terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O FEITICEIRO DESPREZADO

Jorge Luis Borges (1899-1986)


Havia em Santiago um deão que desejava ardentemente aprender a arte da magia. Ouviu dizer que Dom Illán de Toledo a sabia mais do que ninguém e foi a Toledo procurá-lo.

No dia em que chegou, dirigiu-se à casa de Dom Illán com bondade e falou que adiava o motivo de sua visita até depois de comer. Mostrou-lhe um alojamento muito fresco e disse que a sua vinda o deixava muito alegre. Depois de comer, o deão contou a razão daquela visita e pediu que lhe ensinasse a ciência mágica. Dom Illán disse que adivinhava que ele era deão, homem de boa posição e bom futuro, e que temia ser logo esquecido por ele. O deão prometeu e assegurou que jamais esqueceria aquela mercê e que ficaria sempre às suas ordens. Já acertado esse assunto, explicou Dom Illán que as artes mágicas não podiam ser apreendidas senão em lugar afastado e, tomando-o pela mão, levou-o a uma peça contígua, em cujo assoalho havia uma grande argola de ferro. Antes avisou à criada que tivesse perdizes para a ceia, mas que não as pusesse para assar até que ordenasse. Levantaram a argola e desceram por uma escada de pedra bem lavrada, até que ao deão pareceu que tinham descido tanto que o leito do Tejo estava sobre eles. Ao pé da escada havia uma cela e depois uma biblioteca e mais adiante uma espécie de gabinete com instrumentos mágicos. Examinaram os livros e estavam nisso quando entraram dois homens com uma carta para o deão, escrita pelo bispo, seu tio, na qual lhe fazia saber que estava muito doente e que, se quisesse encontrá-lo vivo, não demorasse. Essas notícias contrariaram muito o deão, tanto pela doença do tio como por ter de interromper os estudos. Resolveu escrever uma desculpa e a mandou ao bispo. Três dias depois chegaram alguns homens de luto com outras cartas para o deão, nas quais se lia que o bispo tinha falecido, que estavam escolhendo sucessor e que esperavam pela graça de Deus que fosse ele o eleito. Diziam também que não incomodasse em vir, pois parecia muito melhor que o escolhessem em sua ausência.

Passaram-se dez dias e vieram dois escudeiros muito bem vestidos, que se atiraram a seus pés, beijaram suas mãos e o saudaram como bispo. Quando Dom Illán viu essas coisas, dirigiu-se com muita alegria ao novo prelado e disse que agradecia ao Senhor que tão boas novas chegassem à sua casa. Em seguida lhe pediu o decanado vacante para um de seus filhos. O bispo informou que tinha reservado o decanado para seu próprio irmão, mas que decidira favorecê-lo e que partissem juntos para Santiago.

Foram os três para Santiago e os receberam com honras. Seis meses depois recebeu o bispo mensageiros do Papa que lhe oferecia o arcebispado de Tolosa, deixando em suas mãos a nomeação do sucessor. Quando Dom Illán soube disso, lembrou a antiga promessa e pediu o título para o filho. O arcebispo informou que tinha reservado o bispado para seu próprio tio, irmão de sue pai, mas estava resolvido a favorecê-lo e que partissem juntos para Tolosa. Dom Illán não teve outro remédio senão aceitar.

Foram os três para Tolosa, onde os receberam com honras e missas. Dois anos depois, recebeu o arcebispo mensageiros do Papa que lhe oferecia o chapéu de Cardeal, deixando em suas mãos nomear um sucessor. Quando Dom Illán soube disso, lembrou a antiga promessa e pediu o título para seu filho. O Cardeal informou que tinha reservado o arcebispado para o próprio tio, irmão de sua mãe, mas que determinara favorecê-lo e que partissem juntos para Roma. Dom Illán não teve outro remédio senão aceitar. Foram os três para Roma, onde os receberam com honras, missas e procissões. Quatro anos depois morreu o Papa e nosso Cardeal foi eleito para o papado por todos os demais. Quando Dom Illán soube disso, beijou os pés de sua Santidade, lembrou-lhe a antiga promessa o cardinalato para o filho. O Papa o ameaçou com a prisão, dizendo-lhe que bem sabia que ele não era mais que um feiticeiro e que em Toledo tinha sido professor de artes mágicas. O mísero Dom Illán disse que ia voltar à Espanha e pediu alguma coisa para comer na viagem. O Papa não o atendeu. Então Dom Illán (cujo rosto estava estranhamente mais jovem) falou com uma voz sem tremor:

– Pois terei que comer as perdizes que encomendei para esta noite.

A criada apresentou-se e Dom Illán mandou que assasse. A essas palavras, o Papa se encontrou na cela subterrânea em Toledo, não mais que deão de Santiago, e tão envergonhado de sua ingratidão que nem atinava em desculpar-se. Dom Illán disse que bastava essa prova, negou-lhe a parte que teria das perdizes e o acompanhou até a rua, onde lhe desejou feliz viagem e dele se despediu com grande cortesia.

(Do Livro de Patrono do infante Dom Juan Manuel, que o extraiu dum livro árabe – As Quarentas Manhãs e as Quaresmas Noites.)


BORGES, Jorge Luis. História Universal da Infâmia. São Paulo: Globo, 1989.

O ESTRANGEIRO (trecho)

Albert Camus (1913-1960)


Entre a enxerga e as tábuas da cama, eu encontrara, com efeito, um velho bocado de jornal, amarelecido e transparente, quase colado ao pano. Relatava um acontecimento cujo início faltava, mas que devia ter sucedido na Tchecoslováquia. Um homem partira de uma aldeia para fazer fortuna. Ao fim de vinte e cinco anos, rico, regressara casado e com um filho. A mãe dele, juntamente com a irmã, tinha uma estalagem na aldeia. Para lhes fazer uma surpresa, deixara a mulher e o filho noutra estalagem e fora visitar a mãe, que não o reconheceu. Por brincadeira, tivera a ideia de se instalar num quarto como hóspede. Mostrara o dinheiro que trazia. De noite, a mãe e a irmã tinham-no assassinado a martelada e atirado o corpo ao rio. No dia seguinte de manhã, a mulher do desgraçado viera à estalagem e revelara, sem saber, a identidade do viajante. A mãe enforcara-se. A irmã atirara-se num poço. Devo ter lido esta história milhares de vezes. Por um lado, era inverossímil. Por outro lado, era natural. De todos os modos, achava que o viajante merecera até certo ponto a sua sorte e que nunca se deve brincar com estas coisas.


CAMUS, Albert. Estado de Sítio; O Estrangeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 247-248

sábado, 28 de janeiro de 2017

WILLIAM BUTLER YEATS: alguns poemas

OH NÃO AMEIS POR LONGO TEMPO
W. B. Yeats (1865-1939)

Bem-amada, não ames muito tempo:
Por longo tempo dei o coração,
E vim e me tornar fora de moda
            Como velha canção.

Pelos anos de nossa mocidade
Nenhum de nós podia separar
Seu pensamento do outro,
Pois eles só sabiam concordar.

Mas oh! num só minuto ela mudou:
– Não deis por longo tempo o coração,
Ou ficareis fora de moda
Como velha canção. p.63


O DO NOT LOVE TOO LONG
William Butler Yeats

Weetheart, do not love too long:
I loved long and long,
And grew to be out of fashion
Like an old song.

All through the years of our youth
Neither could have known
Their own thought from the other's,
We were so much at one.

But O, in a minute she changed:
– O do not love too long,
Or you will grow out of fashion
Like an old song.


AMIGAS
W. B. Yeats (1865-1939)

Devo louvar agora as três
Mulheres que teceram a alegria
Que nos meus dias se irradia:
Uma porque nem breve pensamento,
Nem os cuidados permanentes,
Não, não durante estes quinze anos
Muitas vezes turbados,
Jamais puderam se interpor
Entre um espírito e outro deleitados;
Outra porque a sua mão
Teve a força de desprender
O que ninguém pode entender,
Nem pode ter e prosperar, o fardo
Dos sonhos juvenis, até que ela,
Ela mudou-me a ponto de eu viver
Trabalhando em completo êxtase.
E que dizer da que tudo tomou, daquela
Que até partir a minha mocidade
Deu-me um olhar, a custo, de piedade?
Como louvar essa, afinal?
Quando o dia começa a despontar
Conto o meu bem, conto o meu mal,
Acordado por causa dela,
Lembrando tudo o que ela era então,
Que olhar de águia mostra ainda:
E sobe de meu coração
Uma doçura tão infinda,
Que tremo da cabeça aos pés. p.69


FRIENDS
William Butler Yeats

Now must I these three praise
Three women that have wrought
What joy is in my days;     
One that no passing thought,     
Nor those unpassing cares,
No, not in these fifteen     
Many times troubled years,          
Could ever come between           
Heart and delighted heart;           
And one because her hand
Had strength that could unbind  
What none can understand,       
What none can have and thrive,
Youth’s dreamy load, till she       
So changed me that I live
Labouring in ecstasy.        
And what of her that took 
All till my youth was gone
With scarce a pitying look?          
How could I praise that one?
When day begins to break           
I count my good and bad, 
Being wakeful for her sake,         
Remembering what she had,      
What eagle look still shows,
While up from my heart’s root     
So great a sweetness flows         
I shake from head to foot.


UM CASACO
W. B. Yeats (1865-1939)

Fiz um casaco de meu canto
e recobri-o com bordados
de velhos mitos retirados:
pescoço aos pés, forrava tanto.
Porém os tolos, dando um jeito,
usaram-no, roupa festiva,
no mundo, qual se a houvessem feito.
Seja meu canto assim vestido,
porquanto há mais iniciativa
em caminhar despido. p.71


A COAT
William Butler Yeats

I made my song a coat
Covered with embroideries
Out of old mythologies
From heel to throat;
But the fools caught it,
Wore it in the world’s eyes
As though they’d wrought it.
Song, let them take it
For there’s more enterprise
In walking naked.


YEATS, W. B.. Poemas. Tradução e introdução Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Art Editora, 1987.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

GENTE É POVO

Isac de Melo


Desde os primórdios da vida
A raça humana padece
Ao mesmo tempo em que cresce
Falta-lhe paz e comida
Cada pessoa nascida
Já deve, sem ter comprado,
Cresce pra ser convocado
Para se envolver em briga...
Gente é povo não formiga
Pra ser não visto e pisado

Duas guerras abalaram
Nosso povo, nossa gente
Países e continentes
Mutuamente se mataram
Bravos soldados tombaram
Até ter como legado
O Japão bombardeado
Por ser o pivô da intriga
Gente é povo, não formiga
Pra ser não visto e pisado

Hiroshima e Nagasaki
Não aferiram feridas
Quantos milhares de vidas
Ceifadas nesse combate
Não é comer ‘chocolate’
Ver seu amigo tombado
O seu país derrotado
Nas mãos de tropa inimiga
Gente é povo, não formiga
Pra ser não visto e pisado

Refugiados da Síria
Do Haiti do Paquistão
Do Egito do Sudão
Da Grécia e da Assíria
Uma operação Valquíria
De um Islã chamado estado
Buscando seu califado
Destruindo história antiga
Gente é povo, não formiga
Pra ser não visto e pisado

Nas baixadas nas favelas
No rol das periferias
Mães perdendo suas crias
Seus moços suas donzelas
Um tipo de caravelas
Onde o povo acorrentado
Morre asfixiado
Com febre ou dor de barriga
Gente é povo, não formiga
Pra ser não visto e pisado

Corredores de hospitais
Pessoas agonizando
Familiares chorando
Abandono de incapaz
Quem prover pão não tem paz
O planeta está lotado
Todos migrando prum lado
Prazer virando fadiga
Gente é povo, não formiga
Pra ser não visto e pisado

Por falta de defensores
Muitas almas nas cadeias
Pavilhões e celas cheias
Formando maus professores
Criminosos opressores
Tudo culpa do estado!
Dava pra ser evitado
Mas empurram com a barriga...
Gente é povo não formiga
Pra ser não visto e pisado

Chacinas desenfreadas
Com desenvolta perícia
Por comando de milícia
Vez em quando deflagradas
Ensanguentando as calçadas
Deixando o famigerado
Poder público algemado
Gestores fazendo figa...
Gente é povo, não formiga
Pra ser não visto e pisado

Esperança renovada
Enquanto houver suspiro
“Arma nenhuma dá tiro
Se não for manuseada”
Onde explode uma granada
Deixa um corpo mutilado
Talvez o próprio soldado
Tente andar e não consiga
Gente é povo, não formiga
Pra ser não visto e pisado

Será que existe esperança
Ou caminhamos pro fim
Essa resposta está sim
No rosto de uma criança
Sua aura limpa e mansa
Nos traduz esse recado
‘Eu sou você no passado’
Vê se me enxerga e se liga!
Gente é povo, não formiga
Pra ser não visto e pisado