domingo, 27 de fevereiro de 2022

TRÊS POEMAS DE ALBERTO DA CUNHA MELO


AEROPORTO

 

Tempo gigantesco é um dia,

para quem perdeu a viagem,

o endereço para onde iria,

seu bilhete, sua bagagem,

 

para sua alma não vadia,

tempo gigantesco é um dia,

 

para quem sonhava distância

da própria história e não consegue,

sem asco, lembrar-se da infância,

 

mesmo com Deus por companhia,

tempo gigantesco é um dia. p. 415

 

CASA VAZIA

 

Poema nenhum, nunca mais

será um acontecimento:

escrevemos cada vez mais

para um mundo cada vez menos,

 

para esse público dos ermos,

composto apenas de nós mesmos,

 

uns joões batistas a pregar

para as dobras de suas túnicas,

seu deserto particular,

 

ou cães latindo, noite e dia,

dentro de uma casa vazia. p. 416

 

PARQUE 13 DE MAIO

 

As pupilas velhas disparam

seu rancor nos jovens casais,

que se abraçam no parque em festa,

por entre pombos e pardais,

 

pálidos de ressentimento,

aqueles anciãos se sentam

 

vencidos, nos bancos de pedra,

enquanto a noite, muda arqueira,

já lhes aponta a negra fecha,

 

por não saberem, na partida,

que obscena é a morte, não a vida. p. 422

 

MELO, Alberto da Cunha. Poesia completa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2017. 

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

DO RIO DE JANEIRO AO ACRE 1905-1906

Muitos eram os passageiros, dominando em numero os de 2ª classe, todos seringueiros. O termo “seringueiro” serve não só para designar o homem que, affrontando todos os perigos, vae dar o golpe na arvore de cujo leite se faz a borracha, como também para qualificar o proprietário de seringal.

Nos “gaiolas” só existem duas classes. Viajar em primeira é um sacrifício; em segunda, que será?

Entre o gado que é levado para a alimentação exclusiva dos passageiros de 1ª classe e officialidade de bordo, os que viajam em segunda, á falta de outro logar, armam suas redes e ahi se aboletam até o fim da jornada. Essa espécie de cama é tão usada na Amazônia que os passageiros de 1ª classe, tendo camarotes com algum conforto, preferem dormir em redes, de sorte que será caso de espantar ver-se um “gaiola” em viagem para o Alto Amazonas sem essas originaes e agradáveis camas.

A base da alimentação a bordo é a carne velha, como chamam os paraenses ao xarque, mais conhecido no Rio como carne secca e em vários Estados do norte como carne do Ceará e jabá. Todos os sabbados, á noite, no “Rio Purús” era abatido um boi, fosse qual fosse o número de passageiros. Das vísceras, a que especial cuidado merecia era o bofe, chamado de “bobó” pelos paraenses.

O cosinheiro de bordo era de uma fertilidade assombrosa no preparo dos pratos. Assim é que vi: “carne velha á japoneza” e “bobó á carioca”. No Rio nunca conheci tal prato e creio que no Japão se desconhece a carne secca.

Sobremesa, depois de Manáos, é um mytho; quem quizer uma lata de fructas em calda ou um pouco de vinho, pagará á parte. As refeições constam de café, ás 7 horas da manhã, com bolachas ou biscoitos ordinários e manteiga (só vi pão á mesa, depois que sahimos de Manáos, em Antimary e Empreza, e que pão!...); ás 10 horas, almoço; ás 4 horas da tarde, jantar, e... mais nada. Essas refeições são servidas á portugueza: cada um tira a quantidade que quer. Entretanto, os criados de bordo, de accordo com o armador e conhecimento de toda a officialidade do navio, teem sempre para vender aos passageiros chá, leite condensado, chocolate, café, biscoitos finos, doces, vinho, cerveja e até aguardente. Os preços por que esses domésticos vendem taes gêneros espantam. Por uma garrafa de vinho Rocha Leão, do mais ordinário que há no mercado, pedem 6$, e por uma lata pequena de peras em calda, 3$ e mais, quando em Belém se compram esses artigos por 2$ e 800 réis, respectivamente!


Note o leitor que esse tratamento a que acabo de me referir é o que se dá ao passageiro da 1ª classe; quanto ao modo por que são tratados os de 2ª, apenas sei que lhes dão de manhã café ou matte com bolachas e á tarde escaldado de carne secca ou carne secca com feijão; do boi que se abate aos sabbados elles somente sentem o cheiro da carne...

O tratamento que o proprietário do “Rio Purús” dava aos seus committentes era igual áquelle que os outros armadores dão aos seus freguezes. Nesse ponto e no preço das passagens e fretes elles andam de accordo...

Só um individuo que tiver muita força de vontade poderá conter o riso por occasião das refeições. Vi innumeros proprietários de seringaes, possuidores de muitas dezenas de contos e ás vezes centenas em deposito no Banco do Pará, tratando-se mutuamente de major, coronel, tenente-coronel e capitão, botaram farinha na sopa, cortaram em cruz a laranja sem descascal-a, levarem a faca á bocca, introduzirem no assucareiro a colher com que provaram o café, etc. etc. Palitar os dentes, dando estalidos com a língua e fumar á mesa, onde outras pessoas continuavam ainda sua refeição, são cousas tão communs, vícios quasi tão generalisados, que passam desapercebidos.

Custando a passagem de Manáos ao Acre 360$ em 1ª classe e gastando o navio no trajecto de 15 a 20 dias, conforme a carga a levar para os portos intermediários, dada a qualidade má da alimentação, é uma exploração que os armadores amazonenses e paraenses exercem sobre seus freguezes. Vá que cobrem tal quantia, tendo em vista os preços dos alimentos e a riqueza da zona, mas, seja um pouco humanos e deem mais conforto aos passageiros.

 

TAVARES, J. Do Rio de Janeiro ao Acre 1905-1906. Rio de Janeiro: Typ. Revista dos Tribunaes, 1921. p. 121-124

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

NOVA SUBÚRBIOS: poemas de Aldisio Filgueiras

Nova subúrbios (Valer, 2008, 2ª ed.)

Aldisio Filgueiras

 

o fim do mundo, já

se pode vê-lo, e se

revela, a curto prazo

no rio e na rua.

 

                A pretexto

o circuito das chuvas

varre com apetite

o aluguel dos quintais

para o olho da rua p. 30

 

 

            A alegria

derruba impostos

e atropela

com sua mudez

de farrapo

os discursos

e as seitas de cada esquina

 

porque se existe ordem

tudo está no fim da linha:

 

         a fome

         dos homens

         (qualquer fome

                          dos homens)

 

         envenena

         as formigas

         e a terra. p. 40

 

 

O riso que esconde

e revela

uma natureza

sem dentes e sem

dinheiro

quer lembrar

que existe ali

onde.

 

         O subúrbio é um aterro

         sanitário

         de onde oficiais

         de justiça despejam          (ontem um

         a exclusão dos campos        deles bebeu

         e das fábricas                comigo e não

                                                   estava feliz)

         mas tudo são ordens. p. 56

 

 

De tanto que veste

e despe a floresta

(ora mato ora mata)

em concreto armado

de unhas e dentes de aço

a cidade solta o verbo

matar em primeiro grau

e o declina

        dinheiro

        dinheiro

        dinheiro

na camisa das massas

como uma griffe

 

        assassina. p. 69

 

 

E como são pequeninas

as bronquites do amor

que aliciam multidões

de cegos nas esquinas! p. 106

 

 

Tudo termina na água

onde começa a viagem

da palavra e do homem.

Os bárbaros

barcos barrocos.

O exército de olhos

que sobe primeiro

o barranco do cais.

E depois, os pés

molhados e o medo

faminto de paisano

no convés das calçadas. p. 115

 

 

Nem mamelucos nem cafuzos

cabocos mansos também não

muito menos índios letrados

nem nordestinos selvagens

tataranetos de holandeses

filhos de padres mulas-sem-

cabeça judeus errantes árabes

todos mortos como ciganos

armados de facas nas mãos

 

todos mortos como ciganos

pregados na cruz para nos salvar p. 130

 

 

E logo o olho se apruma

já quase vesgo, meu Deus!,

por entre as linhas tortas

dos cronistas e viajantes

para ouviver nos berreiros

civis: cidadãos ou morte!

 

E as novidades dos outros

de toda sorte: subúrbios!

 

Todos mortos como cabanos. p. 132

 

                                   Manaus,

um dia desses um ano desses

 

Amadas crionças

foferas minhas

e filhotes idem

se vocês não se conformam

como é o figurino cristão

eu trago vocês todos e tranco

em Manaus até o Juízo Final

e vocês aprenderem o bê-a-bá.

Daí que adeus rios e florestas

canibais mundo feliz e tudo

mais onde cantam os sabiás.

Vocês não bem sabem

ainda o que é bom pra tosse

quando se chega em Manaus

como eu cheguei sem um cu

pra dar de troco embora vocês

saibam melhor com quantos paus

se faz uma canoa daquelas gran-

des.

Mundo desempregado é a oficina

do diabo. Estoilhes avisando

e quem aviso amigo é.

E aí, tudo bem?

Mandem logo notícias boas. p. 137

 

FILGUEIRAS, Aldisio. Nova subúrbios. 2.ª ed. Manaus: Valer, 2008.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

UWA’KÜRÜ - DICIONÁRIO ANALÍTICO - Volume 6

Encontra-se disponível, em PDF, o livro “Uwa’Kürü - Dicionário analítico - volume 6” (baixe aqui), com organização de Gerson Rodrigues de Albuquerque e Agenor Sarraf Pacheco, publicação em conjunto da Nepan Editora e Edufac, ano de 2021.

Abaixo, o sumário dos artigos.


Sumário

 

APRESENTAÇÃO 7

AMAZONAS 9

Marinete Luzia Francisca de Souza

ARTISTA LOCAL 18

João José Veras de Souza

GEOPOESIA AMAZONIAL: RAIZAMAS E LIVROS INVISÍVEIS 34

Augusto Rodrigues da Silva Junior

Sara Gonçalves Rabelo

Marcos Eustáquio de Paula Neto

IRMÃO JOSÉ DA CRUZ 52

Edivan Vasconcelos da Silva

LAMBADA 64

Jamila Nascimento Pontes

MANCHINERI – DO GUANABARA 91

Soleane de Souza Brasil Manchineri

NOKE KOI 144

João Batista Nogueira Cruz

PAD BOA ESPERANÇA 168

Cícero Dantas dos Santos Filho

PUPỸKARY – CAMICUÃ 205

Kamara Kymiu

[Valdirene Nascimento da Silva Oliveira]

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES 223

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

FEIO É O TEMPO! SOBRE A EXPOSIÇÃO AFLUENTES AQUARELÁVEIS

João Veras

Para Ronaldo Rhusso


É afirmar o óbvio dizer que a Covid-19 tem deixado marcas profundas nas nossas vidas individuais e sociais. O seu contexto-efeito, essa pandemia que não quer acabar, vai mudando nossa forma de viver ante a plena insegurança da vida que insiste e de tanta dor que tem causado.

A arte produzida neste período não tem como deixar de revelar como os artistas compreendem, enfrentam e reproduzem, em seus artefatos, esse tempo.

Três artistas plásticos do Acre – Danilo de S’Acre, Ueliton Santana e Darci Seles - estão realizando, até 17 de fevereiro, no Salão de Exposição do Sesc-Centro, uma coletiva, a que nomearam de Afluentes Aquareláveis.

Todavia, o mote do evento, pelo que se avista a princípio, nada tem a ver com esse tempo pandêmico em que estamos vivendo. Estão só apresentando suas experiências com uma técnica de pintura, a da aquarela. Estão, portanto, só falando do processo, dos materiais, da forma. Suas afluências – concentrações – ao mundo da técnica de se pintar aquarela.  É o que parece.

Adentrando nos temas que o cartaz do evento indicia, também não se ver referência temática relacionada diretamente ao que se passa de tão absurdo. Parece que não estão interessados em retratá-lo em suas obras. Observando numa distância temporal, eles parecem dizer ou que nada acontece ou que, sobre o que acontece, não é motivo para se importarem. Suas preocupações seriam outras: fazer experiências técnicas na arte de seus ofícios estéticos...

Isto seria uma espécie de fuga, uma negação? Precisamos observar com mais acuidade o que está aos olhos. Há algo a se revelar por trás do sorriso de Mona Lisa? Quero saber.

O que percebo é que não será exatamente por meio do que tematizam as obras o que irá cumprir o papel desanuviador que me interessa aqui. Nesse sentido, não é a toa que o título da exposição – Afluentes Aquareláveis - trata justamente da técnica. Por isso, penso que será precisamente por ela e seus resultados concretos na tela – assim como em todo o ambiente/contexto da galeria - o que irá revelar a percepção que os três artistas têm desse momento em que vivemos agora. Se de fato o consideram.

Podemos começar a interpelar pelo cartaz (foto 1). Como o vejo, ele, em si, diz muito.

É um cartaz cuja informação do evento se mostra literal. Do tipo seca. Fundo escuro com imagens separadas de três das obras da exposição, uma de cada expositor. Título da exposição. Nome dos artistas. Data e local de sua realização. Como quem diz: é isso que você vai ver lá. Um cartaz por demais objetivo, direto, claro, didático, sem meias palavras.  E não é para ser assim? Sim! No entanto, não vi nele sedução, um apuro estético. Falo de fealdade. E me perguntava: porque ele haveria – como um cartão postal, um convite, uma conquista - de ser feio?

Ainda no cartaz, vi que as imagens das obras trazem uns tons meios borrados, enodoados, encardidos, induzindo falhas. Ainda não sabia dizer se pela “má qualidade” da foto ou da própria tela, o que dava a ideia de “mal acabadas” ou de efeitos não previstos como toda tela enodoada parece indicar.

Esclareço que, por esta minha primeira impressão, eu estava tecnicamente negligenciando o fato de que o que caracteriza os efeitos da aquarela como técnica são as tensas nuvens que se movem transparentes em campos espaciais de cores fracas, meio fortes, insossas, literalmente aguadas, no conjunto. Então, eu, particularmente, talvez por isso - por achá-las “mal acabadas” - não estava apreciando aquarelas como deveria.

Vi uma terceira razão, tão subjetiva quanto. As três obras do cartaz são taciturnas. A imagem abstrata e fria numa impermanência de traços e cores que se desintegram sombrios (a de Danilo). O perfil de um(a) menino(a) negro(a) de expressão fortemente soturno como quem chora (a de Darci). Uma mulher sem rosto em posição corporal fechada como quem está triste, insegura, numa atitude de espera (a de Ueliton). Na exposição, esta obra de Ueliton sofre alteração. Desta feita, a mulher do cartaz ganha na parede um rosto de traços indígenas e uma melancolia ainda mais flagrante.

Eu estava, já ali diante do cartaz, incomodado com a sua forma/disposição/conteúdo. Parei no incômodo. Passou. Não fui à abertura da exposição. Não quis correr risco. A pandemia continua a toda. Fui depois. Eu precisava colocar em questão a impressão que tive ao ver o cartaz de divulgação. Queria interpelar no espaço da galeria. Ele estaria representando, de fato, a exposição ou foi só uma “má escolha” de quem o produziu?

Confiro. Concluo. Fato. O cartaz representa com rigor o sentimento da exposição. Foram as escolhas de quem o fez baseadas com justeza no espirito comum das obras em sua relação com o espirito do tempo em que vivem os artistas. Porque digo isso? Vamos à galeria.

A galeria (foto 2) se apresenta inteira nos seus quatro quantos com fundo de cor escura recebendo as obras linearmente enfileiradas em toda a sua extensão. Sinto uma urgente impaciência no processo de sua montagem. Grande parte das obras não está emoldurada. Quase um desleixo? Vejo a galeria como um vão sem movimento. De disposição espacial apática. Uma preguiça com tom de desesperança. A coletiva não tem programa, prospecto ou qualquer orientação textual. No seu espaço, nenhuma palavra além das peças plásticas. O que não queriam nos dizer se não pelo todo? E uma das obras estampa como pista o comovente título “Poéticas das ilusões felizes IV” (De Danilo). Ilusão como delírio, burla, decepção. Esperança vã.

Tateando o espaço vejo telas “borradas”, “aguadas”, transluzentes de abstratas perspectivas taciturnas... Quase sem gente - sem felicidade (em Danilo); de pinceladas tão fortes como gritos cortantes em tons indo para os escuros lambuzados... De vidas e paisagens isoladamente distantes (em Uelinton), e de tons luminosos demais - bem calados de tanto - em seus corpos mofinos de uma erótica frustrada (em Darci).

Tudo isso não é senão um estado pandêmico em espírito?

Ninguém escapa do tempo em que vive. Não importa se em movimento ou parado. Não importa se o ignora. Não é uma questão de não querer estar nele. O tempo não abandona, não menospreza nada e todos estão inexoravelmente nele incrustados. De uma forma ou de outra, inapelavelmente, todos nós estamos imersos no agora, o tempo pandêmico. Por isso quando nos manifestamos, desejando ou não fugir dele, ele se apresenta incontestável.

Pela minha percepção das percepções dos artistas - a minha leitura delas em suas leituras do tempo - eis o estado/ordem da pandemia impresso em Afluentes Aquareláveis.

O cartaz é fiel. A exposição, arte. Feio é o tempo.

 

João Veras

10/02/22

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

O HOMEM QUE SE CASOU COM UMA CIDADE

Hélio Rodrigues da Rocha

Adjunto do Departamento de Língua Inglesa na Universidade Federal de Rondônia (UNIR)

 

RESUMO

 

A existência de Lábrea, cidade situada ao sul do Estado do Amazonas, à margem direita do rio Purus, é resultado do trabalho incansável do explorador Antônio Rodrigues Pereira Labre. Foi no ano de 1869 que esse maranhense subiu o rio Purus e, depois de se apropriar das terras dos indígenas Paumary e Apurinã, fincou o marco do que viria a ser a Vila de Lábrea. Assim, neste texto faz-se uma historicização de alguns tópicos sociais, políticos, econômicos, etnográficos e identitários dessa comunidade amazônica, em especial sobre a vida e o tempo de Antonio Rodrigues Pereira Labre, um dos principais colonizadores do rio Purus, “onde, a 1º de fevereiro de 1871 assentava os fundamentos da actual Villa da Labrea, a séde do município e comarca do Purús creados pela lei provincial n. 523, de 14 de maio de 1881 a que tenho consagrado todo esforço de minha actividade” (LABRE, 1887, p. i). Pelo exposto, é apresentar tanto o explorador e político da era provincial, Pereira Labre, quanto a cidade amazônica que ele sonhou, fundou, cortejou, governou e amou.

Palavras-chave: Labre; Política; Construção de cidade; Cidade de Lábrea.

 

Introdução

 

Uma cidade nasce, cresce, ilumina, aquece, alegra o coração do viajante, acolhe, envaidece, sofre, recebe aplausos, homenageia, frutifica e vive na memória de seus filhos; ela é fruto de uma ideia, a de fundação de um centro político administrativo. É às cidades, que os humanos, em busca de conhecimentos institucionalizados e aplicados, vão e se fixam, nem que seja por alguns anos. Este texto procurará demonstrar como se constrói, como foi fundada e edificada uma cidade amazônica.

A existência de Lábrea, a princesinha do Purus, cidade situada ao sul do estado do Amazonas, à margem direita do rio dos antigos Purupuru, é resultado do trabalho incansável do advogado, político e explorador Antonio Rodrigues Pereira Labre. Foi no ano de 1869 que esse maranhense subiu o rio Purus e, depois de se apropriar das terras dos indígenas Paumary e Apurinã, fincou o marco do que viria a ser a Vila de Lábrea, a paixão de sua vida e o seu maior feito. Assim, neste texto faz-se uma historicização de alguns tópicos sociais, políticos, econômicos, etnográficos e identitários dessa comunidade amazônica, em especial sobre a vida e o tempo de Antonio Rodrigues Pereira Labre, um dos principais colonizadores do rio Purus, “onde, a 1º de fevereiro de 1871 assentava os fundamentos da actual Villa da Labrea, a séde do município e comarca do Purús creados pela lei provincial n. 523, de 14 de maio de 1881 a que tenho consagrado todo esforço de minha actividade” (LABRE, 1887, p. i). Como dito, o objetivo principal é apresentar tanto o explorador e político da era provincial, Pereira Labre, como também a cidade amazônica por ele enamorada, cortejada, edificada, governada e amada.

Antonio Rodrigues Pereira Labre nasceu na fazenda “Suçuapara”, que ficava a cerca de 2 quilômetros do povoado de Passagem Franca, no Maranhão – no dia 01 janeiro de 1827 – o primogênito do casal Bento José Labre e Joana Batista de Freitas. É esse filho varão do ex-seminarista Bento José Labre que, aos 54 anos de idade, decidiu se instalar nas terras firmes de Amaciary, ou Maciary, à margem direita do rio Purus, chamado assim por causa dos povos originários que navegavam em suas águas, os Purupuru. Obviamente, outros grupos indígenas circulavam por esses territórios, entre outros, os Paumary, Apurinã, Zuruahá, Catuquina, etc.

Antonio Rodrigues Pereira Labre (Imagem: Revista Ilustrada, 1888)

Todavia, para que Antonio Rodrigues Pereira Labre ficasse sabendo das explorações que estavam ocorrendo na Província do Amazonas e viajasse para o rio Purus, foi decisivo o encontro, em Belém do Pará, com Braz, “filho de Manoel Urbano da Encarnação, na casa comercial do Visconde de Santo Elias (Elias José Nunes da Silva & Cia), nos primeiros meses de 1869” (CORNWALL, 2017, p. 49).

Fazia certo tempo que Manoel Urbano explorava o Purus e seus afluentes e já havia aberto um seringal na margem esquerda daquele rio, onde residia com a esposa e alguns filhos. Tal lugar era chamado Canutama. Dali Manoel Urbano partia tanto para a cidade de Manaus, onde mantinha contato com muitos exploradores e alguns políticos, quando navegava para o interior dos rios amazônicos em busca de produtos extrativistas e arregimentando grupos indígenas para as aldeias localizadas às margens dos rios maiores. É por meio desse desbravador amazonense que Labre se fixa na região.

Ao contrário de seu anfitrião, Labre era um homem das letras; conheceu o alfabeto provavelmente com o seu pai ou um tutor, pois “reconhecendo os talentos de seu filho, os pais procuraram dar a maior atenção possível a seu preparo intelectual desde a infância” (CORNWALL, 2017, p. 17). Provavelmente, entre os anos 1843–1848, Labre cursou Ciências Sociais e Jurídicas no Rio de Janeiro. De volta ao Maranhão, se interessou pela política e “em 1859, com 32 anos de idade, assumiu como presidente interino à Câmara Municipal de Passagem Franca. Em 1861-62 foi indicado como Delegado da Instrução Pública nesse município de Passagem Franca” (CORNWALL, 2017, p. 18).

Aos 40 anos de idade, solteiro e sem filhos, Labre faz uma viagem que pode ser chamada de pedagógica, considerando-se o que ele vai colocar em prática após o retorno ao Brasil de volta da Europa e dos Estados Unidos. Foi nessas cidades estrangeiras que Labre viu locomotivas, telégrafos e a imprensa operando com toda a ciência dos homens das letras.

 

O telegrápho é o mensageiro das communicações para todos os pontos do paíz, por mais insignificante que elle seja, pondo-os em contacto immediato com os grandes centros no curto espaço de alguns minutos; e todos commumente com toda Europa pelo cabo telegraphico atlântico, publicando-se as notícias diárias, e negócios importante de todas as praças, que interessam. Nas grandes cidades os principais hoteis, repartições publicas, e os grandes estabelecimentos têm o seu escriptorio telegraphico privado.

Em qualquer lugar que se levante uma povoação vem a via férrea, o fio telegraphico e a imprensa, os tres condutores da civilização e do progresso, e estabelecem residência fixa, senão perpétua. (LABRE, 1867, p. 6).

 

Pode-se inferir do trecho citado que a cidade, tanto no olhar de Labre, como no de outros cronistas de meados do século XIX, é a célula da civilização por excelência. Ao escrever sobre a representação da cidade, Ramos afirma que “a cidade era um espaço utópico, lugar de uma sociedade idealmente moderna e de uma vida racionalizada” (RAMOS, 2008, p. 137). O conceito cidade, enquanto “vida racionalizada” pode ser lido etimologicamente, na concepção de Ramos (2008), conjuntamente com o conceito de “civilização”. Em Labre a cidade está estritamente ligada ao de progresso, de ordem, o espaço geográfico próprio para a significação da vida em sociedade; é a manifestação da ação humana versus natureza; é a dominação de espaços vistos como devolutos, porque Labre ignorou os grupos nativos, seus territórios e suas territorialidades, ou as paisagens, a vida e a memória, arquivo histórico de inúmeras culturas ameríndias, dentre outras.

É ignorando essas territorialidades que o “fundador de cidade”, Labre, se apossou das terras da atual sede municipal de Lábrea e fundou a cidade de seus sonhos. Pessoa nãograta na província do Maranhão, por ser um entusiasta das artes libertárias, tendo em vista que as campanhas abolicionistas marchavam firmes nas províncias do Ceará, Paraná, Amazonas e Maranhão – embora esta última tenha sido grande centro importador de escravos – Labre aceitou advogar a causa de 480 escravos, ganhando a questão (CORNWALL, 2017, p. 20).

Entre outros acontecimentos em Passagem Franca, o que certamente influenciou na decisão de Labre para deixar o Maranhão e viajar para o Pará e dali para o Amazonas, foi a causa de libertação de escravos. Assim foi que, depois de haver defendido a causa desse grupo de escravos, o presidente daquela província, grato pelo feito de Labre, quis recompensá-lo pelo grande trabalho humanitário e, ao ficar sabendo do sonho de Labre – que era fundar uma cidade e explorar as riquezas do Amazonas – concedeu-lhe ajuda em homens, armas, munição, mantimentos e navio a vapor para a grande empreitada (FERRARINI, 2009).

E assim, entusiasmado com a empreitada e fascinado pelo mundo amazônico puruense, Labre fincou os alicerces daquela que seria a sua maior conquista, o seu maior feito: a fundação da cidade de Lábrea. De fato, Labre não somente fundou essa cidade, mas explorou rios e terras da região do Purus, do Acre, do Beni, Orton e muitas outras terras. Um ano após a posse da terra firme de Amaciary, Labre publicou um opúsculo sob o título Rio Purús: notícia (1872), dedicado ao povo, mas em especial aos que quisessem se estabelecer no rio Purus e explorar as riquezas desse monstro caudaloso que deságua no rio Amazonas. De acordo com as palavras de Labre,

 

Este escripto é destinado ao povo, e especialmente, áquelles que quizerem se estabelecer no Purús, já com o fim de explorar e colher partido das fontes de riqueza naturaes, em que abunda este país, e já para auferir vantagens da industria agraria, onde as terras são de uma fertilidade prodigiosa. Aos homens de sciencia, a quem acato como divindades terrenas, peço desculpa dos defeitos e faltas d’este acanhado e humilde fructo de meu trabalho (LABRE, 1872).

 

Em seu livro-convite, o explorador maranhense apresenta um inventário das águas, dos peixes, das frutas, dos nativos, das florestas e dos lagos, das praias e dos quelônios, das terras, dos campos naturais, da probabilidade de prata e ouro, em suma, Labre apresenta “um novo mundo, onde se acha a raça do pae Adão por aqui dispersa, e ainda com os mesmos hábitos e costumes do velho papá, pois ainda não foram expulsos de seu paraíso” (LABRE, 1872, p. 16).

Sobre esses povos nativos, grupos nômades e semi-nômades que habitavam a região, Labre escreve várias páginas em que faz uma breve etnografia dos Paumary e Apurinã do rio Ituxy, mas também enumera as “tribos” do baixo, médio e alto Purus, a saber: Mura, Curuhaty, Simaniry, Catuquina, Cipó, Pamanan, Simarunan, Caripuna, Catauichy, Paumary, Jamamady, Pamanan, Caxarary, Uatanary, Jubery, Ipurinã, Matenery e Canamary.

Na verdade, Labre afirmou em seu opúsculo que todo o vale do Purus era habitado por grupos numerosos e “de índole perversa e de maus instintos”, o que faz com que ele faça uma viagem a Manaus para buscar armas e munições para proteger os exploradores e conseguir se fixar no lugar em que fincou o seu barracão, uma capela e as casas para os seus trabalhadores. Cornwall (2017) afirma que

 

O local que Labre denominou ‘Lábrea’ chamava-se “Amaciari” e era habitado pelos Paumari. Estra tribo indígena gostava de morar em cima de água. Caça na terra firme, mas não é conhecida como boa na caça. Pesca nas águas. O grupo domina totalmente este elemento... e Labre e seus homens recorreram ao “artigo 44 do código penal”. A carabina Winchester era o 44. (CORNWALL, 2017, P. 53).

 

O controle absoluto da região era o principal interesse de Labre. Todavia, para a formação da sociedade labrense, contribuíram vários grupos humanos, os negros levados pelo explorador maranhense, algumas famílias de Caxias, de Passagem Franca e região – que foram aliciados por Labre – e os indígenas com os quais manteve contato e negócios, principalmente os Paumary e Apurinã, que ainda hoje moram nas periferias da cidade ou em suas aldeias no Ituxy, Passiá, Marí, Caititu, etc. Comumente, pode-se ver vários indígenas andando em grupo pelas ruas da cidade, mas grande parte da população atual também é descendente, ou de ascendência de cearense, principalmente retirantes da grande seca do Ceará de 1877 e 1878 (CORNWALL, 2017).

Para fundar essa cidade movimentada, repleta de ruas, de gentes, animais domésticos, - grande parte abandonados por seus donos - lojas, armazéns, bares, hotéis, escolas, quadras esportivas, igrejas, feiras, agências bancárias, mercados e supermercados, lanchonetes, padarias, o fundador se inspirou em cidades europeias e estadunidenses. O deslocamento da viagem foi o que permitiu a Labre, esse viajanteintelectual, visualizar um futuro que deveria chegar para o Purus. Lábrea seria, portanto, uma célula de uma ‘civilização’ aos moldes europeus. O mapa imaginário da cidade por ele sonhada assumia as feições de uma Urbi com direito a teatro, escola, igreja, câmara municipal, cadeia, biblioteca e imprensa. Todavia, tudo isso somente seria possível com o ingresso de Labre na política provincial e mediante os seus escritos desenvolvimentistas como também de suas posses financeiras.

Das andanças a pé, de canoa e no lombo de burro nasceram os escritos de Labre. Como político da província do Amazonas, pois foi deputado nos idos de 1880-1881, ele elaborou e fez aprovar vários projetos voltados para o desenvolvimento da sua cidade. Entre esses projetos podemos citar o de abertura de uma estrada de Lábrea para a foz do rio Beni, tendo em vista que já havia fundado uma fazenda de criação de gado nos campos naturais de Puciary, que deveria servir como ponto de apoio à empreitada. É desse projeto que nasceu a estrada de Lábrea a Humaitá, no rio Madeira. Há também o projeto de abertura de escolas na cidade no ano de 1880. Nas palavras de Cornwall, “a lei nº 482 de 29 de maio de 1880 criou cinco escolas, uma para atender crianças do sexo masculino e outra do sexo feminino em Lábrea” (2017, p. 111).

Ainda de acordo com Cornwall, quando o bispo do Pará, Dom Antônio de Macedo Costa, passou no Purus, mostrou o seu apoio indicando Lábrea como freguesia. É a partir dessa indicação que Francisco Leite Barbosa, natural de Aracati, Ceará, assumiu o posto de primeiro pároco de Lábrea, tendo servido como missionário de Cristo ali durante 30 anos. Um de seus feitos foi a invenção do “casamento pelo rumo”, algo que ainda continua vivo na memória coletiva do povo labrense. Esse “casamento pelo rumo”, de acordo com Cornwall, ocorria “quando um seringueiro o procurava para tratar de matrimônio e a noiva não vinha com o cidadão, o sacerdote simplificava o sacramento: pedia o rumo certo da barraca da eleita e virando-se para a direção da mesma, prenunciava o conjugo vobis...” (2017, p. 127). Outro grande feito foi a arrecadação de dinheiro, durante anos, para a construção da matriz da cidade, a catedral Nossa Senhora de Nazaré, padroeira da cidade.

Retornando aos escritos de Labre, podemos afirmar que ele escreveu, além de o opúsculo Rio Purús (1872), o Itinerário de Exploração do Amazonas à Bolívia (1886) e também A seringueira (1895), conforme registra Sebastião Ferrarini (1981). Duas conferências feitas por Labre na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro também estão anexadas ao livro Coronel Labre (ROCHA, 2016), como também duas crônicas das viagens desse maranhense e um trecho de um estudo etnográfico sobre os indígenas Catauchys, publicado no Jornal do Comércio de Manaus.

Os registros discursivos de Labre, a meu ver, instituem o lugar, a paisagem, o espaço puruense e, por mais que contenham representações, são resultados da realidade ‘concreta’ com a qual se deparou o viajante fundador de cidade, o homem que se casou com a cidade cognominada “princesinha do Purus”, certamente, à Caxias, que era chamada “a princesinha do sertão maranhense”.

No entanto, se a visão precede o conhecimento e o conhecimento a escolha, Labre não escolheu como ver a região. Ele a intuiu a partir das culturas locais e manteve uma postura ética e até mesmo estética da passagem e seus atributos naturais em suas crônicas. Ele não tomou para si a decisão de como ver o mundo puruense. Nesse sentido, Labre não inventou, nem inaugurou o Purus. Ele inventou Lábrea, um centro político, uma cidade alcunhada – como dito – de “princesinha do Purus”.

É relevante destacar que, em Itinerário de Exploração do Amazonas à Bolívia, Labre afirma que,

 

achando-me então na assembléia provincial apresentei um projeto, pedindo auxílio de 25:000&000 réis para realisar os trabalhos, e não foi sem grandes desgostos para mim a opposição que encontrei inesperadamente de amigos, para levar a efeito a approvação do projecto de exploração da estrada da Labrea ao Beni (LABRE, 1887, p. 32).

 

Além do citado projeto apresentado à Assembleia Legislativa Provincial, Ferrarini (1981) se refere a outros projetos e discursos de autoria do coronel Labre, tais como: projeto de criação e instalação da vila de Lábrea; projeto de criação do município de Labrea, projetos de estradas de rodagem etc. E ainda, descobertas as potencialidades dos campos naturais nas imediações da Vila de Lábrea – localizados a 60 km de distância dali – Labre solicitou ao governo provincial um empréstimo para abrir fazendas de gado nos campos dos rios Passiá e Pussiari. Eis o termo de autorização:

 

LEI Nº 334 de 25 de maio de 1875.

Autoriza o presidente da Província a mandar dar por empréstimo ao Coronel Antônio Rodrigues Pereira Labre a quantia de nove contos de réis, para montar uma fazenda de gado vacum e cavalar nos campos entre os rios Pussiari e Paschiam; (...)

Nuno Alves Pereira de Mello Cardoso, Capitão de Mar e Guerra reformado da Armada Nacional, Oficial da Imperial Ordem da Rosa, Cavaleiro das de S. Bento de Aviz e Christo e Vice-Presidente da Província.

Faço saber a todos os habitantes que a Assembléia Legislativa Provincial decretou e eu sancionei a Lei seguinte:

Art. 1º O Presidente da Província fica autorizado a mandar dar pelos cofres provinciais por empréstimo, ao coronel Antônio Rodrigues Pereira Labre, como auxílio, para montar uma fazenda de gado vacum e cavalar nos campos que demoram entre os rios Pussiari e Paschiam, a quantia de nove contos de réis logo que as finanças da província comportarem tal despesa; (FERRARINI, 1981, p. 112).

 

Em à conclusão de Itinerário de Exploração do Amazonas à Bolívia, o autor esclarece que

 

Os meus primeiros trabalhos de exploração tiveram começo em 1872, por um reconhecimento, que fiz, verificando a existência dos campos da Labrea ás margens do Pucyary, afluente do Ituxy, subindo elle embarcado, cuja exploração noticiei pela imprensa. Prossegui n’estes trabalhos, ora por água e ora por terra, até o anno de 1881, em que estendi os meus estudos práticos em serviço de picada a uma extensão de 200 kilometros pelo planalto, que demora entre o Purús, Madeira e Ituxy. (...). Para melhor auxiliar nesta empreza, com muita difficuldade e despeza, havia fundado em 1876 uma pequena criação de gado vacuum e cavallar nos primeiros campos, á qual dei o nome de - Fazenda dos Campos – que conservei até o anno citado de 1881, da ultima exploração; e, na verdade, era um ponto de apoio e serviu até então de grande auxiliar, provando praticamente a boa qualidade das pastagens para criação e engorda do gado (LABRE, 1887, p. 31).

 

A historiografia brasileira mostra que, em os últimos anos do Segundo Império (1841–1889), o pensamento social brasileiro era marcado por problemas advindos da necessidade de delimitação do território nacional e pela formação de um país político e economicamente independente da metrópole portuguesa. Assim, principalmente devido às extensões territoriais brasileiras, iniciou-se um discurso, entre os homens de comércio, política e ciência, sobre a questão de desenvolvimento, ordem e progresso marcado pelo pensamento Positivista. Esse discurso nacional partia, muitas vezes, de quereres e vontades de grupos provinciais, como se pode perceber em alguns dos trechos citados neste texto, de autoria dessa figura histórica.

Como advogado, Labre atuou como um defensor do pensamento republicano, e até mesmo defendeu, judicialmente, um grupo de escravos em São Luís (MA), como afirmado anteriormente. Consequentemente, seguindo as ideias da época do nascente Partido Republicano no Brasil (1870), Labre viveu em um período em que se anunciavam projetos de exploração da Amazônia e de modernização para o Brasil como um todo, entre esses projetos, as Estradas de Ferro, como exemplo, e as tentativas malogradas de construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, (em 1872 e em 1878), “ao mesmo tempo em que”, de acordo com Assis (2010),

 

se anuncia a Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei Áurea (1888), ambas estabelecendo o discurso e as metamorfoses do trabalho escravo para o trabalho assalariado enquanto um bem constitucional e de liberdade liberal. Esse contexto é marcado ainda pela transformação do comércio brasileiro, criando rotas de vapores que passam a atingir tanto a Europa, bem como, os Estados Unidos na América do Norte (ASSIS, 2010, p. 02).

 

Rota de vapores regulares para o rio Purus também fora estabelecida, no ano de 1869, pela Companhia Fluvial do Alto-Amazonas, posto que Labre registrou que embarcou na viagem inaugural dessa Companhia. Assim,

 

o desejo de conhecer a região amazônica (...) levou-me, em dezembro de 1869, a ser passageiro do vapor Purús, na viagem com que a Companhia Fluvial do Alto-Amazonas inaugurava a navegação d’daquelle importante tributário do Amazonas, que deu nome ao primeiro vapor da linha regular, que n’essa época estabelecia-se (LABRE, 1887, p. i).

 

De sua viagem para esse “novo mundo”, Labre – já conhecedor dos trabalhos de exploração do rio Purus executada por William Chandles, nos idos de 1861-1863 – fez registros das diversas comunidades indígenas que ali residiam, como registrado anteriormente. Labre afirmou que

 

Este paíz é sem dúvida um novo mundo, onde se acha a raça do pae Adão por aqui dispersa, e ainda com os mesmos hábitos e costumes do velho papá, pois ainda não foram expulsos do seu paraíso; não conhecerão ainda a nudez, em que vivem; o seu éden é bem fornecido de fructos e animaes, por isso não têm necessidade do trabalho e do invento (LABRE, 1872, pp. 14-15).

 

A visão idílica de Labre em relação aos indígenas é marcada por um desejo de tirar essa raça do pai Adão do estado natural em que ainda se encontravam, os arregimentando para um núcleo urbano, ou seja, para a Vila de Lábrea, e ensiná-los o caminho da civilização e cristandade. Para ele,    

 

Inapropriamente esta gente tem a denominação de - Indios -. São elles os aborígenes, ou habitadores naturaes d’este paíz, vivendo em tribus, ainda no estado selvagem, o que é para admirar no século 19, chamado o seculo das luzes! Passados são 1871 annos da era christã, e mais de três seculos e meio da descoberta d’America; e o Brazil onde fallo, sendo todo christão, e fazendo do christianismo religião d’estado, dorme, dorme a bom dormir com os seus discípulos. Onde está o poder da igreja christã? Infelizmente para a humanidade, o christianismo desviou-se de seu caminho, esquecendo-se do apostolado, sua única e exacta missão na terra, desvirtuando-se com a política profana do governo temporal. O paíz regado pelo Purús pertence parte ao Brazil, e á Bolívia no mais alto Purús; é povoado por mais de trinta nações selvagens, que levam a vida nômade, falando cada povo o seu dialecto differente, tendo costumes pecualiares (LABRE, p. 15).

 

Com o pensamento colonialista, como era de se esperar, Labre afirmou que convinha ao governo imperial envidar todos os esforços para arrancar os selvagens dessa degradação, colonizando-os, pois “poderiam prestar valiosos serviços á lavoura, e serem cedidos a particulares, que os quizessem por contractos, mediante algumas vantagens” (1872, p. 25).

Em seus escritos, Labre expõe suas ideias acerca do processo de colonização dos povos nômades do Purus, como também registra todos os esforços que ele próprio fizera para a fundação de sua fazenda e de sua vila numa das curvas do Purus. De acordo com Carlos Rocque, em sua Grande Enciclopédia da Amazônia,

 

Labre tem discursos que ornam a Assembléia Provincial do Amazonas. Fundou a colônia que é hoje a cidade de Lábrea. Passou trinta anos no Purus, sendo o primeiro explorador dessa região. Em 1888, proferiu conferência na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, ressaltando que os campos existentes na região prestavam-se para a pecuária. Na vida política agiu sempre com honestidade e desinteresse. Celibatário, morreu paupérrimo, e em sua terra natal (ROCQUE, 1968, p. 980).

 

Apesar da assertiva de Rocque acerca de ser Labre o primeiro explorador do rio Purus, a historiografia nos mostra que a primeira expedição organizada para penetração naquele rio deve-se a Tenreiro Aranha, presidente da Província do Amazonas, criada em 1850. Há também notícias sobre penetração na região anterior por João Cametá, Pedro Coriana e Manuel Urbano da Encarnação e seus filhos, todos em datas diversas (ROCHA, 2016).

A cidade de Lábrea é fruto da penetração de Antonio Rodrigues Pereira Labre na terra firme de Amaciary, aquela terra virgem que, aos olhos de seu maior dominador, tornar-se-ia o grande projeto de sua vida, a maior conquista de um homem – a fundação de uma cidade, às margens de um rio “muito mais navegável que o Madeira, o Purús, seu paralelo, que é um dos mais admiráveis rios do mundo. Não tem cachoeiras. Presta-se à navegação” ... (BASTOS cf ROCHA, 2016). Foi ali que “Ele” [Antonio Rodrigues Pereira Labre] “fundou uma cidade. “É possível conjugar semelhante verbo. Pode-se ser fundador de uma Cidade. Criar e governar uma cidade, que nasce assim, da vontade de um homem, neste mundo do Gênese. A primeira cidade” do Purus. (CARPENTIER, 2009).

Seis anos após o falecimento de Labre, em Caxias, Maranhão, fato ocorrido no dia 22 de fevereiro de 1899, o engenheiro, geógrafo e ensaísta Euclides da Cunha, em sua viagem de demarcação de fronteiras no alto Purus, cheio de ímpeto e louvor, exclamou:

 

E por fim uma cidade, uma verdadeira cidade, Lábrea, repontou daquela forte convergência de energias trazendo desde o nascer um caráter destoante de nossos povoados sertanejos – com o requinte progressista de uma imprensa de dois jornais, O Purus e O Labrense, e o luxo suntuário de um teatro concorrido, e colégios, e as ruas calçadas e alinhadas: a molécula integrante da civilização aparecendo, repentinamente, nas vastas solidões selvagens... (CUNHA, 2000, p. 218).

 

A descrição euclidiana sobre a cidade de Labre aponta para uma urbi em estado de efervescência progressista, característica que destoava dos povoados sertanejados que pululavam na mente do viajante fluminense. A cidade visualizada por Euclides era molécula das grandes metrópoles do mundo, apesar de encrustada na vasta solidão selvagem da Amazônia puruense. A afirmação de que havia ruas alinhadas, teatros, colégios e a imprensa naquela comunidade amazonense confirmava o epíteto de “a princesinha do Purus”. Demonstra ser uma cidade que oferecia aos seus habitantes condições básicas para o exercício da cidadania, da cultura e do intelectualismo típico das capitais de outros lugares do Brasil à época.

Essa “verdadeira cidade” dos trópicos puruenses, apesar de todas as dificuldades que enfrentam seus filhos em diversas áreas administrativas, continua em sua luta pela continuidade da existência de seus filhos, os labrenses. De fato, ao se afirmar que os filhos naturais de Lábrea assim são denominados, não se deve esquecer que o pai de Labre – um ex-seminarista que fora batizado pelos pais com o nome de Bento José Labre, em homenagem ao santo francês – é o genitor de todos os descentes dessa família no Brasil. Isso porque o pai do fundador de Lábrea teve outros filhos depois do primogênito, que é Antonio Rodrigues Pereira Labre.

A essa cidade amazonense, como uma fonte geradora de filhos, e o seu fundador, como o mentor, o idealizador, o fundador de suas bases existenciais e de vida, que a batizou com o nome de Lábrea, feminino do seu último sobrenome, devem os labrenses prestar as suas honras e nunca deixar morrer a memória daquele que, apaixonadamente, dedicou mais da metade de sua vida proativa.

Às margens plácidas do Purus, resplandece a cidade de Lábrea, cercada pela maior floresta do mundo, banhada por todos os lados com as águas de cores variadas e com um céu luzidio, com rostos de diversos tipos fisionômicos e potencialmente produtora de produtos animais e vegetais, mas ainda necessitada, como os demais municípios do Amazonas, de serviços básicos de saúde e principalmente de segurança pública, apesar da existência de um hospital regional e de uma delegacia e um juizado com ‘vara única’ na cidade.

Todavia, mesmo com todas as adversidades possíveis, que pesam sobre os ombros dos labrenses, a cidade viva que é Lábrea, confirma que ali foi sendo erguida, nas últimas três décadas do século XIX, a paixão de uma vida que carrega o nome de seu fundador. É a cidade mais antiga do Purus e a beleza de seu centro histórico está relacionada ao boom da borracha e a outros produtos vegetais, bem como ao homem sonhador que foi o maranhense Antonio Rodrigues Pereira Labre.

 

REFERÊNCIAS

 

CARPENTIER, Alejo. Os passos perdidos. Trad. Marcelo Tápia. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

CUNHA, Euclides. Um paraíso perdido: reunião de ensaio amazônicos. Selecção e coordenação de Hildon Rocha. Brasília, Senado Federal, 2000.

FERRARINI, S. A. Rio Purus: história, cultura, ecologia. São Paulo, 2009.

_________ Lábrea: 1881 ontem – hoje 1981. Imprensa Oficial, Manaus, 1981.

LABRE, Antonio R. P. Itinerário de exploração do Amazonas a Bolívia. Belém,1887.

 _________Rio Purús. Diário do Amazonas, Manaus, 1872.

RAMOS, Julio. Desencontros da Modernidade na América Latina: literatura e política no século XIX. Trad. Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

ROCHA, Hélio. Coronel Labre. São Carlos: Scienza, 2016.

ROCQUE, Carlos. Grande Enciclopédia da Amazônia. Belém: AMEL, Amazônia Editora Ltda,1968.

SAID, Edward. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

____________ Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

CORNWALL, Ricardo. Antônio Rodrigues Pereira Labre, homem do império, político, pioneiro do progresso. Fortaleza: Premius, 2017.

 

SOBRE O AUTOR

Hélio Rodrigues da Rocha possui graduação em Letras-Inglês pela Universidade Federal de Rondônia (1998), graduação em Letras-português pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1989), mestrado em Letras-Linguagem e Identidade pela Universidade Federal do Acre (2008) e doutorado em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (2011). Pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio (2016). Atualmente, é professor Adjunto II do Departamento de Língua Inglesa na Universidade Federal de Rondônia - UNIR. Autor de “Coronel Labre” (Editora Scienza, 2018, 2ª edição) e tradutor da obra “Viagens pelos rios Amazonas e Madeira: Brasil, Bolívia e Peru – 1872-1874”, do engenheiro inglês Edward Davis Mathews, publicada pela Editora Valer, de Manaus, em 2020. Disponível para compra aqui.

 

Nota: artigo publicado originalmente in Revista Labirinto, Porto Relho (RO), ano XVIII, vol. 29 (jul-dez), n.1, 2018, p.113-124