domingo, 31 de maio de 2015

DE TUDO QUANTO AMAMOS

Paulo Bomfim


De tudo quanto amamos o que resta,
O riso desbotado dos retratos,
A talagarça dos momentos gratos
Ou a tristeza desse fim de festa?

Ficou por certo a ruga em nossa testa
Inventariando feitos e relatos,
E vozes e perfis somando fatos,
E a desfocada imagem da seresta.

E tudo o fogo afaga em canto findo,
Este porque de coisas devolutas,
E o tempo nômade que foi partindo.

Ficou de quanto amamos nos escolhos
A restinga das horas dissolutas,
E o mar aprisionado em nossos olhos!


BOMFIM, Paulo. 50 anos de poesia. São Paulo: Editora Green Forest do Brasil, 2000. p.372

quinta-feira, 28 de maio de 2015

O HOMEM DO TEMPO

Leila Jalul


Nome: Bita
Apelido: Bita
Estado civil: Bita
Idade: a idade do Bita

O cenário era assim, necessariamente nesta mesma ordem: da direita para a esquerda, visto de frente, primeiro, lá no fundo, uma construção em alvenaria de 3m x 3m. Era o necrotério, onde, por dias intermináveis, deitavam os defuntos dos arigós e dos indigentes.

Enorme e de madeira, lá estava o pavilhão dos mais ou menos, aqueles em recuperação. Mais ao lado, aquele dos casos mais graves e do centro cirúrgico, que fedia a éter e a mistério. Intransponível. Apenas as freiras e a vontade de sofrer circulavam por lá.

Outro pavilhão era o isolamento dos leprosos e tuberculosos. Tinha uma placa ostensiva, ao alto, em letras garrafais como se dissesse: Atenção! Cuidado! Não se aproximem! O buraco é mais embaixo!

Não estou falando sobre um complexo hospitalar. Ledo engano. Vejamos a última construção, no finzinho, já dando para avistar o Rio Acre. Era lá que estava a construção de lona, onde morava o nosso homem.

Pequeno, magro, sujo e, acima de tudo, respeitado. Pequeno, magro, sujo, respeitado e, à época, a única fonte incontestável das previsões meteorológicas.

Ninguém, ninguém mesmo, com domínio ainda que relativo de suas capacidades, ousava casar, aniversariar, e batizar, sem que antes perguntasse ao Bita. As previsões dele valiam tanto para o hoje quanto para o futuro.

- Bita, vai chover hoje?

- Bita, vai chover dia 8 de dezembro?

Dava certo, acreditem. O terreno não existe mais. Afundou tudo na rua Floriano Peixoto. Os doentes, ou morreram ou ficaram bons. Quem sabe?

O Bita é hoje aparelhado por satélites de altíssima precisão. Céu nublado, com possibilidades de chuva no decorrer do período (da manhã ou da tarde?) e graciosamente apresentado pelas emissoras por lindas criaturas. Sou mais o Bita.

Foi nesse ambiente que adquiri meus primeiros sintomas de pedras nos rins, bexiga arriada, erisipela e frigidez. Nas noites mal dormidas, eu aparava em bacias de prata o sangue das hemoptises e, como quem procura agulha num palheiro, procurava saber sobre a sensibilidade dos meus panos brancos desastrados.

Nos outros dias, restava viver os tempos nebulosos que nem o Bita sabia prever.


*Crônica retirada do blog do Altino Machado.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

A PERDA DA SIMPLICIDADE

Inês Lacerda Araújo

Os bens e produtos que compõem nossa vida são cada vez mais numerosos, exigem tempo e dinheiro, são considerados necessários, mesmo imprescindíveis.

Meios para expandir tudo o que é básico, desde vestuário, alimentação, moradia, se banalizam, ficam ao alcance de um toque nas telas, de uma volta em shoppings, de visualizações na mídia. O desejo se retroalimenta por esses meios. A simplicidade e a austeridade se perdem, aliás, o que seria vida simples e austera nas urbes e nos meios sociais hoje?

O que é de fato necessário e o que é supérfluo? A linha que os separa ficou diluída com a revolução industrial, com a expansão das comunicações, com a sofisticação do mercado de trabalho, com a especialização das funções. Ao que tudo indica, o supérfluo se tornou necessário. Quase impossível abrir mão de produtos de "última geração", o preço é ficar alijado e mesmo alienado pelo desconhecimento ou pela rejeição do mais atualizado artefato tecnológico.

Evidentemente que para produzir, transportar e comunicar é obrigatório investir em tecnologia e conhecimento, se não o risco é, como se diz "ser engolido pela concorrência".

Essa disputa nunca tem o vencedor final, além de deixar no caminho muitos perdedores.

Nesse quadro, como agir, como reagir?

Delineando para si projetos de vida em que a informação, o senso crítico, o discernimento, a renúncia à multiplicação desproporcional do desejo de consumo e a busca por certo despojamento façam parte do modo de ser.

Problema: esse tipo de reflexão, que modo de vida escolher e quais valores preferir -, sequer passa pela cabeça da maioria.

No lugar da simplicidade e do despojamento, a competição e o total envolvimento com as atrações e novidades.

Sem que houvesse quem compra supérfluos estes não seriam comercializados e a produção mudaria talvez para outro tipo de consumidor, e poderia atender as reais necessidades de enorme parte da humanidade, que sofre com fome e guerras fratricidas.

Um bom exercício de desprendimento seria contemplar o céu que se abre por detrás de nuvens, em um azul que leva o espírito a ir mais além, para diante, para o mistério. Saber-se mortal e frágil pode levar as pessoas a olhar com certa distância a acumulação de bens, as mesquinharias, o egoísmo, a pressa, a competição e tantas barganhas do dia a dia.

Sêneca (século I) escreveu em Da tranquilidade da alma:

Minha alma, que não está habituada a choques, padece com a menor humilhação; ao sofrer alguma injúria (como é comum encontrar em toda a existência humana), ou alguma contrariedade, bagatelas, que me têm tomado mais tempo do que valem a pena, volto-me à ociosidade e, como os animais, por mais cansados que estejam, acelero o passo ao retornar ao lar. E decido então encerrar-me em casa: que ninguém me roube um dia, pois ele jamais me indenizaria de tal perda; que minha alma não se incline senão para si mesma ... que não se ocupe de nada que a distraia, que a submeta ao julgamento alheio. Apreciemos uma tranquilidade que seja estranha a todas as preocupações públicas ou particulares. ... É possível à alma caminhar numa conduta sempre igual e firme, sorrindo para si mesma, comprazendo-se com essa sensação, sem se afastar jamais de sua calma, sem se exaltar, nem se deprimir. Isso será tranquilidade. Equilíbrio, que os gregos chamam de “euthymia”.


* Inês Lacerda Araújo - Professora de Filosofia durante 40 anos, na UFPR, e nos últimos anos na PUCPR. Autora de livros sobre Epistemologia, História da Filosofia e Teoria do Conhecimento. Atualmente aposentada.
** Fotografia de Vitor Fernandes (modices.com.br)

sábado, 23 de maio de 2015

O POETA E O PADEIRO

Raimundo Nonato

O poeta labora
Ao romper da aurora
Como o padeiro, na padaria
O poeta elabora sua poesia.

O padeiro amassa a massa
Com as mãos
O poeta tece o poema
No coração
O padeiro se esforça se agita
O poeta se acalma, medita.

Ao romper da aurora
O padeiro sua
O poeta chora
O padeiro amassa a massa
Com vigor
O poeta disfarça
Sua dor.

Enquanto todos sonham
Em seus aposentos
O padeiro e o poeta
Preparam o alimento:
Do corpo físico, o pão
E o poema, do coração.

Enquanto todos sonham
Na madrugada fria
O padeiro aquece o pão
O poeta, a poesia.

E, ao romper da aurora
Ao nascer de um novo dia
O poeta e o padeiro
Celebram na padaria
Há alimento para todos:
Há pão e há poesia.


NONATO, Raimundo. Sonhar... Voar... Viajar. Rio Branco: Fundação Elias Mansour, 2013. p.116

quinta-feira, 21 de maio de 2015

BICHO DA TERRA

Raimundo Correa (1859-1911)


Homem, embora exasperado brades,
Aos céus (bradas em vão e te exasperas)
Ascendo, arroubo-me às imensidades,
Onde estruge a aleluia das esferas...

Cá baixo, o que há? traições e iniquidades,
As tramas que urdes, e os punhais, que aceras;
As feras nos sertões, e nas cidades
Tu, homem, tu, inda pior que as feras!

Cá baixo: a Hipocrisia, o Ódio sanhudo
E o vício com tentáculos de polvo...
Lá cima: os céus... Dos céus o olhar não desço.

Homem, bicho da terra, hediondo é tudo
O que eu conheço aqui; eis porque volvo
O olhar, assim, para o que não conheço!


CORREA, Raimundo. Poesias. São Paulo: Livraria São José, 1958. p.128

quarta-feira, 20 de maio de 2015

101 ANOS DO NASCIMENTO DE J.G. DE ARAÚJO JORGE

20 de maio de 1914, às 23:30 h, nascia o “poeta de massas de maior projeção no Brasil”: José Guilherme de Araújo Jorge, na então Vila Seabra, hoje, Tarauacá. Foi o primeiro poeta brasileiro a alcançar a marca de um milhão de livros vendidos. Além de poeta, foi político, jornalista, radialista e publicitário. O próprio Acre, bem como sua terra natal, estão a redescobrir o poeta e sua obra. Ano passado, a Academia Acreana de Letras celebrou o Centenário do Poeta, com uma solenidade em Tarauacá. Recentemente a Academia dos Poetas Acreanos instituiu a “Medalha Cultural J.G. de Araújo Jorge”, e a Academia Juvenil Acreana de Letras o escolheu como Patrono. Na Academia Acreana de Letras JG é fundador da Cadeira Nº 24, onde ingressou em Assembleia realizada no Rio de Janeiro, e registrada oficialmente em Ata da Assembleia de reorganização do Sodalício realizada em Rio Branco no dia 26 de dezembro de 1943, tendo Olinda Batista Assmar como sucessora atual, e como patrono, o poeta baiano, autor da letra do Hino Acreano, Francisco Mangabeira. Apesar de negligenciado pela “grande” crítica, a obra de J.G. continua viva e fértil por meio de seus inúmeros admiradores e leitores espalhados mundo afora. J.G. faleceu no Rio de Janeiro em 27 de janeiro de 1987. 

terça-feira, 19 de maio de 2015

MEU VIOLÃO VAI ME ACOMPANHAR

“Samuel Machado Filho: O samba-canção “Meu violão vai me acompanhar” saiu em raríssimo 78 da Mocambo, número 15164-A, matriz R-834, no final de 1956 ou começo de 1957, mais ou menos. Autor da letra, J. G. de Araújo Jorge era um escritor muito discutido, mas ao mesmo tempo muito lido. Ainda em 1957, Lúcio Alves gravou na mesmíssima Mocambo o LP de 10 polegadas “Serestas”, no qual esta faixa não foi incluída, certamente porque o álbum era de regravações e esta música era inédita. Portanto, é raridade absoluta para ouvir, colecionar e guardar.”


Música: Lúcio Alves
Letra: J. G. de Araújo Jorge e Jorge Moran

Quando a saudade me maltratar
o meu violão vem me acompanhar
As velhas canções que falam de ti
relembram o que perdi.

Quando a tristeza me envolver
o meu violão me faz esquecer
Que tendo a vibrar bem junto de mim
não sei se estas longe assim.

Meu violão apertado ao meu peito
parece teu corpo no meu
Nas suas cordas meus dedos vibrando
desperta o amor que morreu.

Quando a saudade me maltrata
o meu violão vem me acompanhar
As velhas canções que falam de ti
relembram o que perdi.

Meu violão apertado ao meu peito
parece o teu corpo no meu
Nas suas cordas meus dedos vibrando
desperta o amor que morreu.

Quando a saudade me maltrata
o meu violão vem me acompanhar
As velhas canções que falam de ti
relembram o que perdi.

sábado, 16 de maio de 2015

SÉRGIO SOUTO: 28 DE MAIO SHOW EM RIO BRANCO-AC

O cantor, compositor e instrumentista Sérgio Souto, um dos mais respeitados músicos do Norte, estará em Rio Branco-AC, para o show de lançamento do CD “Quase Todas”. O show será dia 28 de maio, no Teatro Plácido de Castro!

sexta-feira, 15 de maio de 2015

ACIMA DO BEM E DO MAL

Jorge Araken Filho


Tenho pena dessa gente pretensiosa, que se imagina acima do bem e do mal, que olha por cima, de nariz empinado, os que são diferentes.

Gente que julga, para não ser julgada, que fiscaliza os deslizes do outro, para não ver os seus, que se sente iluminada como o sol, mas não vê as próprias sombras.

Sábios empedernidos, em seus dogmas imutáveis, propagando verdades absolutas num mundo de relatividades. Falsos profetas, que proferem lições de moralidade que não seguem. Arautos da verdade, que não sabem as perguntas, e se acham no direito de nos ensinar as respostas.

Mal esfloraram os primeiros versículos da Bíblia, que devoram com ar de superioridade, e já se sentem com força de condenar ao purgatório as nossas almas pecadoras.

Acreditam na salvação pelo sofrimento e imaginam, depois de algumas penitências e orações, que as pessoas, mais cedo ou mais tarde, haverão de receber as recompensas e castigos que merecerem por suas ações!

Infelizmente, o mundo nem sempre é justo! Não estranhe se você for punido por suas maiores virtudes.

Nesse caldeirão de excitações onde se confrontam as exigências da realidade e as pulsões do id, onde a essência e a aparência entram em conflito, escolhemos viver a ilusão do bem e do mal, da culpa e do perdão: do bem, somos autores; do mal, vítimas.

Para suportar a triste realidade do corpo físico, acreditamos na salvação da alma! A felicidade eterna vem com a salvação, uma espécie de recompensa pelas virtudes que acreditamos ter ou que, na verdade, desejamos ter, ao menos na fantasia que projetamos para o mundo.

Queremos acreditar que as nossas ações, quando somos vítimas de uma injustiça, haverão de ser recompensadas pelo destino, e o nosso algoz haverá de ser punido por sua incúria, recebendo o merecido castigo.

Mas nem sempre acontecem coisas boas com pessoas boas, nem coisas ruins com pessoas más. Os bons também sofrem e os maus podem ser felizes.

Para a vida não ser monótona, prefiro não ser santo, nem demônio. Na verdade sou um pouco dos dois, meio Doctor Jekyll, meio Mister Hyde. Sou essa “metamorfose ambulante”, indefinível, meio louco, por vezes insensato, mas humano e contingente, cheio de falhas e desejos primitivos, segredos que nem às paredes confesso.

Na verdade, sou fruto do que li e do que vivi, sou filho dos meus sentimentos, medos, desejos, senso ético, herança genética, exemplos familiares e interações sociais, sejam essas experiências positivas ou negativas.

A crença em um mundo essencialmente justo, que pune os infiéis e ampara os bons moços, pobres moços (diria Lupicínio Rodrigues), protege-nos da sensação de desamparo e insegurança, fazendo-nos acreditar que o sofrimento não foi em vão. Acreditamos que a bondade, por si só, resolve todos os males e, no fim de tudo, justifica a nossa própria salvação.

Triste ilusão imaginar que os pecadores haverão de pagar por seus pecados e nós, bondosos e humanos, como as ovelhas de um rebanho, haveremos de ser salvos no juízo final.

Quando vestimos a máscara de vítima, atribuímos ao outro as nossas próprias culpas! É assim que agimos! É mais fácil buscar no outro a justificativa das nossas misérias do que olhar no espelho e ver as nossas sombras ali refletidas, inquietando o Narciso que habita o inconsciente, mas molda os nossos atos. Ver-se por dentro, exatamente como se é, pode ser uma experiência dolorosa, mas gratificante.

Sejamos honestos uma vez na vida (ninguém precisa saber), e admitamos que muitos desses males de que nos lamentamos podem ser causados por nossa própria culpa, por ação ou omissão nossas, e não por um acaso do destino! É difícil admitir isso, não é? É melhor posar de vítima...

A autocomiseração nos transforma em mártires, consolando-nos como vítimas da crueldade alheia, seres bondosos que expiam os “pecados” do mundo. E sempre com o dedo em riste...

Assumindo a posição de vítimas, e não de culpados, redimimos a nossa parcela do pecado e encontramos conforto na consciência. O grande dilema é que paralisamos a caminhada, trazendo uma estranha sensação de impotência e ansiedade, que acaba gerando melancolia. Deixamos de amadurecer e mudar a perspectiva do olhar.

Não podemos viver na ilusão de que as nossas misérias mais triviais só podem ter origem nas atitudes dos outros, nem pensar que todos são demônios a confirmarem a nossa santidade.

O nosso martírio não é um mal, nem pode ser debitado, apenas, na conta do outro. Pode representar, na verdade, a oportunidade para mudar os trilhos da existência, buscando a felicidade, e não culpados. Nem o outro é demônio, nem nós somos santos!

O maior risco, no entanto, é o de ficarmos indiferentes aos que sofrem e, ainda pior, indiferentes aos responsáveis pela desgraça alheia, acreditando que os caminhos da justiça, embora tortuosos, são mágicos e divinos, e acabarão por punir os culpados, trazendo a salvação para os justos.

Não espere que a punição dos ímpios aconteça por castigo divino, nem imagine que apenas os maus serão castigados.

Muitas vezes, os justos pagam pelos pecadores, e até percebemos a injustiça, mas acabamos indiferentes ao sofrimento alheio, imaginando, como desculpa para a nossa própria omissão, que as vítimas provocaram os seus algozes.

Não culpe a vítima por seu sofrimento, como o troglodita preconceituoso que atribui à mulher, por suas vestes, o desejo secreto de ser estuprada, ou ao traído, por não ser um malabarista na cama, o desejo de compartilhar o objeto do seu amor.

Não vivemos num mundo intrinsecamente justo: a vítima nem sempre será recompensada e o culpado nem sempre será punido.

Corrigir uma injustiça, muitas vezes, depende de nós! Por isso, não podemos permanecer indiferentes ao sofrimento do próximo, acreditando, ingenuamente, que o mundo será sempre justo, ao menos no juízo final.

Não espere que a justiça divina vá corrigir as transgressões humanas, nem que a tua bondade, necessariamente, haverá de ser recompensada.

Nem todos recebem o castigo e a recompensa que merecem e, muitas vezes, não merecem o castigo e a recompensa que recebem.

Olhe-se no espelho, antes de criticar ou atribuir culpas; depois, coloque-se como vítima, antes de se omitir!

Sábio não é conhecer o caminho, mas saber quando mudar!

O instinto de rebanho, que nos compele a seguir expectativas e opiniões que não compartilhamos, leva-nos a dissimular as nossas próprias verdades, escondendo o que somos e vivendo a felicidade no outro e pelo outro. Carentes de curtidas e de aceitação, só desejamos experimentar o prazer do pertencimento ao grupo da felicidade aparente e do consumo fácil.

É o teatro de máscaras, que nos revela o glamour de um mundo paralelo em que o sentimento de culpa e a sensação de infelicidade nos consomem, quando sentamos diante do espelho e limpamos a maquiagem. Mas raramente nos vemos além das ilusões que construímos sobre nós mesmos. Só vemos no espelho o personagem, e não o intérprete, a persona, e não o ator.

Precisamos celebrar a vida além do bem e do mal, vendo o mundo como ele se revela para nós, e não para o outro, percebendo-o na essência, e não apenas na aparência. Sem verdades divinas e absolutas, sem dogmas imutáveis, sem escravidão às expectativas do outro e sem barganhar a salvação, dissimulando uma santidade que nos aprisiona a valores que não são nossos, enfim, que revelam o abandono de nós mesmos.

O destino não é uma linha reta, nem uma flecha traiçoeira, que nos amarra a um alvo previamente traçado e imóvel, que descansa à nossa espera.

São as paralelas e curvas que tornam a vida misteriosa, mas fascinante.

terça-feira, 12 de maio de 2015

ANTROPOCENO: A ÉPOCA GEOLÓGICA DO HOMEM (FINAL)

Evandro Ferreira* e Foster Brown**


A espécie humana moderna tem apenas 200 mil anos de existência, um flash na história geológica de 4,57 bilhões de anos do nosso planeta. Apesar de nossa brevidade, os rastros que temos deixado no planeta são impressionantes. Mesmo os rudimentares utensílios de pedra usados para a caça por nossos ancestrais no período Paleolítico fizeram desaparecer muitas espécies de grandes mamíferos. Nossos tataravôs, provavelmente munidos de armas feitas de bronze, conseguiram a façanha de extinguir há 1,7 mil anos os últimos Mamutes do planeta que haviam se refugiado na remota Ilha Wrangel, no Oceano Ártico, ao norte da Sibéria, quase chegando ao Polo Norte. A façanha a que nos referimos se deve às dificuldades para chegar, mesmo nos dias atuais, à referida ilha em meio ao gelo e clima extremo. Nada disso impediu a extinção dos Mamutes que, ao que tudo indica, só teriam escapado à sanha destruidora dos humanos se tivessem abandonado o planeta.

Orgulhamo-nos de ter criado a agricultura, as cidades, a revolução industrial. Mas ao mesmo tempo lançamos dezenas de bombas nucleares na atmosfera, eliminamos mares interiores, gigantescas áreas florestais e desertificamos extensas áreas agricultáveis. Se formos honestos, veremos que fizemos e fazemos de tudo, de bom e de ruim. A agricultura alimenta a todos, mas ocupa espaço de florestas e outros seres vivos. As cidades oferecem conforto, segurança e comodidade, mas geram poluição de todo tipo. Em síntese, o homem aproveitou o clima estável e ameno da época do Holoceno – iniciada 11 mil anos atrás – para se multiplicar e ‘desenvolver’ o planeta. Mas uma crise ambiental derivada de suas ações está se instalando e parece estar começando a cobrar um preço: o aquecimento do planeta.

Temos alertado que o aquecimento global tem causado e causará graves problemas sociais, ambientais e econômicos. Alguns descrentes teimam – por pura teimosia mesmo, pois não apresentam provas do que falam – em não acreditar que isso está acontecendo, mesmo com eventos climáticos extremos repetindo-se com uma frequência nunca vista. Agora mesmo no Acre, depois de presenciarmos a maior cheia da história de Rio Branco, estamos testemunhando chuvas praticamente diárias há quase 60 dias. Isso não é normal! Será que alguma anomalia climática está em gestação? O que teremos nesse verão? Uma seca como nunca vista? Tudo é possível, até o inimaginável. Afinal, quem poderia prever que em 2005 e 2010 florestas virgens pegariam fogo no Acre? Esses eventos são, pelas contas dos mais antigos, absolutamente impensáveis. Mas aconteceram!

Dá para negar que já estamos vivendo uma crise ambiental? O bom senso indica que não. Tanto que as nações mundiais tem se reunido com frequência para resolver questões ligadas à emissão de gases poluentes, destruição de fontes de água potável, florestas e outros assuntos relacionados com o meio ambiente planetário. Apesar de nada decidirem, procrastinando a tomada de decisões importantes para garantir o futuro do planeta, os líderes globais têm, indiretamente, dado uma grande contribuição à causa ambiental: visibilidade. Graças a isso, ela é hoje manchete de destaque na imprensa mundial.

A questão ambiental, que em última instância poderá se transformar no caminho para a destruição da civilização humana no planeta, está se tornando uma barreira para a auto realização e a emancipação individual, bem como a autodeterminação coletiva do homem. As correntes políticas liberais e socialistas abraçaram as ideias do homem como um ser acima de tudo, dominador e mestre de tudo e todos, da apropriação de uma terra generosa, e uma narrativa de liberdade e progresso para todos (embora esses ideais nunca tenham sido desfrutados por todos).

Mas será que poderemos em breve contemplar um planeta sem nós?

Uma narrativa crítica do Antropoceno, a idade geológica que vem sendo forjada pelo homem há cerca de 200 anos, pode nos ligar ao planeta e seus outros habitantes – todas as coisas e as forças vivas ou não vivas – de uma forma que nenhuma narrativa progressiva e modernista da humanidade atual consegue. Enquanto as revoluções desencadeadas pelas ideias de Copérnico e Darwin erodiam a ideia do homem como o ser supremo do planeta e do universo, o Antropoceno nos oferece uma lição ainda mais preocupante de humildade. Ele nos leva a contemplar a possibilidade e o significado do impensável: uma terra sem humanos.

O Antropoceno nos obriga a repensar as condições e conceitos do que entendemos ser autonomia humana e progresso. Precisamos discutir que tipo de autonomia poderia ser a mais adequada para todos os habitantes do planeta, incluindo na discussão o planeta – e os não humanos que o habitam – do qual dependemos. Ao invés de nos levar a pensar em barreiras ecológicas ou limites como uma restrição à liberdade humana, o Antropoceno nos ajuda a reconhecer que estes fatores limitantes são, na verdade, os que fornecem as condições para a manutenção da nossa sobrevivência e liberdades individual e coletiva.

O Antropoceno também fornece uma base para voltarmos nossa atenção para o hibridismo e a coevolução. Se observarmos o planeta com a perspectiva de um sistema, não haverá divisão ontológica clara entre o nacional e o estrangeiro, o humano e o não humano, a natureza e a cultura, o doméstico e o selvagem, ou o natural e o tecnológico. O hibridismo demanda uma questão essencialmente política para o debate democrático: como nós, meros terráqueos humanos, deveremos coevoluir com os outros terráqueos? Que tipos de práticas tecnológicas e que formas de resistência a práticas tecnológicas são mais consistentes com a democracia e a ecologia?

Em resumo, a ideia do Antropoceno é uma garantia de que a crescente crise democrática de responsabilidades na prestação de contas entre aqueles que geram e/ou se beneficiam dos riscos ecológicos e aqueles que sofrerão as consequências não ficará oculta. Se nós humanos, que vivemos e dependemos do planeta para sobreviver, tivermos que convocar todas as sociedades e tomadores de decisão do planeta para prestarem contas de suas atitudes, o papel da democracia nessa discussão será mais indispensável do que nunca.

No entanto, se você leitor acredita que os líderes globais jamais chegarão a uma decisão consensual e democrática para o enfrentamento da crise ambiental, então ofereça uma alternativa para que essa decisão seja tomada e implementada sem que para isso tenhamos que passar a viver em uma era de autoritarismo político-ambiental. Nós, os autores desse artigo, confessamos que estamos confusos em razão da inércia e da leniência com que os problemas ambientais são tratados. Somos pessimistas e nos perguntamos repetidamente: teremos como escapar desse futuro ambiental e político sombrio?


Imagem: Instituto Humanitas Unisinos
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Para saber mais: recomendamos a leitura do artigo (em inglês) “Anthropocene raises risks of Earth without democracy and without us”, de Robyn Eckersley, professor de Ciência Política da Universidade de Melbourne, Austrália e publicado no site The Conversation.

*Evandro Ferreira é engenheiro agrônomo e pesquisador do INPA/Parque Zoobotânico da UFAC

**Foster Brown é Pesquisador do Woods Hole, Docente do Curso de Mestrado em Ecologia e Manejo de Recursos Naturais (MEMRN) da (UFAC. Cientista do Experimento de Grande Escala Biosfera Atmosfera na Amazônia (LBA), do INCT SERVAMB e do Parque Zoobotânico (PZ) da UFAC. Membro do Consorcio Madre de Dios e da Comissão Estadual de Gestão de Riscos Ambientais do Acre (CEGdRA).

segunda-feira, 11 de maio de 2015

A PREPOSIÇÃO “DE”

Jorge Araken Filho


Ainda me lembro de uma prova de Português que fiz no Colégio Colégio Sacré-Coeur de Marie, em Copacabana, onde cursei o Primário, o Ginásio e o Segundo Grau.

Dr. Jorge Araken Faria da Silva
Eu cursava a quarta série do antigo primário e respondera, na prova de Língua Portuguesa, que a preposição “de” é monossílabo átono, como meu pai (Jorge Araken Faria da Silva) me ensinara.

Tinha certeza do dez...

Para minha tristeza e revolta, recebi um nove, justamente por causa da malfadada preposição “de”.

Meu pai estava no Rio há alguns meses, de licença prêmio e participando, como Conferencista, da Semana de Turismo Cultural no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Ele era responsável pelo Turismo Cultural na Amazônia, tema da sua Conferência.

Na véspera da prova, ele me ensinara que a preposição “de” é monossílabo átono, embora a Professora houvesse ensinado que é monossílabo tônico.

Confiei nele e fiz a prova...

Discuti com a professora e usei o meu pai como argumento de defesa. Ele era o meu herói da gramática, o defensor perpétuo do vernáculo, a “última flor do Lácio, inculta e bela...”

Perdi um ponto... Falei o diabo com ele! Acusei-o de me ensinar errado. Ele não se defendeu. Apenas pediu que comprasse um caderno na papelaria. Não entendi nada... Eu o comprei e ninguém o viu sair à rua por três dias seguidos.

Estávamos numa quinta-feira. Na segunda, antes que chegasse o ônibus da escola, ele me entregou o caderno inteiramente escrito, com o ponto final na última página.

Ele só me pediu que o entregasse à Professora de Português.

Qual era o título? Adivinhem...

“O uso da preposição de”.

Orgulhoso do meu pai, levei o caderno como um troféu...

A Professora folheou o calhamaço, escrito em letras desenhadas, quase góticas, e o guardou sem dizer nada.

Dois dias depois, pediu-me desculpas, acrescentando que o meu ponto seria restabelecido.

E ainda pediu para conhecê-lo, tal a elegância do tapa com luvas de pelica.


> Jorge Araken Filho é advogado e escritor. Reside no Rio de Janeiro. É filho de Jorge Araken Faria da Silva, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado do Acre, professor jubilado da UFAC, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Acre e da Academia Acreana de Letras, entre outros.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

NA RUA QUINTINO CUNHA

Rogel Samuel


Passei hoje pela Rua Quintino Cunha, e me lembrei do livro excelente de Leonardo Mota “Cabeças chatas” que tem um capítulo sobre o poeta. Foi-me enviado por um pesquisador da obra do poeta de “Pelo Solimões”, Jorge Brito, do Ceará.

Quintino da Cunha ficou famoso por seu estilo irreverente e anedotas que contava.

Quintino Cunha morou em Manaus, onde conseguiu até algum dinheiro.

O cearense é como passarinho
Tem de voar, para fazer o ninho...

Com o dinheiro ali ganho – era a época de ouro da borracha – escreveu um livro de versos e foi editá-lo na Europa.

Do Amazonas tirou as belas imagens do  “Encontro das águas”, dos rios Negro e Solimões:

Se esses dois rios fôssemos, Maria,
Todas as vezes que nos encontramos,
Que Amazonas de amor não sairia
De mim, de ti, de nós que nos amamos!

Foram esses versos que tive vontade de recitar ali da Rua Quintino Cunha, bem alto.
Se não o fiz foi porque ali em frente estava a Delegacia.

Ali naquela esquina morava um grande amigo meu já há muito falecido, o Ítalo, meu colega de faculdade. Ia ser assistente do Celso Cunha. Ítalo era um sábio. Alto, mulato, meio cego, tocava piano e sabia de tudo. Um dia me deu uma aula sobre a “Paixão segundo São Mateus”,  de Bach.

Tempos felizes, aqueles.

Fiquei feliz em ver que o meu antigo amigo morava na esquina da poética rua Quintino Cunha.


> Texto retirado d apágina do autor:

PROVOCAÇÕES SOBRE O AMOR E O DESEJO EM NIETZSCHE

Jorge Araken Filho


Na obra “Além do Bem e do Mal ou Prelúdio de uma Filosofia do Futuro”, Friedrich Wilhelm Nietzsche lança um desafio às nossas concepções sobre o amor e o desejo:

“Acabamos por amar nosso próprio desejo, em lugar do objeto desejado.” (Nietzsche, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro. Tradução de Márcio Pugliesi. Curitiba, Hemus Livraria, Distribuidora e Editora. 2001. Quarta Parte: aforismos e interlúdios. n. 175. p. 94).

Ainda estou meditando sobre este aforismo de Nietzsche, que reflete, talvez, a fantasia narcísica e a visão do outro como espelho. É uma doce provocação que nos desafia a pensar além do senso comum.

Assim, amamos o desejo pela imagem antecipada que temos do outro, e não propriamente o outro, que nunca vemos como ele realmente é. É o que Freud chamaria de ideias libidinais antecipadas:

"Se a necessidade que alguém tem de amar não é inteiramente satisfeita pela realidade, ele está fadado a aproximar-se de cada nova pessoa que encontra com ideias libidinais antecipadas.” (FREUD, Sigmund. A dinâmica da transferência: O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Completas de Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago. CD-ROM. Baseada na Edição Standard Brasileira (1969-1980). v. XII

Em outras palavras, ligamos o objeto do nosso desejo, neste caso o outro (familiares, amantes, etc.), a uma das representações preexistentes em nosso imaginário, que podem ser deslocadas, modificadas ou ressignificadas como figuras substitutas de outras pessoas do passado, os primeiros objetos dos nossos sentimentos, que foram “perdidos” de alguma forma ou em alguma medida, mas sobrevivem em nossas ideias libidinais antecipadas.

E assim, deslocando a memória de uma figura antiga para o objeto atual do desejo, vemos o outro conforme as nossas ideias antecipadas sobre ele, e não como ele realmente se apresenta. Desejamos experimentar o desejo pelo que ressignificamos do outro, isto é, o desejo por uma ideia antecipada que temos dele. O outro que desejamos não é o outro, real e concreto; é a nossa ideia sobre ele, o que nos leva a pensar que amamos o desejo por essa imagem ressignificada, e não o outro, que nunca enxergamos. Só percebemos no espelho o que projetamos, e é por esse objeto idealizado e preexistente em nossa memória que caímos de amores.

Na verdade, o que nos move é a busca de gratificação para os desejos, que ocorre quando há o investimento libidinal, isto é, quando o afeto é descarregado pelo enlaçamento do outro, que, por vezes, não é real. Mas não importa se o outro, de fato, corresponde às nossas projeções, assim como também não importa se ele dirige para nós, em retribuição, um investimento libidinal, já que amamos o desejo pela fantasia que alimentamos sobre ele. O que nos gratifica é o investimento libidinal no objeto dos nossos desejos, enfim o prazer da caçada, e não o eventual sentimento pelo outro.

O que queremos, afinal, é construir caminhos que nos possibilitem a satisfação do desejo, ou seja, atender ao “impulso de recuperar a perda da primeira experiência de satisfação”, poder-se-ia dizer em linguagem freudiana (In: “Interpretação dos Sonhos”).

Concordando com Nietzsche, ao menos neste ponto, podemos dizer que “acabamos por amar nosso próprio desejo, em lugar do objeto desejado”.

O outro não importa, mas, sim, a gratificação que temos ao investir a libido na busca do prazer, descarregando, nesse processo, os impulsos sexuais. Se o desejo se dissipa, porque o investimento libidinal deixou de gerar prazer ou, em última análise, porque não recupera a perda da primeira experiência de satisfação, o outro deixa a cena dos nossos investimentos, mostrando que era o próprio desejo, e não o outro que nos movia.

Pode ser esta a ideia de Nietzsche no aforismo. Imagino, ao menos, que este foi o seu caminho.

Não vou dizer, sem meditação mais profunda e sem conhecimentos filosóficos e psicanalíticos, que a subscrevo integralmente. Faltam-me saber, engenho e arte, para concordar ou discordar.

Entretanto, estou propenso a acompanhar, ao menos parcialmente, o pensamento de Nietzsche, porque, de fato, amamos nosso próprio desejo, ou seja, amamos a busca da experiência de satisfação, que Freud chamou de princípio do prazer. Mas será que o amor se esgota nesse investimento libidinal no outro?

Acusem-me de romântico, mas não me sinto confortável para negar o amor ao outro, quando o sentimento sobrevive ao princípio da realidade, isto é, quando o amor permanece depois que, abandonando as nossas ideias libidinais antecipadas, paramos de ver o outro como espelho. E este insight pode acontecer eventualmente, embora reconheça a sua raridade em um mundo de relações superficiais e transitórias.

Dúvidas e mais dúvidas...

Mas esse é o bom e velho Nietzsche, dando nós, ao invés de desatá-los, fazendo curvas em nossas mentes previsíveis, cheias de retas e sem imaginação! Mas o que seria da vida sem as curvas que fazem da caminhada um terno flerte com o imponderável?

Para encerrar, uma indagação:

Você ama o desejo ou ama ser desejado?

Vou olhar o meu coração! Quem sabe consigo despertar e, assim, com olhos sensíveis, encontro a resposta...


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