morte à outra margem,
teria agora novo comandante.
O rumor seco do medo rasga lento
o aveludado silêncio do crepúsculo.
Um belo rosto de mulher passa e sorri
talvez na direção de um nunca mais.
No tempo sem poesia
                    morrem sem ar as palavras sufocadas.
No rio ao longe a lua antiga
afoga-se encenando a terna Ofélia.
A brasa das estrelas apaga
                                                           esfria.
Em noites como esta
apenas o luar é o manto que recobre
tantos meninos e meninas de rua.
Há um cão sem dono a farejar o lixo.
O solitário bêbado cambaleia
                     a caminhar sem rumo feito o meu País.
O amor distante dói como um pecado.
Que mente humana será capaz de conceber
que algo pode ser maior que a vida?
Ah! Se eu pudesse ter um verso lâmina
capaz de degolar o preconceito.
Ah! Por que o poema não seria
para todos o pão de cada dia?
Ah! Por que os países do egoísmo
são insolventes com a democracia?
Passarinhos pousam nas plantas da janela.
A esperança tambatajá não morre nunca
pois vive a renascer e renascer.
                                                                 E renascer.
Eu fecho a janela e abro o celular.
Vejo Helena, minha neta e seu sorriso
no jardim de um ano e meio florescendo.
E no meu coração a brasa da esperança
torna-se chama,
                                            torna-se fogueira
de amor amor e amor por toda a humanidade
agora a renascer nessa criança.

_____________________
Poema publicado originalmente em: 

sexta-feira, 18 de maio de 2018

JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO: alguns poemas

JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO, prosador, ensaísta, um dos principais poetas da Amazônia. Nasceu em Abaetetuba, no Estado do Pará. Professor de Estética e Arte, doutorou-se em Sociologia da Cultura na Sorbonne, em Paris, com a tese Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Sua obra poética tem sua universalidade construída a partir de signos do mundo amazônico – cultura, história, imaginário – propiciando uma cosmovisão e particular leitura do mundo contemporâneo. Dialogando com as principais fontes e correntes literárias da atualidade, Paes Loureiro realiza uma obra original, quase uma suma poética de compreensão sensível do mundo por meio das fontes amazônicas, em que o mito se revela como metáfora do real.
Foto: Rodolfo Oliveira/Agência Pará

CÂNTICO VI

Quem comanda o rio ?
O mito ?
            A lei ?
                        A lenda ?
Onde perdeu-se o mapa,
o portulano ?
Em que meridiano, norte ou sul,
ou em que polo?
                        Amazônia
                        Amazônia
                                               Quem te ama ?
Quantas vezes, no tempo, o rio encheu-se,
e, quantas outras, vazou ?

O rio não tem consciência
de si mesmo,
no ermo de existir
                                   que é ser corrente.
O rio-em-si não é nem bom, nem mau.
É rio.
E sendo rio
                        inunda e seca,
pois inundar e secar
é o ser do rio
e sua incons/ciência de si mesmo.
A notícia ovula-se poema,
e nem se quer
ou canto
                        ou melopéia.
Quer olhar e dar voz ao que se mostra,
mais que real aqui, agora e sempre...
Mas Tirésias atônito pergunta
aos pálidos pajés sobreviventes:
– “Se o rio nada sabe de si mesmo,
     quem saberá do rio e de seus homens ?” p.37-38


CÂNTICO XI

“ Na jusante
levo-me.
                        Elevo-me ao mar
e
no entanto
            Mar
            sou Rio.
Assim me sei,
ciente do que sou
no que não-sou
                            consciente . . .

Certo não sou quem sou,
pois não me penso
e o existir
é minha forma de passar além . . .

Riomar.
Sou rio e mais o Mar
e
além de
              Mar e Rio
                              sou Riomar.
Cavaleiro e campo de batalha.
Arma, defesa e luta.
Sou isto e não aquilo
e sou também aquilo.
O istoaquilo de seres
erros
            res e ser
                              jusante . . .

E sou aquilo que me deixo
em várzeas verdes.
Conhecimento de que meu caminho
não é o meu caminho
e que correr é como sei de mim.
esta forma de ir, que é meu destino,
conhece-me infeliz,
pois que não sou em mim
e amo as águas destas águas noutras águas . . .” p.49-50


LOUREIRO, João de Jesus Paes. Porantim (poemas amazônicos). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.


DESLENDA RURAL V

A tarde
            – inversa chama –
medo sobre medo.
O sol cai em placas de metal
e níquel.
            Não há viagens.
                                               Há um rio ruindo.
                                               Giboiando rumos.
A cobiça acorda a pontaria.
A morte circundante é respirada, pisada, olhada.
Há vinte e sete de outubro,
topógrafos do Incra
e tropas da Polícia Militar
                                               foram emboscados.
Dois soldados morreram
e dois vão-de feridos.
Florentino Maboni foi detido,
como padre instigador da rebelião.
Foram vinte e sete dias de detenção,
injúrias e maus tratos.
Posseiros não contavam
com títulos de posse, documentos.
Em cada olhar carimbado de incertezas,
certidões de isolamento e solidão.
escrituras morais, pequenas propriedades,
a rocinha, a criação, a choça casa,
coisas nascidas do sangue,
                                               coisas como filhos.
Esses nadas que retém a mão suicida,
quando o inhambu põe a tarde em nossa alma.
Os grandes proprietários
                                   contrataram
advogados de ouro
e, precavido, alugaram a sanha
disponível de jagunços.
Pistoleiros que, na hora decidida,
mataram botos, uiaras, curupiras
pois, ao matar-se o homem, morre a lenda.
Depois, este silêncio em si.
                                               Cio de silêncio...
Águas, andores, coroas de espumas mortuárias.
O gesto de remar varando as eras
entre besouros ardendo sobre o ouro.
E o sempre violino do crepúsculo,
anoitecendo semibreves no barranco.
E a morte resgatando para o eterno,
igarités de fogo
                        barco alado... p.135-137


DESLENDA RURAL XI

Héveas, evas
            vulvas
abertas, gozo,
                        leite sangrado
sêmen recolhido
                        entre conchas e suor
e ervas de medo.

O seringueiro sangra-se
Sanguelátex.
                        Sanguessugas
                        espreitam o aviamento.
Humos e hímens
                        Deflorações pela várzea.
o empresário
                        o boto
            o capital
                        a lenda
Naufragadas ubás
                        fetos, naus tão frágeis
no placentário ventre das marés. p.155


POEMA

As palavras arfando entre virilhas
entre lábios
            cópulas de consoantes e vogais
Saboreadas palavras
                        defloradas palavras
túmidas palavras
                        ávidas
                                   oh! palavras
arfando umidamente entre pentelhos.
Suor. Calor. Odor. Linguagem. Gozo. p.190


Qual o poder do verbo que se ergue
em arma, em elmo, em alma?
                                               Eu penso, eu sinto, eu olho
e peço à garça voando na memória,
que escreva lentamente os meus versos alados
                                                           nas entrelinhas do mar... p.222


RECEITA MARGINAL

Deixem-no nascer.
O leito da indigência
                        é boa medida...
Sem leite vai crescer
e sem verduras.
A lama há de lhe dar
                        por sob as palafitas
a herança verminosa das marés.
É bom que tenha jeito de sambista.
Escolas não terá
                        e nem infância.
E a juventude, melhor que não floresça
pois seu caule de amor
                                   já foi castrado.
No dia em que sair
                                   de parceria com a lua
( revólver na cintura
                                   e decisão no olhar )
o presunto está pronto, temperado.
Embrulhem-no em manchetes policiais
para servi-lo quente
                                   no café da manhã p.233-234


AMAR

O sexocolibri
                        pousa
em tua corola
                        que se abre
                                               e
sus !
fecha-se.
            Oh ! flor carnívora. p.294


LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cantares amazônicos. São Paulo: Roswitha Kempf, 1985.