terça-feira, 23 de junho de 2009

ANÚNCIO DA ROSA

Carlos Drummond de Andrade


Imenso trabalho nos custa a flor.
Por menos de oito centavos vendê-la? Nunca.
Primavera não há mais doce, rosa tão meiga
onde abrirá? Não, cavalheiros, sede permeáveis.

Uma só pétala resume auroras e pontilhismos,
sugere estâncias, diz que te amam, beijai a rosa,
ela é sete flores, qual mais fragrante, todas exóticas,
todas históricas, todas catárticas, todas patéticas.

                                               Vede o caule,
                                               traço indeciso.

Autor da rosa, n'ao me revelo, sou eu, quem sou?
Deus me ajudara, mas ele é neutro, e mesmo duvido
que em outro mundo alguém se curve, filtre a paisagem,
pense uma rosa na pura ausência, no amplo vazio.

                                               Vinde, vinde,
                                               olhai o cálice.

Por preço tão vil mas peças, como direi, aurilavrada,
não, é cruel existir em tempo assim filaucioso.
Injusto padecer exílio, pequenas cólicas cotidianas,
oferecer-vos alta mercancia estelar e sofrer vossa irrisão.

                                               Rosa na roda,
                                               rosa na máquina,
                                               apenas rósea.

Selarei, venda murcha, meu comércio incompreendido,
pois jamais virão pedir-me, eu sei, o que de melhor se compôs na noite,
e não há oito contos. Já não vejo amadores de rosa.
Ó fim do parnasiano, começo da era difícil, a burguesia apodrece.

                                               Aproveitem. A última
                                               rosa desfolha-se.


ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 1984.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Richard Rorty: filósofo da cultura

"Mas é revoltante pensar que nossa única

esperança de uma sociedade decente consiste

em amolecer os corações auto-satisfeitos de

uma classe que se dedica ao lazer."

Richard Rorty

 

Pensar filosoficamente não é atributo exclusivo do filósofo nem tampouco de quem estuda filosofia. Por longos séculos, a filosofia foi vista como a mãe de todos os saberes e nessa condição, inúmeras tradições filosóficas, encerraram-na numa espécie de redoma de cristal, sendo alcançada apenas por nobres espíritos que por meio de pensamentos altamente elaborados atingiam a Verdade.

O pensamento filosófico de Richard Rorty (1931-2007) caminha na contramão da tradição que busca uma verdade redentora, uma essência real das coisas, um meta-vocabulário ou um vocabulário ideal que contenha todas as opções discursivas genuínas. O trabalho rortyano de crítica estende-se para incluir ainda a filosofia analítica contemporânea, e quer conduzir ao abandono, tanto do modo antigo (metafísico), quanto moderno (epistemológico), de fazer filosofia. Isto é, na proposta "não-fundacionista" de uma filosofia trazida inteiramente para dentro do mundo (de nossas práticas), como interpretação e como formação (ou edificação), e não mais como uma espécie de "dona da razão".

Rorty pertencia à tradição neo-pragmatista norte-americana e foi um dos mais importantes filósofos contemporâneos. Uma das características mais marcantes de sua reflexão intelectual é a capacidade de construir diálogos entre tradições filosóficas que costumam ser tomadas de modo independente, e sugerir leituras tão inovadoras de outros autores que a história das idéias e o mapa dos problemas filosoficamente relevantes se vê redesenhado.

Para Rorty, é necessário redescrever a filosofia e sua tarefa, na qual ela aponte para um horizonte de utopia e esperança liberal, de cultura aberta, onde a imaginação seja valorizada como caminho poético para a construção de um futuro diferente, aceitando radicalmente a contingência e a finitude. Sua proposta de filosofia é de uma filosofia da cultura, para a qual o filósofo deve estar disposto a dialogar com as várias áreas das chamadas ciências humanas, principalmente com a literatura e a história.

Segundo Rorty, devemos evitar encapsular a filosofia como muitos pensadores têm feito, por isso, se faz necessário mudar a concepção a respeito da utilidade da filosofia. Isso será alcançado, se algum dia o for, por um longo e lento processo de mudança cultural, ou seja, de mudança no senso comum, mudança nas percepções disponíveis para ser impulsionadas por argumentos filosóficos. Nesse sentido, é que Rorty sugere abandonarmos a terminologia absoleta da filosofia, pois ela progride ao se tornar não mais rigorosa, mas mais criativa. Abandonar essa terminologia absoleta, segundo Rorty, torna-nos mais sensíveis à vida ao nosso redor, pois nos ajuda a parar de tentar cortar materiais novos, recalcitrantes para atender a antigos padrões.

Como pragmatista, Rorty bebe bastante do pragmatismo de John Dewey que ressaltava que a filosofia não pode oferecer nada mais que hipóteses, e essas hipóteses têm valor apenas à medida que tornam as mentes humanas mais sensíveis à vida ao seu redor. Isso leva Rorty a dizer que o progresso filosófico ocorre à medida que encontramos uma maneira de integrar as visões de mundo e as percepções morais herdadas de nossos ancestrais às novas teorias científicas ou às novas teorias e instituições sociopolíticas ou a outras inovações.

Nossa relação com a tradição, ressalta Rorty, precisa ser uma nova escuta do que já não pode mais ser ouvido, ao invés de um discurso sobre o que ainda não foi dito. Para ele, a glória do pensamento de um filósofo não é a de que ele inicialmente torna todas as coisas mais difíceis, o que não deixar de ser verdade, mas a de que no fim o filósofo torna as coisas mais fáceis para todo mundo. Rorty pensa na superação da tradição da metafísica Ocidental que faz alusão a Uma Descrição Verdadeira e que exibe o padrão subjacente à aparente diversidade.

Rorty pretende, de certa forma, uma literalização da filosofia, pois ele a ver apenas como mais um gênero literário. A proposta de Rorty é que possamos escrever sobre filosofia de modo não-filosófico, chegar a ela a partir do exterior, ser um pensador pós-filosófico. A grande crítica de Rorty a filosofia é que ela muitas vezes tornou o filósofo insensível para perceber o mundo a sua própria volta. O que é cômico em nós, ressalta Rorty, é que estamos nos tornando incapazes de ver coisas que qualquer outra pessoa pode ver – coisas como o aumento ou a diminuição do sofrimento – à medida que nos convencemos de que essas coisas são "meras aparências". É como se a reflexão filosófica tivesse tornado o homem inapto para o mundo. 

Por sua vez, a literatura tem desempenhado um papel imprescindível para a reflexão moral. Para Rorty, a literatura, e não a filosofia é a única capaz de promover a verdadeira noção de solidariedade humana, pois as palavras de romancistas como George Orwell e Vladimir Nabokov foram mais eficazes na tentativa de nos sensibilizar diante da crueldade que as indagações de inúmeros filósofos. Ele afirma que narrativas dramáticas podem muito bem ser essenciais para a escrita da história intelectual. Em vez do filósofo, Rorty pensa no romancista como aquele capaz de nos sensibilizar para os casos de crueldade e humilhação que muitas vezes não percebemos.

A reflexão filosófica elaborada por Richard Rorty é imprescindível a todas as pessoas interessadas em filosofia contemporânea e no que ela pode fazer pelo mundo moderno. Rorty transita muito bem entre as diversas tradições filosóficas, com leituras totalmente originais acerca dos mais diferentes pensadores, fato que torna o seu pensamento um dos mais combatidos e apreciados na atualidade.

 

Referências e sugestões:

RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. (Tradução Vera Ribeiro). São Paulo: Martins, 2007.

RORTY, Richard. Verdade e progresso. (Tradução de Denise R. Sales). Barueri, SP: Manole, 2005.

RORTY, Richard. Ensaio sobre Heidegger e outros: escritos filosóficos (2). (Tradução de Marco Antônio Casanova). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.

ARAÚJO, Inês Lacerda. Castro, Susana de (orgs). Richard Rorty: filósofo da cultura. Curitiba: Champagnat, 2008.

SOUZA, José Crisóstomo de (org.). Filosofia, racionalidade, democracia: os debates Rorty & Habermas. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
 

 

Isaac Melo



sexta-feira, 5 de junho de 2009

O POVO ACREANO

Océlio de Medeiros*

 

Sarapatel de tipos diferentes,

de raças e de sangues,

panelada da terra,

buchada ou maniçoba,

procede o povo do Acre da violência

da conquista da selva,

do domínio dos rios,

da ambição, da aventura.

Dos quatro cantos vieram várias levas

dos homens sem mulheres,

nortistas, nordestinos,

heróis do Paraguai,

foragidos do horror da Cabanagem,

da guerra de Canudos

e da maior das secas,

desde o devassamento.

Dos quatro cantos vieram logo atrás

dos homens da borracha

as caboclas e as brancas

para a rede das índias.

Os brabos e as mulheres que o seguiram,

as Donas do Ceará

e as Sinhás do Pará

abriram seringais.

Depois, quando a borracha foi pneu,

"polacas" foram polens,

sementes e matrizes,

que criaram raízes.

Foi assim que nasceu da descendência

da gente aventureira

o povo da fronteira

do noroeste acreano.

Nasceu mamando leite de seringa

e comendo borracha,

guerreando a Bolívia

e quebrando castanha.

 

Referência e sugestão:

MEDEIROS, Océlio de. Jamaxi: A Poesia do Acre. Rio de Janeiro: Arquimedes Edições, 1979.

 

* OCÉLIO DE MEDEIROS foi um dos intelectuais mais fantásticos e irreverentes que o Acre já teve. Nasceu em 1917 em Xapuri e faleceu em 2008. Escritor, poeta, professor, advogado e ex-deputado federal pelo Estado do Pará.

P.S. Estou lendo e pesquisando acerca de Océlio de Medeiros, assim que concluir estarei postando um pequeno artigo sobre esse grande humanista acreano.

Foto: Marcos Pasquim