terça-feira, 17 de junho de 2025

CRAVEIRO COSTA: Deportação para o Acre (1915)

 

Nos ultimos dias de dezembro, no Senado Federal, ao apagar das luzes, Ruy Barboza, em discursos monumentais, fez reviver a tragedia do «Satelite». A recordação dos fuzilamentos que ensanguentaram o tombadilho do navio sinistro e entenebreceram a civilização brazileira, deu lugar a calorozas explicações de diversos parédros, cada qual eximindo-se da tremenda culpa, relembrada pelo verbo divino de Ruy Barboza ali, no Senado da Republica, aos senadores atonitos. Fizeram-se revelações interessantes. Recordaram-se os tristes epizodios da revolta da maruja, ao alvorecer do quatrienio Hermes. Mas a responsabilidade da monstruosa carnificina ficou no misterio das razões de Estado, impenetravel, impunivel. O Acre foi citado amiude em ambas as casas do Congresso, a propozito do incidente, não na lembrança patriotica de suas necessidades vitais, mas o Acre degredo, lugar de coito e homizio, ante-camara da morte, que ia receber as fézes da anarquia, na leva de deportados de que, pela segunda vez, se expurgavam as prizões da metropole. Convem ler as palavras do sr. deputado Flores da Cunha:

 

«Era delegado de policia e fui incumbido de ir à detenção verificar os assentamentos a respeito de mais de mil individuos prezos.

Fil-o com cuidado e só achei em condições de deportação cento e poucos homens e 44 mulheres, todos com muitas entradas na prizão e individuos de má nota.»

 

Esses duzentos exemplares da fauna criminal do Rio de Janeiro foram destinados ao Acre... Mandava-os o Governo á região, porque o Governo ainda vive a supor que o Acre é aquele ponto sinistro do paiz em que o organismo mais robusto não escapa ao germen da morte. Não eram elementos de trabalho e de inteligencia que o Governo destinava ao Territorio, eram condenados ao impaludismo.

Já em 1905 o Governo fizera despejar no Acre o rebutalho das ruas cariocas, colhido nas mazorcas de novembro. Ao Juruà coube farto quinhão dessa prodigalidade povoadora.

Quazi todos morreram. Não de molestias contraidas na região, infecionados durante a longa travessia pela imundicie do bôjo dantesco dos navios do Lloyd e 3ª. classes dos gaiolas fluviaes.

Limparam-se as prizões do Rio, mas abriram-se centenas de sepulturas nos barrancos acreanos. A policia fora de sabio alvitre, duplamente pratico: varrera a ralè perigoza e desordeira das ruas tumultuosas da metropole e a fama trêda da insalubridade regional alcançara consagração oficial, documentada pelo morticinio, que as cruzes negras ainda marcam em varios pontos.

Ora, o Acre, como toda a Amazonía, é conquista excluziva do nortista, principalmente do cearense. Foram eles quem, desajudados do favor oficial e largados de Deus, navegaram arrojadamente os cursos fluviais, penetraram as florestas dissipando-lhes a treva do misterio, devassando-a em todos os quadrantes, varrendo-a de selvicolas hostis, povoando-a, iniciando uma industria que logo se tornou a segunda fonte de riqueza nacional. Não lhes deu apoio algum o Governo. Quando vizinhos turbulhentos, arrimados em Tratados deprimentes, que lhes cediam a região, numa lastimavel inciencia da riqueza que se perdia, pretenderam apoderar-se da terra magnifica, em pleno e assombrozo florecimento, perturbando-lhes a posse com suas àlgaras invazoras, foram ainda eles quem, esquecidos pelo Governo, mantiveram o dominio. Valeu-lhes na conjuntura o genio tutetor de Rio Branco, aproveitando-se da situação para um ajuste diplomatico difinitivo e reivindicador. O Brazil inteiro delirou na alegria da victoria. E o Governo entrou a exercer sobre o novo patrimonio a ação de sua soberania, expressa na arrecadação do quinto da produção regional, talqualmente a metropole portugueza extorquia da exploração aurifera o seu quinto de oiro.

Lutavam os seringaes com a falta de braços à industria do oiro negro.

A situação industrial periclitava na apertura do encargo do povoamento, a expensas particulares. Os Prefeitos reclamavam medidas oficiais que rumassem á região da borracha farta onda imigratoria. Os legisladores, absorvidos por outros problemas, não tinham tempo para as picunhas relatadas pelos Prefeitos. E em 1905 viu-se este cumulo: o Congresso, pelo orgam da comissão de Justiça da Camara dos Deputados, confessava lizamente que desconhecia as condições materiais e sociais do Territorio! A confissão surpreendeu o Acre, mas alertou o Governo. Alertou-o no sentido de povoa-lo. E ao mesmo tempo, em 1905, que o Congresso recuzava aprovação a uma emenda do deputado Justiniano de Serpa, mandando aplicar cem contos á instrução da infancia acreana, o Poder Executivo mandava despejar no Acre os desordeiros da Saude e do Morro do Senado, improvizadores do Porto Artur, quando já não havia combustores da iluminação publica a quebrar e bondes e destruir...

E' certo que os seringais nada lucrariam, nem a nacente sociedade acreana adquiriria elementos de trabalho e de ordem. Em compensação varria-se o lixo humano da metropole, a burguezia carioca mantinha a integridade de suas posses e de seus untos e a policia ficava socegada. As cruzes dos barrancos assinalam o gesto colonizador do Governo Federal, em prol do Acre...

O gesto de 1905 repetiu-se em 1910. Rebela-se a maruja na ilha das Cobras. Mais de mil individuos pejam as prizões do Rio de janeiro. A policia seleciona os malfeitores mais perigozas, gente contumaz no crime. E essa fina flor da criminologia nacional foi destinada ao Acre. Cento e tantos degenerados e 44 marafonas apanhadas na mizeria dos alcoices!

Os bons fados acreanos livraram-no dessa imundicie social...

E' precizo reler a historia de nossa existencia colonial para encontrar um símile. Precizando Portugal colonizar o Brazil, declarou-o coito e homizio. Os delinquentes reinois que se quizessem furtar á dura justiça d'el-rei, poderiam vir livremente para a colonia americana. Vieram milhares. E essa recua de malfeitores de todos os matizes criminais, no bôjo das caravelas, fez-se de panos enfunados para o Brazil, no Brazil estabeleceu-se, no Brazil inoculou o germen da dejenerecencia que lhe corroia a moral, caldeando seu sangue corrompido com a indolencia atavica do negro e o sangue puro do caboclo.

Mas isso foi em 1530. Em nossos dias o Brazil revive a incuria daquele seculo. E o Congresso Nacional recorda a providencia, discute-a, sanciona-a, sem que uma voz se levante contra o fato, em beneficio do Acre, para bradar aos legisladores que essa horda de mizeraveis criminozos, que a justiça não quiz punir e o Estado não quiz alimentar nas prizões, não pode emparelhar com os seringueiros da penetração amazonica, com os herois da reivindicação acreana; não é essa a gente de que o Acre preciza. O que o Territorio reclama dos Poderes Pu[b]licos é gente de trabalho e de intelijencia, que lhe povôe os seringais, lhe arroteie as terras, maneje a enxada, movimente o arado e desenvolva a riqueza maravilhoza existente e inexplorada no seio de suas florestas infinitas.

O Acre coito e homizio da anarquia e do crime é uma afronta ao seringueiro!

 

CRAVEIRO COSTA

 

Jornal O Cruzeiro do Sul, Cruzeiro do Sul-AC, 7 de março de 1915, Ano X, N° 416, p. 2

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