Nos ultimos dias de dezembro, no Senado
Federal, ao apagar das luzes, Ruy Barboza, em discursos monumentais, fez
reviver a tragedia do «Satelite». A recordação dos fuzilamentos que
ensanguentaram o tombadilho do navio sinistro e entenebreceram a civilização
brazileira, deu lugar a calorozas explicações de diversos parédros, cada qual
eximindo-se da tremenda culpa, relembrada pelo verbo divino de Ruy Barboza ali,
no Senado da Republica, aos senadores atonitos. Fizeram-se revelações
interessantes. Recordaram-se os tristes epizodios da revolta da maruja, ao
alvorecer do quatrienio Hermes. Mas a responsabilidade da monstruosa
carnificina ficou no misterio das razões de Estado, impenetravel, impunivel. O
Acre foi citado amiude em ambas as casas do Congresso, a propozito do
incidente, não na lembrança patriotica de suas necessidades vitais, mas o Acre
degredo, lugar de coito e homizio, ante-camara da morte, que ia receber as fézes
da anarquia, na leva de deportados de que, pela segunda vez, se expurgavam as
prizões da metropole. Convem ler as palavras do sr. deputado Flores da Cunha:
«Era delegado de policia e fui incumbido de ir
à detenção verificar os assentamentos a respeito de mais de mil individuos
prezos.
Fil-o com cuidado e só achei em condições de
deportação cento e poucos homens e 44 mulheres, todos com muitas entradas na
prizão e individuos de má nota.»
Esses duzentos exemplares da fauna criminal do
Rio de Janeiro foram destinados ao Acre... Mandava-os o Governo á região,
porque o Governo ainda vive a supor que o Acre é aquele ponto sinistro do paiz
em que o organismo mais robusto não escapa ao germen da morte. Não eram
elementos de trabalho e de inteligencia que o Governo destinava ao Territorio,
eram condenados ao impaludismo.
Já em 1905 o Governo fizera despejar no Acre o
rebutalho das ruas cariocas, colhido nas mazorcas de novembro. Ao Juruà coube
farto quinhão dessa prodigalidade povoadora.
Quazi todos morreram. Não de molestias
contraidas na região, infecionados durante a longa travessia pela imundicie do
bôjo dantesco dos navios do Lloyd e 3ª. classes dos gaiolas fluviaes.
Limparam-se as prizões do Rio, mas abriram-se
centenas de sepulturas nos barrancos acreanos. A policia fora de sabio alvitre,
duplamente pratico: varrera a ralè perigoza e desordeira das ruas tumultuosas
da metropole e a fama trêda da insalubridade regional alcançara consagração
oficial, documentada pelo morticinio, que as cruzes negras ainda marcam em
varios pontos.
Ora, o Acre, como toda a Amazonía, é conquista
excluziva do nortista, principalmente do cearense. Foram eles quem, desajudados
do favor oficial e largados de Deus, navegaram arrojadamente os cursos
fluviais, penetraram as florestas dissipando-lhes a treva do misterio,
devassando-a em todos os quadrantes, varrendo-a de selvicolas hostis,
povoando-a, iniciando uma industria que logo se tornou a segunda fonte de
riqueza nacional. Não lhes deu apoio algum o Governo. Quando vizinhos
turbulhentos, arrimados em Tratados deprimentes, que lhes cediam a região, numa
lastimavel inciencia da riqueza que se perdia, pretenderam apoderar-se da terra
magnifica, em pleno e assombrozo florecimento, perturbando-lhes a posse com
suas àlgaras invazoras, foram ainda eles quem, esquecidos pelo Governo,
mantiveram o dominio. Valeu-lhes na conjuntura o genio tutetor de Rio Branco,
aproveitando-se da situação para um ajuste diplomatico difinitivo e
reivindicador. O Brazil inteiro delirou na alegria da victoria. E o Governo
entrou a exercer sobre o novo patrimonio a ação de sua soberania, expressa na
arrecadação do quinto da produção regional, talqualmente a metropole portugueza
extorquia da exploração aurifera o seu quinto de oiro.
Lutavam os seringaes com a falta de braços à
industria do oiro negro.
A situação industrial periclitava na apertura
do encargo do povoamento, a expensas particulares. Os Prefeitos reclamavam
medidas oficiais que rumassem á região da borracha farta onda imigratoria. Os
legisladores, absorvidos por outros problemas, não tinham tempo para as
picunhas relatadas pelos Prefeitos. E em 1905 viu-se este cumulo: o Congresso, pelo
orgam da comissão de Justiça da Camara dos Deputados, confessava lizamente que
desconhecia as condições materiais e sociais do Territorio! A confissão
surpreendeu o Acre, mas alertou o Governo. Alertou-o no sentido de povoa-lo. E
ao mesmo tempo, em 1905, que o Congresso recuzava aprovação a uma emenda do
deputado Justiniano de Serpa, mandando aplicar cem contos á instrução da
infancia acreana, o Poder Executivo mandava despejar no Acre os desordeiros da
Saude e do Morro do Senado, improvizadores do Porto Artur, quando já não
havia combustores da iluminação publica a quebrar e bondes e destruir...
E' certo que os seringais nada lucrariam, nem a
nacente sociedade acreana adquiriria elementos de trabalho e de ordem. Em
compensação varria-se o lixo humano da metropole, a burguezia carioca mantinha
a integridade de suas posses e de seus untos e a policia ficava socegada. As
cruzes dos barrancos assinalam o gesto colonizador do Governo Federal, em prol
do Acre...
O gesto de 1905 repetiu-se em 1910. Rebela-se a
maruja na ilha das Cobras. Mais de mil individuos pejam as prizões do Rio de
janeiro. A policia seleciona os malfeitores mais perigozas, gente contumaz no
crime. E essa fina flor da criminologia nacional foi destinada ao Acre. Cento e
tantos degenerados e 44 marafonas apanhadas na mizeria dos alcoices!
Os bons fados acreanos livraram-no dessa
imundicie social...
E' precizo reler a historia de nossa existencia
colonial para encontrar um símile. Precizando Portugal colonizar o
Brazil, declarou-o coito e homizio. Os delinquentes reinois que se quizessem
furtar á dura justiça d'el-rei, poderiam vir livremente para a colonia
americana. Vieram milhares. E essa recua de malfeitores de todos os matizes
criminais, no bôjo das caravelas, fez-se de panos enfunados para o Brazil, no
Brazil estabeleceu-se, no Brazil inoculou o germen da dejenerecencia que lhe
corroia a moral, caldeando seu sangue corrompido com a indolencia atavica do
negro e o sangue puro do caboclo.
Mas isso foi em 1530. Em nossos dias o Brazil
revive a incuria daquele seculo. E o Congresso Nacional recorda a providencia,
discute-a, sanciona-a, sem que uma voz se levante contra o fato, em beneficio
do Acre, para bradar aos legisladores que essa horda de mizeraveis criminozos,
que a justiça não quiz punir e o Estado não quiz alimentar nas prizões, não
pode emparelhar com os seringueiros da penetração amazonica, com os herois da
reivindicação acreana; não é essa a gente de que o Acre preciza. O que o Territorio
reclama dos Poderes Pu[b]licos é gente de trabalho e de intelijencia, que lhe
povôe os seringais, lhe arroteie as terras, maneje a enxada, movimente o arado
e desenvolva a riqueza maravilhoza existente e inexplorada no seio de suas
florestas infinitas.
O Acre coito e homizio da anarquia e do crime é
uma afronta ao seringueiro!
CRAVEIRO COSTA
Jornal O Cruzeiro do Sul, Cruzeiro do Sul-AC, 7
de março de 1915, Ano X, N° 416, p. 2
Nenhum comentário:
Postar um comentário