segunda-feira, 21 de outubro de 2024

ADONAI DE MEDEIROS: Jamachi: coisas da Amazônia

Jamachi: coisas da Amazônia, 1934.

 

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UMA EXPLICAÇÃO

Não sou candidato à Academia de Letras. Tampouco ao prêmio Nobel. Nem quero ser membro de Juri... Os contos são meus. Assunto da minha terra – o Amazonas. É regionalismo puro. Alguma fantasia. Quem achar que poderia sair melhor tem um recurso: as livrarias vendem papel, tinta, lápis, máquinas de escrever e outros artigos de que se servem os escritores sente à mesa e escreva... Se não tiver dinheiro para comprar o material suficiente – exceto a inteligência – venha a mim que eu forneço. Contanto que venha para a liça. Se não agradarem ao leitor, tenho a dizer que os contos são filhos desta coruja que sou eu. Eu os achei bons, ótimos mesmos. Por mim, estou contente. Sou muito egoísta.

 

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AS POMAS DE IACI

Adonai de Medeiros

 

Logo que a montaria encalhou na praia, à entrada do lago, arregaçamos as calças e nos dirigimos ao velho caboclo que recolhia num paneiro as raízes de macaxeira.

Estávamos dentro do grande lago em Manacapuru e tratávamos de aproveitar aquele chorrilho de feriados e dias santos que os primeiros dias de Novembro nos concediam, procurando passá-los da melhor maneira. Uma digressão pelas casas à margem do enorme lago era agradável e, por isso, pedimos uma canoa por empréstimo ao coronel Juvêncio, dono do barracão onde nos hospedamos e nos metemos à folia.

Éramos ao todo cinco: o Pimenta, que a par de boa voz tocava magistralmente o cavaquinho; o Salles, que reunia ao vezo de exímio bebedor de “Janauacá” o de bom violão; o Almeida, emérito no fazer soar o caracaxá; o Oliveira, que se fizera notável na harmônica, e eu, que brilhava por não saber nem cantar nem tocar, acompanhando-os nas repetidas saudações às garrafas da famosa aguardente amazonense.

Ao nosso cumprimento o caboclo respondeu com um “bom dia” acompanhado de um gesto à aba do chapéu de palha e, amarrando com umas embiras as bordas do paneiro, levantou-o ao ombro e conduziu-o para a barraca na terra firme. Acompanhamo-lo e, gente da cidade, curiosa, crivamo-lo de perguntas sobre o lugar e suas lendas. Ele, vergado ao peso do paneiro, cuspinhando para os lados, remexendo na boca a masca de fumo, respondia à nossa fala, com aquele jeito peculiar de quem envelheceu ao contato da natureza selvagem e maravilhosa do vale.

Entrando na tosca residência, toda de palha, ordenou à mulher nos servisse café batido ao pilão, e enquanto o saboreávamos, aromatizado com cravo, ele, cedendo à nossa insistência, começou a narrar uma das muitas lendas que os seus ancestrais lhe legaram:

– Foi ali, moços, no outro lado, e há muito que se passou, foi naquela margem onde está a tapera do Pedro Jerômo, aquele que matou a mulher por falsidade. Houve aqui nestas terras uma tribo de índios. O tuichaua, o velho Kemembaua, morreu há cinco anos; tinha uma filha, Iaci, linda entre todas as tapuias, de cabelos e olhos tão negros como as noites de tempestade; os seios turgidos davam a impressão de flechas retesadas num arco.

Toda a mocidade guerreira da aldeia desejava-a por esposa e era com ansiedade que esperava a celebração da sua puberdade. A maloca inteira venerava-a; sendo a sua palavra um oráculo, como me disse o velho pajé Muipiraua: uns diziam que o Grande Espírito a tinha feito nascer da Lua com o Sol; faziam-na outros gerada da Noite com o Dia.

Certa manhã em que ela se banhava no igarapé que fica atrás daquele cumaru, mostrando aos olhos invisíveis de Tupã o esplendor do seu corpo moreno, um branco, um viajor incumbido da catequese dos silvícolas, apareceu e, sem que ela pudesse evitar a insânia que sua beleza causara ao aventureiro, furtou toda a ventura do tapuio escolhido para seu marido...

Kemembaua, cientificado da afronta infligida à filha, lança o seu “Hi-o-há” de guerra, dardeja do arco e põe-se no encalço daquele que a maculara. O branco, sabedor do ódio que o seu ato motivara entre aqueles que tinha por dever chamar à civilização, tratou de fugir para lugar onde a ira dos ofendidos não o alcançasse. Vendo baldados os esforços para a captura do catequista, Kemembaua aplicou à filha, vilipendiada, a lei da tribo: sujeitou-a ao suplício de lhe cortar os seios.

E, sob a revolta que tal cena despertava na gente que a adorava, revolta velada pelo respeito aos desígnios do chefe, vindo através dos tempos, até eles, Kemembaua os lançou na água parada do lago. Muipiraua repetiu-me as palavras que proferiu:

– Iaci sofre porque branco fugiu.

Assim, o ídolo da maloca, com o peito em chaga, expirou a castigo tão cruel...

 

MEDEIROS, Adonai de. Jamachi: coisas da Amazônia. São Paulo: Gráfica São José, 1934. p. 9-12

 

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*Acerca de Adonai de Medeiros não foi possível encontrar quaisquer referências biográficas, além da que diz ser do Amazonas, no início da obra.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

QUATRO MOVIMENTOS: Luiz Bacellar

Quatro Movimentos, o terceiro livro do poeta amazonense Luiz Bacellar (1928-2012), publicado pela Editora Artenova, em 1975, do Rio de Janeiro. Com prefácio de L. Ruas e ilustrações de Van Pereira.

 

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VII

 

Uma rosa de sal, entretecida

de mágoa, de pavor, de angústia e espanto,

por espinhos de gelo guarnecida,

foi se lavrando ao longo do meu canto!

Uma rosa de sal! Não fenecida,

pelas salobras lágrimas, que enquanto

cantei fui derramando, foi nascida

como estalagmite do meu pranto.

Uma rosa de sal! Ai quem pudera,

nessa corola branca constelada

de brilhos claros, de perenes lumes,

ver todo o sentimento que a fizera

sem contudo a tomar, menos amada,

por rosa dolorosa e sem perfumes? p. 21

 

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VIII

 

Rosa do mar! Se o mar tivesse rosas...

Rosa do céu? Se o céu também tivesse

e uma estrelar corola compusesse

de fluidas lactescências vaporosas.

Rosa de lumes claros, de olorosas

opalescências, ciciar de prece

erguida à Virgem pelo que padece,

para tecer grinaldas luminosas!

Ó rosa de impossíveis... transparências

que minha mente cria e que minh’alma

procura nos espaços siderais!

Ó rosa de purezas e inocências,

rosa da fé, rosa da paz, da calma,

rosa do além, rosa do nunca mais... p. 22

 

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IX

 

Essa rosa farpada, essa reouvida

rosa inconsútil plena em ressonâncias,

essa é a rosa dos ecos de uma vida

feita em procura dela em fundas ânsias;

essa rosa que dói mas que é amada

assim mutável, desassossegada

girando em chamas com seu rubro lume

de redolente cor, claro perfume,

é rosa mais na dor, mais na vivência,

mais no vibrátil som que é sua essência:

deslumbramento de um destino adverso;

essa rosa contínua e ressonhada,

por pétalas de pálpebras formada,

é rosa renascida em sono e em verso. p. 23

 

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XIX

 

Esta lua é a dos loucos. E eu pressinto

que vizinho já sou dessa loucura...

No entanto sinto quanto a noite é pura

com um diurno sentimento de que minto

sorvendo o azul e trágico absinto

do luar: me garimpando na procura

de uma razão de ser... (Essa tortura

de pressentir o louco que em mim sinto!)

Luar peripatético e falaz,

deambulatório luar, atro e minaz:

versos contados por passadas lentas.

Pelo meu ritmo interior levado

eu vou compondo, a passo magoado

o poema. E enchendo as horas lutulentas. p. 34

 

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XX

 

O meu verso é um fragor: desmoronar -

me sinto quando escrevo. E o ruído é tanto

que vou com passo incerto no meu canto

como se caminhasse à beira-mar

num dia de ressaca sob um luar

como o de agora (a via-láctea é um manto

salpicado de sal, de prata e pranto)

em que as horas se esquecem de passar.

Meu verso é um natural correr de pena

que rasga, que destrói, mutila e mata

minhalma que é de espuma e de verbena:

é um vestido deixado sobre a cama,

vazio de um corpo amado. E me arrebata

no vácuo intenso do meu próprio drama. p. 35

 

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XXXIII

 

Nos meandros do verbo abrindo as claves,

supremas solidões de angústias tensas

num denso tumultuar de asas imensas

de sombras vivas em revoadas de aves,

guardas as mais recônditas sentenças:

negros silêncios de pesadas chaves,

marulho surdo de perdidas naves,

proas rompendo o duro mar que pensas...

Mar de secos sargaços e de ossuários

com as amplas solidões, vastos silêncios

das planuras mortais do irrevelado,

arcabouço de sonhos refratários

que, alta corola calcinando-os, vence-os

o sol do espanto, lívido e nevado. p. 49

 

BACELLAR, Luiz. Quatro Movimentos. Rio de Janeiro: Artenova, 1975. p. 21-23

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

INQUIETAÇÃO DE UM FETO: Adrino Aragão

 

Inquietação de um feto, livro de contos de Adrino Aragão, publicado em 1976, pela Casa Editora Madrugada. Adrino é manauara, nascido em 1936, integrante do Clube da Madrugada, e é considerado uma das grandes referências do miniconto no Brasil.

 

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inquietação de um feto

 

enfiou a mão na placenta e rompeu o cordão umbilical. o ar invadindo os pulmões se antepôs ao riso. apanhou a bússola, confirmou o roteiro da viagem ao planeta nunca explorado. sinto-me ridículo na roupa de astronauta mas pouco importa, já que eles me aclamam triunfalmente. na estação espero o trem que não chega porque nunca existiu. o importante é ir. por isso espero. cansaço. me liberto dos braços, pernas, intestinos, rins, coração e tudo mais:apenas a cabeça se mantém na posição anterior. flutuo como um balão. o menino passa batendo tambor. penso montar no cabo de vassoura e sair cavalgando pelo mundo. desisto. os bichos se escondem nas frutas. os galhos das árvores estão apodrecidos e os pássaros não cantam mais. no pico da montanha a águia faz o ninho. não sinto mais nem sede nem fome. não preciso me levantar. estou. sem braços. sem pernas. estou. a noção do tempo inexiste para mim. arranco os ponteiros do relógio. nem dia nem noite. vácuo. como nas sagradas escrituras. espero. desta vez, com os braços, pernas, rins, intestinos, coração e tudo mais. o vento açoita as árvores e logo cairão os frutos. o menino volta a passar, agora chorando porque o balão espocou. estalo os dedos e o menino sorri com outro balão que me sai das mãos. descubro em mim poderes mágicos nunca antes revelados. sorrio, eu que julgava não saber sorrir. decido. retorno à placenta e desta vez vou aguardar pacientemente os nove meses.

 

FREITAS, Adrino Aragão de. Inquietação de um feto. Manaus: Casa Editora Madrugada, 1976. p. 31-34

domingo, 22 de setembro de 2024

O TRÁFICO DE MULHER [NOS SERINGAIS DO ACRE]

Araújo Lima (1884-1945)

 

A prolação das massas colonizadoras consumou-se, no Amazonas, à revelia dos preceitos da higiene e da ciência econômica, sem os aprestos que a previdência dos povos cultos dispõe nos domínios destinados a abrigar populações imigradas, civilizadas ou por civilizar.

Há, porém, alguma coisa ainda a registrar. Ao colono ignorante e desaparelhado, com as mais negativas qualidades de adaptação, faltou até mesmo a assistência moral, afetiva e fisiológica da mulher.

A etapa a vencer na transmigração penosa, dos arenais calcinados do Nordeste para os semipousos lacustres da famosa Hiléia do Norte, foi sempre dura, áspera, dispendiosa.

Debitada, como parcela agravante da conta do freguês, a soma das despesas de viagem desde os sertões nordestinos aos recôncavos amazônicos, aportava a seu destino o futuro extrator já comprometido por uma dívida correspondente ao seu valor econômico, pela qual respondia a sua liberdade.

O homem chegava hipotecado, comprometido; impraticável, portanto, quase sempre o transporte de uma companheira, que tornaria exorbitante o valor estimativo do colono – o seu preço.

Esboçava-se, assim, uma sociedade singularíssima, tendo como decalque o agrupamento masculino ao invés da família; e, com o fenômeno, definia-se um paradoxo demográfico, de que nos dá testemunho esta estatística anômala, traduzida numa desproporção censitária: mais homens do que mulheres.

Operou-se, conseguintemente, com a expressão dessa fórmula de censo aberrante, uma contingência antinatural, gerada pela unilateralidade decorrente para a função genésica, mutiladora da espécie e comprometedora da normalidade orgânica do indivíduo.

Porque foi essa uma sociedade que se formou contrariando as leis naturais, ao sabor da sorte – da má sorte, aliás, – através de regiões enigmáticas, inexploradas, trancadas ao homem, quanto mais à mulher!

De Honoré de Balzac a Paul Bourget, o realismo, na literatura francesa vem demonstrando que a família é a verdadeira célula social. E Henri Bordeaux, num livro que é um excelso ensinamento evangélico da mais santa das indulgências – a de perdoar e de esquecer; Bordeaux, que é um dos grandes, profundos investigadores da psicologia social contemporânea, transmite-nos esta lição magistral, por ele aprendida de um mísero sofredor, lá pelas ondulações escarpadas das montanhas da Savóia: Não há uma “casa”, não há um “lar” verdadeiro, onde não arde uma chama, onde não se acende um fogão, onde não assiste o gênio tutelar da mulher.

Só lentamente passou ela a influir naquele mundo novo, aberto penosamente a uma colonização tumultuária e anárquica, angariada à custa de meios-valores econômicos – homens sem saúde, sem cultura, sem recursos.

Por muito tempo o homem lutou quase só nos altos sertões amazônicos.

A moral é a mais relativa das leis sociais: varia geograficamente, através do tempo, por pressão mesológica, por contágio de costumes, por determinação histórica, por atuação do momento.

Os preconceitos são infiltrações hereditárias, preceituadas pelo convencionalismo da ética, artificial ou legal, aceita ou decretada pelas sociedades.

Há, entretanto, na formação e evolução dos núcleos sociais, alguma coisa mais fatal que o despotismo atávico e mais incoercível que o voluntarismo governante – é a tirania das contingências. E ali, naquelas paragens quase misteriosas do Acre lendário, por volta de menos de meio século, o absolutismo do instinto se havia de chocar de encontro à muralha das premências ambientes, para desse entrechoque surgir um novo costume, uma prática nova, e, com ela, uma nova moral.

Transplantado para este solo cheio de antagonismos, sofre o homem, refletindo o contraste do meio cósmico no seu próprio senso psicológico, a subversão, a mutação de um sentimento inato, congênito, secular. Lutando com a falta da mulher, aceita-a como objeto de transação comercial, concorrendo para a implantação desse tráfico, senão generalizado ao menos adotado naqueles tempos remotos, cuja memória se vai já apagando sem que ao menos registrada fique a sua história.

A carência da mulher, dentro do seio de um organismo social que teve por gênese uma calamidade, ainda sem a prostituição a ulcerar-lhe a intimidade dos tecidos, criou, – na época de ebulição da vida acreana, na idade trepidante do contagioso delírio de grandezas no far-west amazônico, – um novo gênero de comércio, de “camelotage”, de “ciganagem” (esta a expressão perfeitamente ajustada à gíria local), que consistia no tráfico de mulheres decaídas, transformadas em objeto de negócio de certos agenciadores ou regatões. Praticavam tal comércio menos por falta de escrúpulo do que pelo desejo de bem servir a freguesia do alto; consignavam as “vênus” mercenárias, mediante fatura especificada em gastos e comissões, ao pessoal mais abonado dos seringais, contra resgate em borracha ou carta de ordem.

A resultante daquela aberração censitária, em função do amálgama de uma sociedade de originalidades chocantes, forneceu à crônica daqueles tempos incipientes, já hoje lendários, episódios impressionantes, com a tônica alternativamente dramática ou cômica, dos quais trasladamos dois específicos, desdobrados naqueles cenários selvagens, há por aí cerca de quatro decênios.

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A. B., guarda-livros de importante seringal do Alto Acre, exercendo aí a atividade de “faz-tudo”, exercício que lhe era facultado por uma cuidada educação de família ilustre, de cujo seio no Rio de Janeiro se desprendera ao impulso quase alucinado de uma aventura amorosa; mentalidade instável de estroina e sentimental, boêmio e misantropo, aventureiro e tímido, A. B. regressava ao “barracão”, do qual se ausentara por oito dias, em incursão pelo seringal adentro, até o “centro” distante ermo, através de varadouros inóspitos e igapós sombrios, em busca de uma borracha arrancada a fregueses mais negligentes, quando ao chegar foi acolhido com uma expressão dúbia, entre maliciosa e alvissareira, do “gerente”, que lhe anunciava, além da nova da passagem do “gaiola” X, ansiosamente esperada desde longos dias, o recebimento de um pacote de jornais, um volume de correspondência e... – enfeitando a narração das novidades com um ar comicamente misterioso – a “encomenda” que fizera ao comandante E. G. A cena fora movimentada pela concorrência de todos os habituês da loja do barracão: os demais empregados; os fregueses atraídos do centro pelo acontecimento da chegada de um navio, que há cerca de seis meses ali não aportava; alguns convalescentes, que em procura de pílulas ou cafés-panacéias se haviam ali homiziado, acossados pelas tremedeiras de sezões inveteradas; finalmente os “brabos” aparvalhados que haviam desembarcado recentemente do “gaiola”, pasmados numa alvar e meio atordoada curiosidade.

A. B., num instantâneo fenômeno de desagregação da personalidade, sente-se desfeito, sacudido por estremecimento estranho, tolhido por uma inibição brusca na audácia aventureira, caso inédito em sua acidentada história passional. O seu arquivo de conquistas mais ou menos fáceis recolhera, através de uma vida boémia e aventurosa no sul, lances mais ou menos emotivos, mais ou menos ousados; mas aquele aviso imprevisto despertou-lhe uma sensação nova, estranha, inexplicável, em que trepidava a sua emotividade, numa crispação histérica, paroxística, intimamente convulsiva, para se lhe derramar a alma logo após, como aniquilada, num delíquio sincopal.

Guiado por um gesto expressivo do “gerente”, que picarescamente lhe indicava a “encomenda”, depositada no quarto, para este se encaminhou sonambulicamente; mas, caminha e recua, quer e não quer, pretende ver de surpresa sem ser visto, surpreendê-la na atitude espontânea e natural... Banhado num estado emocional que não conhecia, agitado por uma ânsia que não sabia interpretar – uma espécie de desejo contraditório de ir e não ir, uma dúvida entre angustiosa e terna, consoladora e amedrontada, – segue, caminha vacilante, amortece as pisadas, retoma os passos, e assim, imperceptível, aproxima-se do local buscado. A emoção lhe hipertrofiara toda a vibração cardíaca e respiratória. Tremia e arfava. Mas não quer alcançá-la de chofre; queria vê-la sem ser visto. Foi-lhe fácil o intento, furando com o olhar voraz a fresta da “paxiúba” mal aparelhada; e abre-se-lhe então à pupila estreitada uma visão surpreendente que lhe compraz o espírito, enternecendo-o suavemente, com uma sedação instantânea. Era uma rapariga vistosa, de feições proporcionadas, morena clara, compungida na sua dor, numa atitude contrafeita, com uma expressão que dizia estar trabalhada por um pesar, que não conseguira lenir, e que se objetivava nas pálpebras entumescidas e conjuntivas avermelhadas, das quais corriam, de quando em quando, compassadas, si- lentes lágrimas. Embalava-se dolentemente numa rede e voltava os olhos, implorando, para uma oleografia suspensa à parede, com a imagem da Senhora do Perpétuo Socorro. Tudo nela refletia mágoa serena e digna.

A. B. perde a noção do tempo naquela contemplação. Dentro no seu ser, nos arcanos inacessíveis até aquele momento às reflexões do altruísmo, opera-se uma demonstração raciocinada: ali estava a mulher que seria sua por algumas “peles de borracha” e que, fascinada pelas mentirosas seduções daquele “inferno dourado” que a ele enganara tão torpemente, vinha arrebatada pela mesma ilusão enganadora, por essa miragem fatídica, e deixava talvez – e deixou certamente – uma afeição real, espontânea, gratuita. Estavam, em verdade, atingidos os dois pelo mesmo golpe do destino; eram dois mistificados por essa traidora tentação de um éden malogrado... Recua voluntariamente e reentra na “loja”, onde os circunstantes o recebem com estrepitosa ovação. Correspondeu de um modo vago, incompreensível de todos, que o julgavam tolhido de satisfação. E dentre os abraços a que ele automaticamente correspondia, um foi mais demorado, prolongou-se por mais tempo, enquanto o manifestante, um “freguês” abonado e com “saldo”, assim transmitia o seu entusiasmo: – É tão bonita que, se não a quisesse, com ela eu me casaria hoje mesmo. Desvencilhado do último abraço, A. B. chamou de parte o pretendente e interpelou-o: – Queres a moça para casar? Toma-a; é tua. É só pagares a fatura ao gerente.

E naquele mesmo dia, com as formalidades sumárias, perante o juiz distrital, realizou-se o casamento.

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Jazia sobre três tábuas, improvisadas em leito de morte, o corpo deformado de F. S., que um tronco de árvore gigantesca, ao ser por ele derrubada, às primeiras horas do dia, abatera inanimado e sem vida.

A triste nova correra, com a velocidade das “montarias” céleres, até onde as águas escassas daquela vazante extrema permitiam. E, depois de algumas horas, começaram a afluir os moradores das barracas daqueles arredores, após duas, três e até quatro horas de viagem. Já ao anoitecer chegava um dos mais retardatários, por de mais longe se ter movido. Cumprimenta os presentes, contempla o cadáver com desalento, e, aproximando-se da viúva, que chorosa velava à cabeceira do cadáver, aventurou: – Dona Isabel, a senhora quer se casar comigo? Ao que ela opôs, prontamente, a voz entrecortada por soluços: – Não posso, porque já estou comprometida com seu Serapião.

 

LIMA, Araújo. Amazônia, a terra e o homem. 4.ed. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: INL, 1975. p. 147-151 (Coleção Brasiliana volume 104)

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

REENCONTRO

Violeta Branca (1915-2000)

 

Na curva da lua nova perdi os meus sapatos.

Percorri tantos caminhos...

Nas cordilheiras geladas procurei a rosa branca

– todo sonho é uma rosa nascida entre os espinhos –

fiz as milhas submersas que o mar me convidou

segui o rumo das águias em busca de liberdade

no chão áspero criei raízes de amor profundo

de manso teci a renda feita de sol e neblina

fui estrela refletida no limo dos igapós.

Bebi o vinho das noites

afundei nas madrugadas

fui água de cachoeira

vento malsão nas marés

cavalguei nuvens escuras

abri as portas à chuva

conheci homens e feras unidos na mesma essência

cantei canções às abelhas

dei meu rosto ao sereno

meu gesto dei ao perdão

meu pranto regou os campos

os peixes me namoraram

fui concha no fundo d'água.

Criei um deus sem complexos

fiz milagres de ternura

ganhei troféus e palavras

contornei ilhas e portos

equilibrei-me em abismos

deslizei em sonhos mortos

renunciei à beleza

pintei a clara alegria

fui amante do pecado

noviça pura e fremente

rasguei silêncios e veias

preguei no deserto imenso

desembainhei a espada e degolei a ignorância

ofereci aos humildes a verdade do que penso.

Agora quero outra vez recompor a minha forma

recolher os meus pedaços

novamente ser mulher

– sou figura geométrica em busca de solução –

mas onde encontrar minha presença

minha fala, meu suor,

a ideia apregoada de todo o amor maior

na curva da lua nova ou na amarga solidão?


BRANCA, Violenta. Reencontro. In Revista da Academia Amazonense de Letras. Manaus: AAL, n.13, ano XLVIII, dezembro de 1968. p. 166-167

sábado, 14 de setembro de 2024

QUATRO SONETOS DE ROMEU JOBIM

Árvore Morta

 

Já não balanças, ao sabor do vento,

enchendo-nos de efêmera alegria,

nem és a confidente do tormento

humano, ou da ventura fugidia.

 

Já não te expandes para o firmamento

nem ouço, à tua fronde, a melodia

de alígero cantor que busca alento;

o lavrador em ti não vê magia...

 

Jaz, na campina, teu corpo estirado,

qual enorme gigante que deitasse,

após renhida luta, fatigado.

 

Mas berço, esquife, casa ou lenha pura

(em teu lugar já outra árvore nasce),

embora morta, o teu valor perdura. p. 14

 

Manaus, 11.5.1942.

 

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Paisagem rústica

 

Como a vida é risonha, assim distante

da bulha interminável das cidades!

Aqui frondeja um cumaru gigante,

que se ergue, altivo, em meio às tempestades;

 

ali se espanta uma inhambu, errante,

a fugir das insídias e maldades;

além suspira a juriti, arfante,

como a embalar as dores e as saudades.

 

E quando o sol descamba, ao fim do dia,

a alma da gente, leve, se inebria,

num clima bom de encantamento e festa.

 

Desce a noite. No espaço o luar flutua

e, no alto, branca, muito branca, a lua

semelha um coração sobre a floresta. p. 17

 

Abunã, 1.1943.

 

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A Vazante

 

Arrogante, soberbo, cheio, o rio,

transpondo as altas margens, imponente,

qual serpe de satânico assobio,

cobria as terras, ao fragor da enchente.

 

Com a vazante, porém, humilde, esguio,

vencido leão, sem garras, impotente,

chegado o tempo abrasador do estio,

deslizando ele vai, calmo e silente.

 

Também, no coração, as águas crescem

dos rios da Ilusão e da Esperança,

e tudo é sonho, força, alacridade.

 

Em seguida, no entanto, elas decrescem

e o coração, secando, é só lembrança

da enchente que passou, – a mocidade. p. 19

 

Rio Branco, Acre, 1943.

 

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Cromo

 

A tarde morre. No poente,

todo em chama, o sol se esvai.

E as árvores, brandamente,

Sussurram um lânguido ai.

 

Hora de sonho, esta! A gente

em pensamentos se abstrai.

Sopra brisa. De repente,

o crepe da noite cai.

 

A natureza esmaece

e, fatigada, adormece,

envolta no espesso véu.

 

Surgem as estrelas, bando

de criancinhas circundando

pelo terreiro do céu. p.27

 

Rio Branco, Acre, 1945.

 

JOBIM, Romeu. Cantos do caminho. Brasília: Trianas, 2003.

domingo, 25 de agosto de 2024

O SACERDOTE ENTENDERA

Romeu Jobim (1927-2015)

 


Pelo menos uma vez por ano, vinha ao seringal. Quando chegava, era uma festa. Tiros se disparavam e, logo depois, os interessados em batismos, crismas, casamentos e outros ofícios religiosos iam também chegando.

Os serviços sacerdotais duravam cerca de uma semana. Às vezes, sendo grande a demanda, um pouco mais. Se a procura excedia à expectativa, ou alguém, por motivo sério, não podia comparecer, até pelo rumo casamentos e batizados se realizavam.

Pelo rumo? Sim, o simpático reverendo se certificava do local da morada do solicitante e, a mão estendida na direção indicada, praticava o ato pleiteado.

Ao fim de cada encontro com o rebanho, embrenhava-se na mata, em caçada que envolvia uma noite, pelo menos, em espera de caça grande, de hábitos noturnos. Sim, o dinâmico sacerdote, além da paixão pelo ofício, tinha outra: a das caçadas. Sem aquele e sem estas, não sabe se conseguiria sobreviver.

Uma feita, eu era garoto, vi, no campo, que alguém, de batina, provocava o touro. Era o padre, chegando. Como o animal partisse para o ataque, resolveu tourear, usando a própria batina. Mas o touro, que era manso, parece que o reconheceu e desistiu do confronto. Estava-me divertindo com ele, explicou.

Querido por todos, nunca faltava à assistência periódica. Mas uma vez não veio. Adoecera. Em seu lugar veio um padre desconhecido que, de saída, descartou a possibilidade de atos pelo rumo. Um absurdo!, disse. E duvidava muito de que seu colega os praticasse. Não parou por aí: por isso ou por aquilo, casamentos e batizados deixariam de ser feitos. No tocante ao batismo, por exemplo, queria saber a religião do padrinho.

Informado de que um padrinho era espírita, estrilou: não batizava o guri! Ora, o escolhido para padrinho era o próprio dono do seringal. Mas Pedro Félix (este o nome do pai da criança), falou ao candidato a compadre:

– Não se preocupe. Eu converso com ele e resolvo o caso.

Abordado, o sacerdote se manteve irredutível. Isso, enquanto outras dificuldades criava para os interessados nos atos sacros. Pedro era um homem quieto, mas decidido. Foi até o interior da casa e, na volta, teve nova conversa com o reverendo.

Falou-lhe ao pé do ouvido e o padre substituto logo se rendeu a seus argumentos, celebrando o batizado. Foi mais longe: praticou todos os atos que estava dificultando. Cumprida a pauta, não esperou o dia seguinte. Caçada? Nada disso. Deu uma desculpa e nunca mais retornou ao seringal.

Restabelecido, o padre preferido voltou à rotina de suas viagens e caçadas. Adolescente, fui estudar na cidade próxima e, nesta, pude conhecê-lo melhor. Seu fã clube, ali, também era grande. Mas era famoso, ainda, pelas histórias que contava, de caçadas e pescarias.

Anos decorridos, em uma volta que o mundo deu, tornei à cidadezinha de meus pagos. Perguntei pelo velho sacerdote. Fora para os Estados Unidos e ali se dedicava à publicação de histórias fantásticas, relacionadas com índios, caçadas e pescarias, que vivenciara na selva amazônica. Alguns livros seus me foram, então, mostrados. Também nos States tornara-se celebridade.

Curioso, talvez o leitor queira saber o dito por Pedro Félix ao sacerdote que, uma feita, o substituiu. Pedro nunca revelou. Mas D.ª Marocas, velha danada para ouvir atrás das portas, costumava contar que, calibrado por generosa dose de pinga, Pedro simplesmente abotoou o padre substituto pelo colarinho da batina, mostrou-lhe o punhal à cinta e segredou-lhe:

– Escuta, padre podre, vai já batizar meu filho, com o padrinho que eu escolhi, senão meu punhal vai ver o que há por baixo dessa batina fedorenta, está entendendo?

Prudente, o sacerdote entendera.

 

JOBIM, Romeu. Entre crônicas e contos. Brasília: Centro Editorial, 2011. p. 126-128

domingo, 18 de agosto de 2024

AVELINO DE MEDEIROS CHAVES

Avelino de Medeiros Chaves in A Exploração da Hévea no Território Federal do Acre, Rio de Janeiro, 1913

Filho do coronel Guilhermino José de Medeiros Chaves e D. Antonia Gracindo de Medeiros Chaves, nasceu a 4 de novembro de 1875 no povoado Sítio do Meio, município de Propriá, e faleceu no dia 2 de junho de 1919 em San Sebastian, no reino da Espanha. Muito moço entregou-se à vida ativa do trabalho. Aos 17 anos retirou-se para o Pará, em cuja capital se empregou no comércio; mas atraído pela carreira militar, abandonou o balcão para verificar praça no Rio de Janeiro, tendo como aluno da Escola Militar prestado relevantes serviços ao Governo na revolução federalista de 1893.

Promovido a oficial por decreto de 8 de novembro de 1894, desligou-se das fileiras do Exército em 1899 por ter sido reformado no posto de 1º tenente, deixando de moto próprio de receber daí por diante os vencimentos da reforma. De volta ao Norte do país, concluiu o curso de agrimensura em Belém do Pará, de onde pela primeira vez partiu em viagem para o território do Acre. Dotado de distintas qualidades, cativante no trato social, acessível e generoso, facilmente insinuou-se no espírito do povo acreano, em cujo seio contava dedicados amigos e muitos admiradores Nas lutas pela reivindicação acreana contribuiu com o melhor do seu esforço para, de armas na mão ao lado dos patriotas Plácido de Castro, Gentil Norberto e outros, libertar do domínio estrangeiro grande parte do território brasileiro. Terminada a patriótica aventura e restituído à vida pacífica de sua profissão, internou-se na região do Jacó, onde após perigosa exploração fundou a margem direita desse rio a vasta propriedade Guanabara, na qual se estabeleceu definitivamente em 1900, resolvido a empregar toda a sua atividade na indústria extrativa da borracha. Foi demarcando terras e cultivando seu extenso seringal que chegou a acumular uma avultada fortuna superior a 2 mil contos, e destarte tido como o mais rico proprietário daquela zona.

Incansável advogado na defesa dos legítimos interesses do território, dirigia-se anualmente à capital do país para pugnar junto aos seus amigos do Congresso pela autonomia do Acre. Por três vezes prefeito do Departamento do Alto Purus, promoveu na sua profícua administração notáveis melhoramentos, tais como a criação da Escola Agrícola “Assis Brasil”, a estrada entre Sena Madureira e a Boca do Macauã e daí a São Bento, a disseminação do ensino público, a construção do varadouro da estrada do Xaburena ao rio Caeté e outros. Como prêmio pela sua ação benéfica em prol do desenvolvimento progressivo da Amazônia, apenas recebeu dos poderes públicos a patente de coronel da Guarda Nacional e da política regional a presidência da Comissão Executiva do Partido Republicano do Alto Purus.

Escreveu:

– A exploração da hévea no Território Federal do Acre: monografia apresentada à Exposição Nacional da Borracha. Um volume com várias fotografias, a carta geográfica do Acre, segundo o Atlas Homem de Melo, e um Anexo. Rio de Janeiro, 1913, 112, XX págs. in. 8º. Lth. Turnauer & Machado

– Memorial em favor da redução dos excessivos impostos que atualmente gravam a borracha do Acre, apresentado à comissão de finanças da Câmara dos Deputados pelo proprietário de seringais naquela região. No “Jornal do Comércio”, Rio de Janeiro, de 28 de setembro de 1915.

– Necessidades capitais da Amazônia: conferência realizada na Sociedade Nacional de Agricultura do Rio de Janeiro na sessão de 18 de novembro de 1918, sob a presidência do Dr. Miguel Calmon. Rio de Janeiro, 1918, 1-6 págs. in. 8º. Tipografia da “Revista da Época”. Publicada anteriormente no “O País”, de 21 de novembro, no “Estado de Sergipe” de 8 a 15 de dezembro do mesmo ano, no “Jornal do Comércio” de Manaus, de 18 de janeiro e na “Gazeta do Purus” de Sena Madureira, de 30 de janeiro a fevereiro de 1919.

 

GUARANÁ, Armindo. Dicionário Biobibliográfico Sergipano. Rio de Janeiro: Pongetti, 1925.

quarta-feira, 12 de junho de 2024

RIO SILÊNCIO: poemas de Antônio Moura

O JARDIM DO PALÁCIO

 

No princípio

tuas iris

             - águas

 

onde boiaram

minhas iris

             - algas

 

sob arcos

árabes: tuas

duas pálpebras

 

Agora

 

varando arcos,

águas, ardo

 

- silêncio –

 

entre as palavras p. 30

 

֎

 

A CASA

 

Ventre-casa de onde saímos

para entrar na casa-ventre de

quatro paredes onde chegamos.

Um entre, onde ficamos em

convívio: pai, filho, espírito, espanto

quando um a um de nós caímos

no tumulto do mundo, largados

à miragem de estar sozinho,

até ver a imagem no espelho

que reflete o invisível, até ouvir

o indizível chamado para

voltar ao ventre, casa

sem uma única parede entre as estrelas

de onde, talvez, nunca tenhamos saído p. 36

 

֎

 

TRAVESSIA

 

Um dia para atravessar – sol

entre duas noites imensas,

 

tendo como companhia o corpo,

este pequeno animal que não

 

te pertence e que, sem nada

perguntar, se oferece, devotadamente,

 

ao tempo, deus também é

o próprio corpo em silêncio

 

Um dia para transpor tendo por alimento

a poeira da estrada que se estende

 

branca, do nascente ao poente e

que, lentamente, transforma-se em

 

riacho negro que passa sob a

ponte suspensa da Via Láctea

 

Ir, à outra margem, de acordo

com o que a própria ida engendra

 

Ora com o silvo das serpentes sob o passo

Ora andando sobre as águas do poema p. 38

 

֎

 

Considerando a frio, imparcialmente,

que o homem é triste, tosse e, no entanto

se acomoda em seu peito avermelhado,

que ele nada mais é do que compor-se

de dias, que é lúgubre mamífero e se penteia,

considerando isso e lembrando que o dia

é um punhado de pó de estrelas

que a noite, com sua pá, atira

sobre as pálpebras de sono,

que o céu tem som violeta sobre os

cabelos deste homem que trafega no poente

com cheiro de pólvora nas mãos

e que este homem, quando penetra

em sua amada, quer, talvez, voltar

Que o Sol é a solidão às claras

que a lua é um búzio numa toalha gralhazul

gargalhando o destino em crateras

que a sombra que nasceu comigo

espera de meu corpo um gesto que

ele possa, com amor, repeti-lo

Que o silêncio dos noivos é a voz do Amor

procurando uma boca por abrigo

e que as palavras dos que não se entendem

não são mais palavras mas sanguessugas na língua

Quem, entre dentes, a Roda da Fortuna mastiga o Fracasso

e que o diabo bebe as suas fezes sorrindo ao meu lado

Lembrando que amanhã, pela manhã talvez,

o mar venha desfazendo meus membros de areia e

me fazendo lembrar que, ao mesmo tempo,

não lembro de nada, a não ser de um ventre p. 44

 

֎

 

RESIDÊNCIA

 

Ao pisar o jardim da casa

cuidado para não afundar

 

os pés até os tornozelos fincando

fundas raízes no chão, apegado ali,

 

estátua plantada entre flores,

não haverá como ir ao mar

 

quando assolado pelo verão,

nem voltar ao calor do leito

 

se flagelado pelo inverno

Vivemos partindo de uma morada

 

que se ergue em todo lugar com

telhas de nuvens e paredes de vento

 

Não há o que abandonar quando,

caracol inverso, levamos a casa dentro p. 64

 

֎

 

Feito Ishmael em Moby Dick,

sempre que sinto na boca uma

 

amargura crescente, sempre

que há em minha alma um

 

novembro úmido e chuvoso

é tempo de fazer-me ao mar.

 

E munido de quase nada, só

da palavra que é puro sopro,

 

através dela inflo a vela e parto

em dois o ar e a água que levam

 

a asa da alma e o casco do corpo

ao encontro do belo monstro

 

que acena do horizonte com seu

olhar verde e vivo: o Desconhecido,

 

o sempre bem vindo irmão-

gêmeo da criação, ladrão do fogo

 

lançando envolto em nuvens

pelas frestas dos aposentos

 

o seguinte clarão: toda a água

em volta da casa já está estagnada,

 

pasto para hordas de mosquitos.

E, ouvindo isto, feito Ishmael

 

parto em dois o mar – poema

sempre a um passo do abismo p. 70

 

֎

 

A SOMBRA DA AUSÊNCIA

 

O corpo vai, a sombra fica.

Um eco sem voz que assombra

 

a sala, a mala sendo arrumada

para a viagem, que, dia-a-dia

 

se faz um pouco sem saber se

é volta ou ida – O copo quebra,

 

o sabor fica, a aura de um hálito

em torno à boca que se intensifica,

 

quando um conhecido fantasma

passa pelos terraços da memória

 

e evoca um nome, um aroma, uma

hora perdida entre as folhas secas

 

de um outono que se deteriora

conforme a mão do inverno o toca.

 

O céu se ensombra, o azul fica.

Em alguma dobra das pálpebras

 

da íris, dos cílios, sua luz habita p. 82

 

 

MOURO, Antônio. Silence river (Rio silêncio). Translated by Stefan Tobler. Todmorden (Inglaterra): Arc Publications, 2012.

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Silence river (Rio silêncio), do poeta e tradutor paraense Antônio Moura, edição publicada pela editora inglesa Arc Publications, em 2012. O livro, em 2008, recebeu o Prêmio John Dryden, na John Dryden Translation Competition (Londres – Inglaterra), com tradução vertida para o inglês por Stefan Tobler. A 1ª edição de “Rio Silêncio” é de 2004, pela Lumme Editor, de São Paulo.

Antônio Moura é autor, entre outros, de “Dez” (1996); Hong Kong & outros poemas (1999); A sombra da Ausência (2009) e A outra voz (2018).