quinta-feira, 5 de novembro de 2020

MI MARIDO ME OLVIDÓ

 Leila Jalul

 

Ler, ler, ler mais, foi a estratégia que usei para escapar da solidão em uma terra sem televisão. Lá pelos 17 anos, associei-me ao Clube do Livro. Não conhecia autores, não tinha indicações, o jeito era escolher pelo título.

Pelo correio chegavam pacotes e mais pacotes com meus eleitos. Gabriel García Marquez, Daniel Scorza, Carlos Fuentes e muitos simpatizantes do realismo fantástico. Aqui, acolá, um Jung, um Marx, um Freud. Era raro, mas lia. Ler não é bem o termo. Era uma verdadeira comilança de letras. E assim “li” Dr. Fausto, um castigo infausto, mas li. Crime e Castigo, Bom Dia para os Defuntos, entre outros, cuja escolha dos títulos revelava o tenebroso gosto de sofrer que me rondava.

Quando cansada da seriedade e da escuridão dos personagens, era na Corin Tellado e em outros ilustres novelistas açucarados que encontrava abrigo. Isso foi no tempo da febre dos livros de bolso. Não passei as páginas apenas dos melosos. Para distrair as ideias, não evitei Giselle, a Espiã Nua que Abalou Paris, os de faroeste (TEX), os de grandes tons de sacanagem, tipo Cassandra Rios e M.A. Camacho. E assim circulava entre o Marquês de Sade, Du Barry, Pompadour, Vargas Llosa, Oscar Wilde e o seu Retrato de Dorian Gray, até chegar no famoso Joyce e seu confuso Ulisses confuso.

Dos açucarados, guardo na memória, com saudade, a inveja que tinha dos personagens. Até hoje, acreditem, lembro de uma delas. Falo de uma noiva abandonada às vésperas do casamento. Já tinha até o bolo em camadas, com aquele casalzinho bizarro trepado na cumeeira e arrodeado de botões de rosas e mugues.

Não preciso contar da aflição da noiva desmanchada em lágrimas. Eu lia e chorava, também a ponto de ter que tomar 60 gotas de Gotas Preciosas, tudo para abrandar meu sofrimento, já que, pelo da noiva, nada podia fazer. Até hoje, se chorar muito, se me empanturro de sentimento ruim, tenho tendência a devolver para a natureza o favo de fel que mal-me–fez. Gotas Preciosas é um excelente remédio!

O caso desta moça, especialmente desta, acabou com meu sistema nervoso. Imaginem, até o bolo já estava pronto! Não é um crime? Pensem bem! Já se imaginaram numa catástrofe dessa monta?

Não lembro, não consigo lembrar, de jeito e maneira, quem era o autor ou autora da obra que tanto desgosto me causou. Acho que era a Corin Tellado. Que importa? Importa contar o final da novela que, por dever do contrato prévio com os leitores, foi feliz. Os pais dela, passado o impacto que o canalha, cachorro, safado, sin verguenza causou à filha, não contaram duas vezes e despacharam a menina para um Cruzeiro Marítimo. Destino? Adivinhem!

Ibiza, queridos, Ibiza! Teria melhor lugar no mundo para curar dor de abandono do que Ibiza? Duvido!

A menina entrou de corpo, alma e hímen no convés do luxuoso navio, ainda “consternada” (essa palavra me persegue! Carajo!), é bem verdade, mas esperançosa. A lembrança do maligno ainda era forte. Daria certo?, pensava com aguda tristeza.

Graças ao Bom Jesus dos Navegantes, deu. Ela, graças à sua beleza, também deu. E deu muito! Deu o resto da viagem toda.

Numa úmida e escura noite de mar abusado, saiu ao convés para respirar. Trajava um vestido esvoaçante, em tom lilás. No pescoço uma linda écharpe que o vento, venturosamente, tratou de levar. Ia baixar-se para apanhá-la quando o cavalheiro de terno escuro, que também tomava uma frescurinha, antecipou-se. O resto, todos podem e devem antecipar. Camarote de amantes é como sacrário.

Después que mi marido mi olvidó, fiz três cruzeiros, na esperança de encontrar uma alma generosa que me pudesse encarar (ou seria ancorar?). Estive em Buenos Aires, Fernando de Noronha e Búzios. E nada... Só vale Ibiza...

Melhor esquecer...

 

PS. MI MARIDO ME OLVIDÓ é mesmo o título de um romance de Corin Tellado. Pedi emprestado.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

TRÊS POEMAS DE FARIAS DE CARVALHO

 Meu outro mundo

 

Há entre mim e o mundo que me cerca

um outro, diferente, mais perfeito,

cheio de coisas simples, puras, – rosas,

estrelas e crianças saltitantes.

 

Nele não cabem marcos, nem bandeiras

que justifiquem ódios e agressões,

nem tambores de guerra, nem canções

para marcar o passo de assassinos;

 

porque meu mundo é um supermundo, reino

dos que encontraram a fonte e se banharam

de amor, de graça e se fizeram puros;

 

dos que têm o poder, pela renúncia,

de receber um golpe e devolvê-lo

sob a forma de um beijo ou de uma flor! p. 67

 

 

Canto negro

 

Este Clamor que o vento traz na voz

e chega a derramar-se no silêncio;

este sacolejar de mãos ossudas

crispadas sobre o tempo e sobre os mundos;

 

este berrar de pequeninos seres

grudado nesses peitos que já foram;

este bater de corpos mulambentos

chafurdando na lama dos prostíbulos;

 

este, é o canto dos injustiçados!

Tremei, senhores donos do universo,

que ele, vindo do bojo dessas noites

 

que dormem, podres, nos porões da história

vos tragará, para explodir, depois

na madrugada nova, que já tarda... p. 68

 

 

O maior Poema

 

O maior poema do mundo

é este que estou ditando

pela boca que não tenho

ou se tenho ninguém vê.

 

Vale a palavra muda

que inventei mas não disse.

Vale o anjo nadando

com asas sujas de nada

o nada que sabe a tudo

mas que esta boca que tenho

não pôde ainda provar.

 

Onde estará minha boca

não esta, porém a outra

que o meu Senhor me mandou

quando eu sem ser já me ia

fazendo o que agora sou

e que teimo em não saber?

 

Fica a palavra muda

ficam as asas do anjo

e fica o céu por escrito;

olhos, se existem

que leiam!

 

CARVALHO, Farias de. Pássaro de cinza. Manaus: Valer, 2000.