terça-feira, 28 de dezembro de 2021

CLENILSON BATISTA, UM ARTISTA ACREANO CONTRA A SEDUÇÃO COLONIAL

 João Veras


Conheci Clenilson Batista quando conheci o bairro da capoeira, o fabuloso mundo da minha infância, da nossa infância.  Nasci no bairro da cadeia velha, onde o rio acre passa nos quintais. Aos oito anos, em plena copa de 1970, fui morar ali, agora próximo ao igarapé da maternidade, em que, como no rio, se tomava banho e pescava. Hoje tornado canal de esgoto construído em moderna alvenaria justo pelo governo da sustentabilidade ambiental. 

A capoeira, é assim que nos reportamos ao bairro, fica no centro da cidade ao lado do estádio José de Melo, em que acontecia de tudo, inclusive o campeonato acreano de futebol que só tinha time de Rio Branco. A capoeira sempre esteve perto de qualquer coisa: dos circos que circulavam pela região, dos cines Rio Branco e Acre, dos poucos hotéis e clubes de bailes e shows, do mercado municipal, das pontes que ligam o primeiro distrito ao segundo, das escolas, da praça central, da catedral, do primeiro supermercado, do rio acre...

O bairro tinha pelos fundos uma extensa área verde fechada que chamávamos de Mata da Guidinha, a nossa floresta encantada. Eu morava na travessa Maria Amélia, uma rua sem saída para seguir caminho (quem entrava tinha que voltar por onde entrou), ambientes de muitos duelos, depois das matinês, entre zorros, dolars furados, sansões e dalilas. Templo do convívio de crianças amigas só para as funções comunitárias como jogar futebol, inventar brincadeiras, tomar banho no igarapé, ir para escola, para o cinema, pular muro do estádio, trocar gibis e para o mundo juntos. Também para brigar, para ficar de bem, para brigar de novo, para ficar de bem de novo, sonhar e realizar todo o tempo. O que faltava na capoeira? Ninguém de lá jamais soube.

Quando cheguei Clenilson já estava lá. Ele, o irmão Clevisson, as quatro irmãs, seu pai e sua mãe. Também uma reca de meninos e meninas espalhados pelo bairro, seus parentes, seus cachorros... Mas foi junto com os dois irmãos que a música ficou em nós três dali em adiante. Com as mesmas referências musicais nacionais, internacionais e locais, chegadas principalmente pelo cinema e pelo rádio, fomos construindo o nosso jeito de reproduzir e principalmente de criar. Fomos nos fazendo inventores de si e do mundo pelo caminho da música.

Disso resultou, entre outras coisas, o Grupo Capu, hoje conhecido como uma banda de rock acreana de músicas autorais. Nascemos pela primeira vez na versão de 1980 do Festival Acreano de Música Popular, o FAMP. Quando nem sabíamos tocar instrumento, mas tocávamos. Os dois, violão, e eu flauta doce, acompanhados pela banda-base do festival. Pitico (o Toin, também da capoeira) era o nosso quarto elemento que tocava percussão. Eram batidas e baladas de rock.  Do tipo nosso de rock com flauta e percussão. Depois xote, baião, forró, lambada, balanço, balada e não sei mais nada, inclusive o que possa ser estilisticamente incomparável. 

Com a morte de Pitico, chegou a bateria autoral, potente e criativa de Hermógenes. Clevisson se tornou baixista e a minha flauta doce virou transversal. Vieram mais composições que, no conjunto, foi imprimindo uma musicalidade, formas de cantar e de falar com textos inerentes ao momento e ao lugar em que vivíamos. O momento político era da ditadura militar. Letras e atitudes, enfim, de maneira nenhuma indiferentes e bem fincadas na vida cotidiana de uma Rio Branco e uma capoeira vivas política e culturalmente. Nada igual. Conseguimos não ser a pretensão da cópia. Éramos nós próprios, o que quer dizer do nosso jeito, cantando e tocando a cidade.

Depois, todos nós fomos nos espalhando, cada um acomodado/incomodado esteticamente no que individual e coletivamente foi se achando. Criamos um lugar de encontro chamado Os Alquimistas – tendo como elo o músico mineiro Heloy de Castro – a tocar de bar em bar pela cidade – lugares possíveis para divulgar a música que fazíamos. Também nos associamos a uma ideia/luta em defesa da cultura artística local e contra o poder estatal forjado de tanto engano social, coisa dessa política da manutenção do status quo. Por isso, fomos juntos censurados justamente pelo governo que dizia ter chegado para acabar com a censura. Encontramos uma maneira de não largar o nosso canto, uma forma de continuar juntos, quando a individualidade foi dando a forma para cada um de nós. E cada um virou um de si próprio integrado ao outro. Cada um no seu sistema de viver, de se situar no mundo. Uma forma de ser – num ambiente cultural como o nosso aqui – que se faz sempre juntos.

Essa contextualização memorialista de minha parte foi necessária para situar um pouco o ambiente de onde surge um dos personagens mais importantes da história contemporânea da cultura acreana, que é Clenilson Batista.

Clenilson, sempre desassossegado, não ficou só na música, forma estética pela qual mais criou/cria. Escreveu Seringal Astral e A Lenda do Reino dos Beija-flores, obras que refletem o modo só seu de perceber o mundo que se vive na Amazônia lançando-se na aventura/ventura de querer e, por querer tanto, viver/imaginar outro. A produção de Clenilson tanto musical quanto literária se funda na vontade de alterar o que está posto, não com as armas da violência, nem com outro tipo dela, a política institucional, mas com a potência do sonho, da imaginação, da criação, da arte.

No campo das ideias contidas em suas obras, Clenilson desenvolveu uma teoria livre para possibilitar que os outros consigam compreender esse modo (que parece se revelar como uma cosmologia própria), que ele vai classificar como Lendologia/lendologismo.

Pela sua complexidade, não é possível abreviar aqui o tanto de significado produzido por esse seu sistema, cuja base se sustenta nos elementos da natureza, da magia e na ideia (utópica?) de uma outra humanidade que tenha o amor como fundamento. Estou correndo o risco aqui de simplificar (senão já praticando a redução), o que só pode acontecer como justo reflexo de meus limites diante da obra de Clenilson. Seria preciso de mais fôlego. Aqui tenho objetivo mais ameno.

Confesso que é na música onde mais toca em mim Clenilson. Por isso quero chamar atenção para duas obras suas mais recentes: Cidadão de Bem, balada cuja letra vale por um tratado de política, do ponto de vista de quem questiona o poder institucional, um libelo anarquista (diriam cientistas políticos eurocêntricos do tipo que só aceita ideia se for nascida de seu lugar de conhecimento), cujo efeito de duplo sentido revela a posição crítica de quem tem sido desde sempre vítima do poder dos estados-nações e suas estruturas históricas de governos centralizados/mantenedores da condição moderno-colonial.

Por razões de espaço, não há como me dispor a fazer aqui uma análise da letra de Cidadão de Bem, como eu gostaria. Porém, valem algumas observações inadiáveis para o contexto deste breve escrito.

A música começa afirmando: “Você é livre, está na Constituição, você é livre se for da Nação”. É possível observar que neste trecho é constatada e questionada a ideia de liberdade reduzida ao espaço do estado e sua normatividade (você só é livre se integrar e for da vontade da nação), isto é, aduzindo que fora de tal espaço político não há liberdade senão interna corporis a ele (a do seu tipo). No mesmo passo, a letra afirma a liberdade do “cidadão”, apesar do estado-lei – como se dissesse, e diz, “você é livre” e pronto, que “se foda a nação” que não te quer livre desde que pela sua ideia de liberdade normativa. O segundo sentido se revela mais que uma negação do primeiro, o seu questionamento.

No estribilho, que segue o mesmo efeito de duplo sentido, a oração “se for da lei”, quando lida, expressa de forma literal a ideia de condição, mas quando ouvida muda de sentido tornando-se um grito-desejo-manifesto de sua negação: “se foda a lei”, o que se repete em relação a categorias que corporificam/sustentam a ideia de estado como sociedade, nação, juiz,  justiça, polícia... e ainda batendo na tecla da liberdade como uma condição da lei que na voz de seu alvo (“o cidadão”) soa como menosprezo,  rejeição, negação, portanto, de resistência a ela: “Você pode fazer o que bem entender, se for da lei”, um grito de liberdade em face da liberdade da lei. Uma vida normativa versus uma vida “anormativa”, nesse sentido, livre do poder estatal.

Vale ainda atentar-se para o fato de que os sentidos duplos da oração “se for da lei” se opõem também pelas suas formas de emissão, isto é, estão vazados, de um lado, pelo registro da escrita (que é o registro da norma, da condição normativa “se for da lei”), e, de outro, pelo registro da oralidade, captada pela audição (“se foda a lei”), quando aponta a sua negação,  resistência, insurgência (eu acrescentaria) que esgarça uma vontade popular, vinda das ruas, contra o estado...

Por fim, em Cidadão de Bem, Clenilson parece ter realizado um movimento diferente do que realizaram Raul Seixas e Paulo Coelho com a Sociedade Alternativa deles. Enquanto estes saíram do estado para criar uma sociedade alternativa também normativa dizendo que toda liberdade é que era da lei: “faça o que tu queres, pois é tudo da lei” (baseado na Lei de Thelema e seus postulados dogmáticos a fugir da lei se refugiando na lei), Clenilson tem um intento diferente. Ele quer destruir por dentro o maior fundamento do estado colocando que “se [tudo] for da lei” então que se foda a lei.

A segunda obra é o seu último CD solo, A Arte é um Veículo, que ele produziu em 2019. Para mim um feito artístico admirável, porquanto culturalmente significativo, mesmo sendo ignorada por todos, como a rigor são as obras artísticas locais. O disco, com as suas trezes faixas, não representa a diversidade de sua produção musical, na medida em que ele se dedica mais a um dos lados de suas composições, aquele desenvolvido nas épocas Alquimistas, que podemos chamar de balanço,  exemplo clássico das faixas Bole, bole, composta com Alexandre Nunes (“Segura sanfoneiro esse bole, bole...”), Balanço da Aldeia (“Vem mostrar esse balanço como é, que balança toda mata e igarapé...”), Daquiry (“Dança ashasninka, Huni kui, kaxinauá...”) e as duas que fizemos juntos, na década de 90,  para também tocar nas noites acreanas: Mela coxa (“Universo sou toda a terra”) e O povo quer dançar (era meia noite, madrugada, a festa tava animada, o sanfoneiro sem para...”).

Nesse sentido, parece ser uma obra que busca disseminar sonoramente alegria. Não se pode duvidar ser a alegria uma forma de manifestação do amor. A dança é um ótimo meio. O corpo uma expressão vigorosa para o sentimento. Mas, como tudo em Clenilson, a coisa não se restringe a um ritmo só. Tem as letras em suas contundentes narrativas tão política e culturalmente próprias, das quais destaco, além das já citadas, as faixas Tribal (“um canto inteiro, não é um canto de partido, não é um canto dividido”), A arte é um veículo (“O sonho é uma nação... A arte é um veículo que sai da multidão...”), Bem vindos ao leito do rio (“...É um banzeiro de paz e amor...”) e Você reclama da Terra (“Você reclama da terra mas quem é que produz a poluição?”). Esta um potente manifesto ecológico composto com Geovania Barros.

Considero Clenilson como tipo exemplar de artista cuja ontologia política e estética é fundamental e radicalmente decolonial, o que afirmo no contexto em que venho pensando a nossa produção artística a partir de um registro crítico, de modo a buscar revelar algum movimento de resistência diante do projeto de colonização cultural de que se é alvo em um lugar considerado periférico como o Acre.

Em sua obra nada está conformado à condição moderna-colonial que se tem nos imposto historicamente como deveria “naturalmente” estar moldado para estar – nos conforme da pedagogia colonial pela qual temos sido educados. 

Nesse sentido, Clenilson põe abaixo qualquer movimento que queira lhe colonizar. Não porque ele deseja assim (como um condutor daquele desejo do tipo frágil, provisório, precário, inconstante do “quero agora, mas amanhã não, ou não sei mais” – a depender de quem dá mais), mas porque ele se fez assim orgânico no percurso de vida/criação.

Sendo assim, nada do que faça no campo da arte tem como fugir, senão reafirmar a atitude combatente/insurgente de se afirmar como um sujeito cultural orgânico – não monolítico, não sem contradições – que aqui nomeio de decolonial, resultando na configuração de um sujeito artisticamente incomparável e culturalmente consciente de sua localidade e de seu papel político-cultural. 

Quis aqui começar este texto relatando o meu encontro e convívio afetivo, político e artístico com Clenilson Batista – num contexto de um lugar geocultural próprio – para dizer que sou testemunha do processo de formação de um sujeito decolonial posto à prova de todo tipo de ataque magneticamente sedutor, como só é aquele que investe em nos fazer desejar ser o que não somos para relegarmos a si intentando ser cópia de algum padrão industrial exógeno, com a promessa – que só se faz a um condenado a ser o eterno coadjuvante (se muito) – de personificação do gênio, do super astro, da celebridade, do ídolo dos consumos. Pode crer?

 

João Veras em 28/12/21

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

ELIANA CASTELA: Alguns Poemas


CHEGA DE PRESSA! 

 

É bom mastigar os dias

com a lentidão do tempo,

tempo lento e inalterado.

Viver os dias com a lerdeza de chuva fina

na demora, até tocar o chão...

O tempo resume-se no agora,

requer o abandono da avidez

dos dias servidos e devorados

em mesa faminta, sem perceber,

nem auroras, nem ocasos.

- Tempo de pouco caso.

É bom perder a pressa e rever

o arrumar e desorganizar das nuvens.

Ter a paciência de aguardar a florada

e comer a fruta do tempo.

Aguardar a piracema subir os rios

e não pescar o futuro.

É bom deixar o hábito de cobrar-se

do que se deixou de fazer

quando o dia finda.

EM BUSCA

 

Em busca de respostas

Rompi a rocha, raspei musgos

Desfolhei camadas

Furtei pigmentos.

Desintegrada, a rocha é pó

Princípio e fim da vida.

Depois de mover montanhas

Vejo-me ainda, no ponto de partida.

UM POEMA DE AMOR

 

O amor escreve poemas

com a ponta do dedo, sulcando

a areia morna e úmida

na margem do rio.

 

Quando a canoa cheia de melancia,

movida a motor de rabeta passa,

o banzeiro invade a praia

e desfaz os feitos do amor.

 

A magia é desfeita e renascida

a cada curva do rio,

onde espraiam-se ramas

de jerimum, maxixe, melancia...

Frutos colhidos e carregados

nos barcos que sacodem as águas,

para não deixar o amor morrer.

SABEDORIA SABIÁ

 

Ela é sábia

entre espinhos,

o ninho.

Gravetos selecionados

ambiente perfumado

ovinhos guardados

e tantos outros inhos

no universo de carinho

de passarinho.

Ocupação alada,

em cada galho que salta

com seu canto, cantinho

de laranjeira.

A GRAVIDADE DA GUERRA

 

A gravidade da guerra

é a solidão da trincheira,

onde o soldado observa o orvalho

na ponta do galho, resistente

à lei da gravidade.

TRANSFORMAGEM

                         (Para Danilo de S’Acre)

 

Íris, cores do olhar dos deuses.

Imagens de outras formas

de visão. Divisão das partes

que se aglomeram no espaço

concreto do abstrato.


Pinturas: Lili F.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

AS DUAS CARAS DE HELOY DE CASTRO É UMA SÓ, MÚSICA

João Veras

 

I – Foi Demais pra Mim é o novo CD duplo de Helóy de Castro que será lançado no dia 17 próximo no Studio Beer, em Rio Branco. Não preciso dizer que será uma festa. Digo que será mais que isso. Será uma celebração à vida num turvado tempo de morte e silêncios perplexos. E um antídoto para este tempo, só a música!

Durante a pandemia, Helóy tinha certeza que ia morrer. Que o seu mundo finalmente chegaria ao fim. Que não tinha jeito. E foi logo dando o nome ao que seria a sua última obra: Foi demais pra mim. Mais que um nome de música, um epitáfio. O resumo da obra, da vida. Um balanço final. Com isso, ele só queria ficar mais tempo aqui depois da partida. Nada como uma obra de arte largada ao mundo com seus próprios pés. Nem precisava. Já tem um inventário musical suficiente. O fato é que uma música virou 33 faixas de um CD duplo e a “carta de adeus” se transformou numa série, com episódios, temporadas.

É que Helóy errou no cálculo. Não foi dessa vez. Sobreviveu a tudo e conseguiu entregar a encomenda que fez para si – e que fica para todos: belas composições que revelam o enredo de uma vida de 70 anos, dos quais sua grande maioria dedicada à música, um acumulado arquivo de crônicas pessoais, sociais, artísticas, dezenas de convidados, parceiros músicos e não músicos. Na verdade, o Acre quase todo, a cidade de Rio Branco em peso e uma boa parte de São Paulo e, claro, de Minas Gerais, sua Rio Novo....

O álbum duplo até parece uma reunião, do tipo daqueles momentos raros (como um velório, sim, mas aqui um “desvelório”) da vida em que todo mundo se encontra para celebrar a memória, os feitos, a obra de quem se foi.  Total engano, graças à vida, graças à música! Foi demais pra mim é a volta daquele que não foi. O que nunca é demais.

II – Cabe, de forma brevíssima, uma palavrinha sobre a obra, para não deixar de falar sobre essa coisa de música acreana. Pensando sobre a estética deste álbum, não o vejo restrito aos dogmas culturais do tipo estereótipos exóticos que teimam em aplicar, para reduzir, o que se entende e nomeia como coisas ditas locais, nem daqui nem de onde Helóy veio. Não é por isso que não seja possível identificá-lo como algo específico, o que não pode significar, de outro modo e lado, reduzí-lo pela alcunha, igualmente redutora, de universal.

A singularidade do estilo deste CD se encontra justamente na ausência de uma estampa única e sim no que resulta do acumulo de diversidades de temas, de estilos, de ritmos... em uma obra que não consegue se desligar de seu autor, de sua digital, porque este não logra se desplugar do que ver, do que ouve, do que sente, do que vive, de ser o que é, na medida em que vai sendo nas dinâmicas da criação e da sua relação com as cenas da vida, seus territórios físicos e imaginários. Vem daí a latência e a expressão da sua exclusividade substanciada no amalgamento do próprio com o que não é próprio, o pressuposto para uma obra de estilo num contexto plural de tantas outras, enfim.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

A SECA DE 77

Hélio Melo (1926-2001)


Foi em 1877 que aconteceu a grande seca no nordeste que, até hoje, não deixa de ser lembrada.

Aos poucos, ela foi matando as plantas e as criações, de forma que os agricultores não encontraram outra saída a não ser reunirem as suas famílias e rumar em direção à cidade, em busca de sobrevivência.

As cidades ficaram lotadas de povos vindos dos arrabaldes.

Também na cidade, essa gente passou privação. A assistência dada pelo governo era trabalho, mas não para todos, pois era grande o número de pessoas desabrigadas.

Depois de algum tempo, voltou a chover. O povo, amedrontado com acontecido, recusava voltar para roça, pensando não só na perda das criações e plantações, mas também na perda de pai, parentes e irmãos. Nem todos pensaram assim; uma minoria voltou às suas cabanas.

Hoje, lembramos alguns fatos dessa época, aproveitando histórias de velhos nordestinos que, em tempos de criança, foram vítimas desse acontecimento.

Como exemplo, temos as histórias contadas por Angélica da Silva que, na época da seca, tinha 14 anos de idade. Seu pai, Joaquim Serra Grande, e sua mãe, Antônia Aprígio da Silva, morava na serra de Baturité no Ceará.

Dizia que, já é 1875, o povo, para conseguir água, tinha que andar de três a quatro horas de viagem. Roupa não se lavava, apodrecia no corpo. Também apareceu uma doença de nome “cola”, que dava disenteria e matava, em menos de 24 horas, os já enfraquecidos pela fome. O povo até andava com o nome escrito num papel, dentro do bolso, que era para que quando fosse encontrado morto se soubesse quem era.

Também tinha uma doença chamada “pele de lixo”. Quando a pessoa é atingida por ela, aos poucos ia largando a pele do corpo, e não havia cura, morria no maior sofrimento.

Nessa época, o remédio mais usado era o “específico”, que eles tomavam para curar todo tipo de doença. É bom saber que existiam vários tipos de “específicos”, os para crianças e adultos, os contra-venenos e para curar doenças.

Na pior seca, Angélica recebeu em casa a visita do seu padrinho, e ele lhe disse:

- Minha filha, procure sair o mais breve possível para a beira-mar, porque está morrendo muita gente de fome de sede.

Deu a ela, então, uma novilha e um saco de farinha para comer na viagem.

Aconteceu que na véspera da viagem, noite Joaquim Serra Grande pegou a carne quase todo deu no pé. Mas vocês não deram muita importância pois ela era muito ruim para família.

Também não desmancharam viagem, e foi assim que Angélica, sua mãe e seus irmãos menores, Tangino, Miguel e Joaquim, se despediram das cabanas e se mandaram, estrada a fora.

Da Serra de Baturité, onde Angélica morava, até chegar à beira-mar, tinha que andar mais de 10 dias a pé.

A água, arranjaram com os fazendeiros e, assim mesmo, era regrada.

Dizia a ela que fazia dó. Aqui e acolá, encontravam uma pessoa morta à beira da estrada e cachorros escavando raízes para saciar a fome.

Teve um dia que Angélica esmoreceu, com sede; seus irmãos deixaram tudo quanto levavam e saíram correndo estrada afora, à procura de água, a qual, por sorte, encontraram.

Angélica, ao tomar a água ainda passou mal, pois tomava o líquido e vomitava, sendo que só da terceira vez é que segurou a água no estômago.

A verdade é  que a Angélica escapou,  com todos os seus, e foram ter mão na cidade, enquanto Joaquim Serra Grande talvez tenha até morrido, pois ninguém mais deu notícia dele.

Na época da seca, o governo dava passagem para os que quisessem ir para a Amazônia, ou para qualquer outro lugar, pois era grande número de pessoas em busca da sobrevivência.

Angélica, que ficou no Ceará, presenciou todo o movimento da seca. Dizia a ela que, na cidade, só existia uma mulher solteira - a Maria Carlos, mas, depois da seca, apareceu um grande número. Essas mulheres se vendiam até a troco de bolachas, e Angélica mesmo foi uma que se perdeu com 14 anos de idade. Depois da cerca, alguns voltaram para roça.

Em alguns lugares, as vacas parirão de dois bezerros de uma vez. Quando isso aconteceu, em seu sermão o povo achou que era o fim do mundo, mas ficaram contentes quando o Padre Cícero falou que Deus era bom e estava fazendo isso para recuperar o que eles tinham perdido. Então, depois de algum tempo, as vacas voltaram a ter parto normal.

Também o Padre Cícero, em seu sermão, dizia que aquela grande seca era castigo, devido ao povo ser muito preconceituoso. Como, de fato, eles mantinham uma ordem rígida, a moça tique que casar com gente da família e, se não encontrasse um parente, ficava “pra titia”. A verdade é que o acontecimento da seca quebrou uma grande parte dessa tradição.

Angélica ficou com os seus na cidade. Sofreram muito porque, nessa época, tudo era muito difícil. Passado algum tempo, ela casou com um senhor de idade, de nome Sales Guerra. Juntos, construíram família e tiveram dois filhos, Francisco e Francisca.

Teve uma época em que eles estavam mal de vida e resolveram ir para a Amazônia, para o seringal Maripuá, no rio Purus. Chegando lá, Sales não quis trabalhar como freguês. Dizia ele:

– Eu quero ser é seringalista.

O certo é que deixou Angélica com os dois filhos no barracão, embarcou numa canoa e entrou no rio Juruá, em busca de fazer explorações, mas por lá os índios deram sumiço nele.

Antes de viajar, Sales já tinha sido avisado de que as explorações eram perigosas, mas ele era ambicioso e teimoso. Foi sozinho, e sozinho ficou para sempre.

Angélica ainda ficou seis meses no barracão esperando o Sales, mas o patrão, não querendo sustentar Angélica e os seus dois filhos, armou uma cilada. Fez uma carta falsa em nome de Sales, dizendo que ele não tinha feito nada na exploração de seringa, mas que, em compensação, tinha arranjado um bom emprego em Manaus, e que ela fosse para onde ele estava.

Angélica, ao receber a carta, deu saltos de alegria, abraçada a seus filhos; o patrão se encarregou de conseguir passagens, e eles viajaram. Chegando em Manaus, ficou um dia e uma noite a bordo do navio, e Sales nunca apareceu. A verdade é que ela chegou a dormir três noite pelas ruas da cidade, passando fome com os filhos pequenos, até que resolveu viver de lavagem de roupas. E assim foram mais de dois anos de sofrimento.

Angélica era muito devota e sempre pedia a Deus um meio de melhorar de vida. Sendo assim, aconteceu. Ocorreu que passou um parente seu por Manaus e a trouxe para a colocação São Pedro, no rio Acre.

Depois de três meses, ela casou com o seringalista de nome João Pedro da Silva, dono do seringal Triunfo, e, daí em diante, não passou mais necessidade. João Pedro da Silva, por sinal, também foi vítima da seca de 77, quando contava com a idade de sete anos e morava no bairro União, no Ceará.

Ambos, Angélica e Pedro, faleceram. Angélica, em 1946, e João Pedro, em 1956. Ela com 83 anos e ele com 86.

 

MELO, Hélio. História da Amazônia: “Do seringueiro para o Seringueiro”. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1986. p. 35-44

* As ilustrações também são de Hélio Melo.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

POEMAS DE IURY ALESON

A inovação, recorrendo a Maiakovski, não pressupõe que se enunciem permanentemente verdades inéditas. A inovação tem a ver, assim, com o modo como se diz, como se enuncia, como se constrói, o modo como o autor transforma o material comum da linguagem e o eleva às últimas consequências.

Iury Aleson, da nova geração de poetas acreanos, dentro do marasmo de vozes, traz uma que já apresenta traços singulares, não porque anuncia verdades inéditas, porém, porque retira do lixo da moralidade da sociedade de bem, o material fértil e subversivo de sua poesia.

Pelo tom desbocado, de palavras nuas e cruas, num estilo libidinoso e provocador, define-se, às vezes, como poeta pornográfico.

A partir da leitura de seus poemas, observa-se uma voz inquieta, rebelde, angustiada, até. A exemplo da metáfora kafkiana da barata, percebe-se um bicho estranho frente à normose dos que o cercam, e de uma sociedade que está pronta para esmagar todos aqueles que não se encaixam aos seus padrões comportamentais e de moralidade, tantas vezes, ironicamente, imorais por si só.

Certamente é uma voz que começa a se firmar, que tende a se expandir, conforme se expanda a maturidade humana, literária e intelectual do poeta. Sua prosa e seus versos, que emergem do singular e particular, apontam sempre para o universal, pois as angústias, os anseios, os sonhos, a liberdade, o sexo... fazem parte dos sentimentos comuns recorrentes a toda a humanidade.

Iury Aleson (1995) é natural de Rio Branco. Participou, em 2015, da “Coletânea Poética”, promovida pelo Núcleo de Atividades De Altas Habilidades/ Superdotação, com mais alguns estudantes com Altas Habilidades. No ano seguinte, 2015, publicou seu primeiro livro “Café, Metáforas e Poesias”. Tem, também, participado de antologias, além de se valer do uso das mídias sociais para promover e difundir seus textos literários.


Sob o Acre

Certo amigo de São Paulo,
Certa tarde,
E certo de que eu tinha cabeça pra falar do Acre
Me perguntou com certo alvoroço,
E eu o cortei.

Não sou um poeta do Acre
Eu disse, mas acho que já quis ser!
Brinquei que era bardo,
Sem saber tocar ou escrever.
Deixei a pica pra Tomás Maia!
E se perguntarem de poesia
Pergunto: é de comer?

Acho gente “inteligente” um saco
A gente não consegue conversar nem um décimo de milésimo
Que já vem o sono
Também tenho preguiça de ler Escritores de verdade!
Gosto dos covardes
Preguiçosos que nem eu

E certamente não leio escritores, Deus me livre!
Leio amadores e entusiastas
Gente que destes sempre sou o menor,
Muito por imensurável nível e escolha,
Pois tudo que escrevemos é ridículo, portanto, iníquo!
Já que poeta é quem ousa.

Meu amigo ficou a me olhar calado
E desliguei a vídeo chamada no ato.
Uma semana depois me procurou e perguntou irônico:
Como é que vai a poesia? E o Acre?
Tentando existir por uma ponte, eu disse.
E a poesia? Nunca nem vi.

[Escrito durante uma conversa de bar com o poeta Tomás Maia]

Tem mais não.


Iury Aleson

Aos amigos Poemeto...

Escrevi uns poemas fodidos,
E meus amigos riram
E o riso deles me deixou feliz

Sento e fumo o último cigarro
Não tenho dinheiro pra comprar mais.
E os últimos sete reais são pro ovo.

Me martela a frase do Marcos:
"Poesia não enche barriga"
Mas é a minha vida, irmão!
E nem só de pão,
Nem só de pão!

Mas me calo.
Fico acordado e falo com Tom,
Com a Vanessa...
Choro com a Day e pra Day
E escrevo pra Day e amo a Day
E depois das quatro durmo

E acordo de noite, vou pro curso,
E choro, me sinto fraco,
Mas ando e ando e ando
E manco e como e deixo comer
E faço rir e leio e acho chato
E acho incrível, incrível!

Tudo que o Zé Danilo
E a Adriana e a Paris e o Wilson e o Guanais
E os discos que o Andri analisa
E o Armando em toda saída
E penso em poesia o tempo inteiro!

Me deito e agradeço a Deus,
Mesmo ele existindo.
E tenho medo,
Principalmente do que escreverá sobre mim o Isaac,
Escrevo e passo o lápis
E desenho sacanagem,
Penso muito nisso...

E penso em falar com a mãe,
Mas sou durão igual o pai.
E escrevo e publico e posto e me irrito fácil
E falo algo sério, mas não me levo a sério
E depois caio de quatro enquanto preparo o livro

E aí mordo de leve
E chupo e sugo e lacrimejo
E engulo e ele nem diz se foi bom,
Porque gosto quando ele diz,
Mas ele não diz.
Então saio pra caminhar
E fico achando uma merda
Porque ele acabou.
Meu poema... e vocês são fracos demais pra ousar lê-los.

Tem mais não.


Iury Aleson

Refutando a Consciência do Promíscuo

Você vai pras redes
E escreve... o que todo mundo escreve. 
Se expõe, acha que é autor,
E te dizem o óbvio
Porque todo mundo é escritor.

Lê Hilda e depois mete,
Esquece que o 7 foi pintado lá atrás.
Gullar morreu e levou consigo a poesia
O verdadeiro poema sujo
Que tu tenta desesperadamente,
Mas quanto mais tenta
Mais falha!
Não encontrará...

Tu só presta quando imita
Não há nada autêntico na tua escrita
Tu nunca vai ser Hilda
Nem o Nelson, nem o Miller,
Nem o Buk com que estranhamente te agridem.

Ha mais poesia no funk
Que na tua literatura!
Isso só mostra o quão importantes
São os textos que tu rascunha
Eles não sabem quem tu é!
E jamais o vão saber.

Aí se junta a essa cambada maldita e burra e enfadonha e que caça e paga e não te lê!
Mas dá risada com os amigos
(também sub escritores)
Do que tu acha que é arte,
Mas convenhamos, é só putaria.

Tu não é artista
Se toca, até parece que vão levar a sério a tua poesia!
Nada levam... E nunca foi pra ser.
Nunca se tratou disso!
Só das contas, do desemprego e dos meninos que te mostram o umbigo
E estranhamente sonham com teu dedo.

Mas tu bloqueia.
Té é doidé?
O que tu quer?
O tu faz?
Por que tu tenta?
Por que???

Eu quero entrar, merda!
Eu preciso saber por quê?
Por que tu sonha?
O quê que tu acha que vai conseguir?
Pra quê escrever o que ninguém atesta?
O que os teus próprios amigos não leem e não vão ler!

Não há nada especial no teu trabalho.
Nem dentro de ti.
Não há nada...
Tu não é nada...
Não ganhou nada...
E não vai ganhar...
Tu escreve e não gosta
Cê devia parar...

Mas tu só disse o que eu já sou.
Tu só me descreveu
Só falou o que eu já sei
Eu escrevo porque sou gay
Porque sou filho da dona Cremilda
Porque sou filho do meu pai
Eu escrevo porque não vai.
E o inútil é a maior ereção dos pervertidos!

Tem mais não.

Iury Aleson

Cartas de Uma Sedutora

Não vire a noite escrevendo, Iury!
Vai salientar e escurecer tuas olheiras
E tu vai perder o dia, dormindo
Pra acordar cansado e ansioso.

Cê devia transar,
Mas não quer porque é doido,
Seu doido!
Não existe outro doido
Só tu e o teclado
E isso que tu chama de poesia

Está só.
Lê só.
Escreve só.
E ama, ainda ama,
Eu sei, bem lá no fundo.
Não mente pra mim!

Tô com medo de tu.
Tu antes me escutava
Antes eu era poesia
Agora tu que é.
Então para e volta
Se cuida, não se mata!

Mas morreu...

Mirror é uma vadia,
Que eu fodo a boceta!
E esfolo a minha pica
E tiro a camisinha
E gozo na cara dela
E ela pede a calcinha,
Mas não dou.

Vou mijar e volto de pau duro
E enterro no cu dela
Ela diz, vai devagar amor,
Mas eu não vou.
Eu meto e enfio
A caneta na pele
O dedo no fiofó
Uma mordida...

E ela pega minha mão
E molha na buceta dela,
Pois ela tá molhada
Eu tiro a Vênus, não ponho outra
E meto no priquito

Vou te engravidar, musa antiga!
Vou tatuar as paredes da tua cona
Vou cheirar teu pelo puritano
Linguar teu grelo
Sentir insano!

Sentar pra te ver batendo siririca
Gosto dos pelos da tua vulva
Gosto de foder nas pernas lisas
E sentir o teu suor escorrer,
E suar meu corpo de você,
Que goza o quanto quer!

Eu me esforço, me recupero,
Fico duro e chupo teu pinguelo.
E tu delira, me sinto mais homem
Quando a poeta quica safadinha
E diz que gosta
Que quer voltar
Mas eu não deixo, não vou deixar!
Mirror morreu no ensino médio,
Mas manda cartas

De uma distinta sedutora
Que morde e chupa minha rola
E suga até leitar a leitora que leu e se acha escritora
Vai publicar!

Pois mulher escreve mais que homem
E eu gozo toda vez que pegam nela
E sinto o cheiro
Do peido da boceta
De todas as moças do planeta
Embora literalmente não as coma.

Tem mais não.

Iury Aleson

domingo, 31 de outubro de 2021

O COMENDADOR JOÃO GABRIEL: A origem do nome Acre

O COMMENDADOR JOÃO GABRIEL

A origem do nome Acre

                                         Soares Bulcão (1873–1942)

 

– “Foi, então, que o arrojado aventureiro escreveu ao seu correspondente, aviador, uma carta avizando-o da exploração, e, ao mesmo tempo, lhe pedia um carregamento de mercadorias que deviam ser destinadas – caso o vapor podesse até lá chegar – á Bocca do do rio Aquiry.

Essa carta – como facilmente se deve prever – não era propriamente escripta – era garatujada!

Homem rude, do povo, sem nenhuma instrucção, ja era muito que pudesse garatujar uma carta!

No escriptorio de Belem, o empregado da correspondencia passou, por certo, um bom quarto de hora a decifrar os hiéroglyphos e mistérios ortographicos da missiva commercial. Comprehendeu-lhe, afinal, a significação, destrinçou-lhe o sentido e communicou ao chefe da casa os desejos e pedido do aviado do Purús – João Gabriel.

Um vocabulo, porem, da carta ficou sem significação – era o nome do rio. E como era preciso que seguissem as mercadorias, ficou decidido que o tal nome indecifravel ficaria sendo, condicionalmente, “A Bocca do Rio Acre”.

 

(O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará”) JOSÉ CARVALHO

 

 – “Com a attitude desassombrada do Commendador João Gabriel, o Commandante Carepa mantinha-se sem trocar palavra, e ao ser posto em terra o ultimo volume, já o “Anajaz” estava ajustado para descer, de sorte que foi ás pressas que o commendador escreveu ao Visconde de Santo Elias, e apezar de ter boa letra, taes garatujas imprimiu que a sua carta, no escriptorio do Pará, passado de mão em mão, para se verificar o nome do lugar, foi decifrado – Acre e o rio Aquiry passou a ser mesmo Acre.

 

“O Acre e os seus heroes” pag.35.

NAPOLEÃO RIBEIRO

 


José Carvalho, o illustre folk-lorista conterraneo, no seu interessante livro “O matuto cearense eo caboclo do Pará”, que só agora tive o prazer de ler, reedita ás pags, 147, com pequenas modificações, um seu artigo sob aquella sub-epigraphe, já publicado em 1917, no numero 2416 do “Unitario”, de João Brigido, o qual já eu conhecia, lido naquelle tempo, quando ainda me não preoccupavam os estudos de historia e genealogia, a que me tenho entregue ultimamente.

Tradiccionalista emerito como é o illustre auctor do livro escrevendo folk lore, assumpto que não demanda documentação, é natural que se restrinja a reproduzir e divulgar, com a simplicidade e clareza de seu estylo despretensioso, o que lhe trazem a tradição oral e as informações mais ou menos fantasiadas, que lhe são transmitidas, com minuncias e episódios interessantes, mas sem autenticidade das provas, ou a preoccupação de chronologia, elementos essenciaes para o estudo da História.

Dahi certas lacunas que se encontram em alguns de seus escriptos, a que hora me refiro, e do qual, com a permissão que lhe peço, desejo tratar com os elementos historicos de que disponho.

O assunto especialmente a parte referente a pessôa de João Gabriel muito me interessa particularmente, por ser ele meu conterraneo, e caber-lhe a primazia de ter sido o primeiro cearense emigrado para o interior do Amazonas, e o iniciador das correntes emigratorias que se succederam, desde as grandes seccas de 1845 e 1877, para aquella provincia.

Delle, pois, vou tratar com mais minunciosidade, pedindo, desde já, um pouco de longanimidade aos leitores, visto que o assumpto, sendo de pouco interesse para o publico, exige, entretanto, prolixidade e documentação.

_______________

 

João Gabriel de Carvalho e Mello, que nasceu em 1820 era filho de José Gabriel de Mello e Roza Maria de Jesus, casados em janeiro de 1816, aquele filho de Aleixo Celso de Moura e Francisca Antonia da Palma, e esta filha de João Vidal de Carvalho e Barbara Maria da Conceição.

Casou ele em 1843 com sua prima Mariana Paes de Avila, nascida em janeiro de 1824, filha de Antonio Paes de Ávila e Jacintha Maria de Jesus, casados em janeiro de 1808; elle filho de Lourenço Paes de Avila e Josefa Maria e ella filha daquelles João Vidal e Barbara; portanto, irmã de Roza.

Eram, assim, primos legítimos.

Família numerosissima, toda residente na serra de Uruburetama, especialmente na região do sitio Mundahú, com fazendas no Aracaty-assú, onde invernavam e exploravam a pecuária em pequena escala.

Os pais de João Gabriel tiveram 12 filhos e os de Mariana Paz, sua mulher, 11; os avós, Aleixo Celso de Moura 5, e João Vidal de Carvalho 12 todos, casados e com geração.

Era, portanto, é uma verdadeira tribu, entrelaçada com muitas famílias daquella zona.

Depois da seca de 1825, o Ceará não tivera outra calamidade até a epocha do casamento de João Gabriel, (1843) por isso mesmo, franca prosperidade na provincia ponto; a sua numerosa família vivia numa relativa abastança, no cultivo da lavoura, nos seus sitios na serra, e da criação, nas suas fazendas no Aracaty-assú.

Em 1844, quando o inverno já fora escasso, prenunciando a segunda grande secca do século, (1844-45) Como diz Thomaz Pompeu no seu livro “O Ceará no Centenário” págs. 223 e seguintes, João Gabriel teve o seu primeiro filho – Antonia, nascida a 14 de agosto e baptisada no sitio Mandahú a 12 de Setembro, conforme certidão em meu poder.

O anno seguinte foi de verdadeira calamidade para os cearenses e, como era natural, o sertão ficou deserto; nas serras concentravam-se os que tinham propriedades ali; os sertanejos, porem, procuravam o litoral, onde os recursos eram mais fáceis. Na

Passaram-se, assim, entre provações e desassocego, os anos de 1845 e 1846.

Só em 1847 começaram os prenuncios de inverno, encontrando a população empobrecida e desconfiada.

Nesse anno, em fevereiro, foi que ao casal de João Gabriel chegara o segundo filho – José Mariano, já elle estando em sua Fazenda Boqueirão, no Aracaty-assú, onde fora com as primeiras chuvas de janeiro.

Dispondo de poucos recursos, alem da fazendola e do sitio, que ainda conservava, procurou ele comprar de um vizinho e parente uma rêz para o resguardo da mulher, que se achava na cama ha 4 dias.

O episódio é autêntico, conservado em todos os seus detalhes pela família. De um irmão de João Gabriel, Francisco de Salles Mello, falecido em Maio de 1927, e a quem conhecia ainda forte válido, ouvi-o muitas vezes. Na fazenda do parente fez elle compra da rêz, mas faltando-lhe uma parte do dinheiro para o pagamento, talvez mesmo simples patacão de 2$0o0, como digitar o José Carvalho, foi recusado crédito, e a rêz, que já estava laçada para ser conduzida, foi por elle mesmo solta, com este desabafo: “Terra em que um homem como eu não tem crédito para 2$00, eu não moro”. E desappareceu.

Apezar das diligencias da familia, não foi possível descobrir o rumo que elle tomára, e por fim o tempo foi fazendo esquece-lo.

O anno, entretanto, fora fecundo, como os que o succederam, e a mulher, Dona Mariana Paz, que ficára sob a vigilância e protecção dos parentes, continuou na administração dos seus bens, e prosperaram. Os filhos cresciam naquela rigida educação de trabalho e economia, que se transmudou na velhice em sordida avareza, de que ella deixou uma tradição pouco edificante no seio da propria familia.

João Gabriel chegou ao Maranhão, e no lugar Chapada, onde em pouco tempo comprou um terreno e cultivou um sitio, passou alguns annos sem que delle houvesse a menor noticia no ceará.

Relacionou-se ali com uma senhora viuva de quem houve dois filhos: – Antonio e José, dos quaes não tenho outra noticia. Coagido pela família della, exigindo que elle legalisasse a sua situação com o casamento, e não o podendo fazer por ser casado, resolveu ausentar-se, e foi o que fez depois de 6 annos de estadia, deixando aos filhos tudo o que ganhára.

Em São Luiz do Maranhão teve a ventura de encontrar-se com o Tte. Cel. Antonio Rodrigues Pereira Labre, o grande explorador do Baixo Purús, e fundador da cidade da Labrea, que estava de viagem para aquelle rio. Com o credito que este lhe afiançara, comprou um carregamento de fazendas, que conduziu no vapor Rio Negro, chegando a Belem a 17 de setembro de 1854, quando ali grassavam a variola e a febre amarella, o que muito o atemorisou.

Nesse vapor elle devia seguir para a cidade do Rio Negro, (Manáos), onde contava chegar a 10 de outubro seguinte, como elle diz na primeira carta, feita á familia, depois de 7 annos de ausencia, dirigida a seu pae, e datada do Pará.

Transcrevo-a aqui na integra por ser um documento curioso, não só como attestado de que elle não chegou ao Amazonas como indigente, sujeitando-se ali a todas as profissões, como diz Napoleão Ribeiro no seu recente livro “O Acre e os seus heróes”, a pag.23, como também para provar a veracidade da sua fugida inesperada e misteriosa, e do tempo decorrido depois della. Pelos seus dizeres vê-se que foi dictada por elle mesmo:

“Meu Amantissimo Pae

 

Pará 22 de setembro de 1854.

 

Primeiro que tudo estimo que Vmce. minha Mãe e toda nossa familia estejão logrando saude; e Vmces. me deitem sua abenção.

No dia 17 do corrente aqui cheguei sem novidade. Está ancorado no Porto desta cidade o Vapor Rio Negro, em que devo seguir para a cidade do mesmo nome, Provincia do Amazonas onde pretendo estar até o dia 10 de outubro vindouro. Tenho tido nesta cidade mui má informação do commercio daquella, e se for como me affirmão, logo que desponha as fazendas que levo, voltarei; é muito longe, e são as grandes despesas; só a minha passagem custa 200$000 reis, e por cada conto de reis em fazendas serão nunca menos de 100$000, isto é, vindas do Maranhão, como as minhas.

Não me recommendo ahi a ninguem, porque o curto periodo de 7 annos já gastou a lembrança delles para com este aventureiro; mas eu ainda me lembro de 8, que são: O Illmo. Sr. José Gabriel de Mello, a Snra. Da. Rosa Maria de Jesus; a snra. Da. Mariana Paz de Avila e Mello, a Illma. Sra. Da. Antonia de Carvalho e Mello, o Sr. meu innocente filho José Mariano de Mello, a Snra. Francisca Antonia da Palma, Antonia Paz de Avila e Jacintha Maria de Jesus; quanto eu não desejo saber as brilhaturas desse Illustre Povo, mas quem quereria se dar ao trabalho, de com a pena na mão estudar os decorridos de um largo periodo para dar noticias a um aventureiro. Ninguem!

v.mcês. roguem a Deus por mim, que com a ajuda do mesmo Deus pretendo dar a vocemecês com que passarem o resto de seus dias.

Adeus meus queridos Pais. Abenção. Acceitem o coração do                   Obidiente Filho

João

N. B. Estou bastante aterrado de medo nesta cidade, por haver nella bexiga verdadeira e feebre amarella;porem Deus é grande. É bastante doentio este canto do mundo; hoje, 25 do corrente, fico de suade.

Seu filho João”

 

A carta não é escrita por elle, mas comprehende-se logo pelas circumstancias que a revestem, que foi dictada em todos os seus periodos.

O N. B. e as assignaturas, porem, são do seu proprio punho, em letra clara e legivel, como se verifica facilmente num simples confronto com a outra, escripta por elle, que adiante transcrevo, cujos originaes tenho em meu poder.

Os annos de 1855 e 56, passou-os João Gabriel no rio Negro, Manáos e suas immediações, fezendo commercio de regatão.

Só em 1857, a 5 de abril, seguiu elle para o rio Purús, que era então uma espécie de fim do mundo.

Como attestado autentico da sua acção de conquistador naquella região, a começar dessa data, transcrevo aqui a sua 2ª. carta, escripta de próprio punho, a sua mulher.

“Mariana,

 

Manáos, 8 de Novembro de 1858.

 

Se a sorte não tem permitido que eu possa chegar aos vossos braços, e adorar os meus tenros filhos, consolar os meus velhos Paes, ao menos quero de quando em quando fazer chegar as tuas mãos estas linhas que são testemunhas de que ainda tens marido, teus filhos pae, e teus sogros filho. Até hoje fico sem novidade, graças a Divina Providencia.

A 5 de abril de anno p. passado segui desta cidade para o rio do Purús, que fica para as partes da Bolivia, e muito no interior da Provencia em que estou, levando commigo 8 contos de reis em fazendas: no dia 7 de Setembro do mesmo anno saltei no Itapá adonde descarreguei o meu Barco, conduzindo para aquelle lugar 40 familias para ali tirarmos os generosos seguintes: seringa, salsa, oleo de copahiba, manteiga e outros muitos generos; em fins de Outubro do citado anno fiquei sem ter farinha, e até Maio, deste anno não a pude mais obter, e por essa causa me ficarão 13 contos de reis fiados, trazendo generos apenas para 8 contos, e por este motivo torno agora mesmo para o dito logar a ver se cobro o meu dinheiro; levo apenas 4 contos de reis em generos de primeira necessidade; vou me empregar como todos os meus devedores na seringa, porque está por.... 25$000.

Não sei attribuir qual é a razão de não ter sido mais feliz do anno passado para cá; rogue a Deus por mim, peça aos santos para que me ajudem em cobrar todo o nosso dinheiro e que elles mesmos me farão voltar ao seio dos meus parentes, pois já estou velho e já não posso andar só no mundo. Tenha toda do cuidado com a nossa filha que pretendo breve ir caza-la, e é com um moço do Maranhão.

Adeus: acceite o amoroso coração rateado com mil abraços e boquinhas entre os meus filhos a quem Deus os abençôe.

Do vosso primo e marido

                                      João Gabriel de Carvalho e Mello

 

São 11 horas da noite e não sei bem o que estou escrevendo, portanto leia quem souber.”

_______________

 

Esta carta dispensa commentarios. É uma especie de autobiografia, uma chronica autentica do que foi o inicio das incursões naquelle rio, do seu descobrimento e do povoamento dos primeiros seringaes, dessa odysséa gloriosa e doloriada, que é o maior padrão do heroísmo cearense.

Documento precioso, cujo autografo possuo, faz honra ao seu autor; pela redação simples e expressiva e pela calligrafia legível e segura, vê-se logo que não era elle o homem ignorante a quem se quer attribuir a paternidade da creação do nome Acre, deturpação grosseira de Aquiri que a tradicção lhe tem imputado indevidamente.

Também é sem fundamento a versão de ter elle aprendido a ler num convento, no Maranhão. Tanto João Gabriel como seus irmãos, que ficaram na Uruburetama, aprenderam ali mesmo, assim como também seus cunhados, como provam as suas assignaturas, de próprio punho, em inventários da epocha, existentes no cartório de Itapipoca.

Parece que João Gabriel não tinha, até então, nenhuma noticia de sua família, visto que não faz referencia a morte dos sogros, Jacintha Maria, fallecida a 11 de janeiro de 1857 e Antonio Paz de Avila, em Agosto de 1858.

Por este motivo foram os seus herdeiros intimados a dar bens a inventario, sob a allegação de haver órfãos: – os filhos de João Gabriel, “ausente ha mais de 10 annos, sem noticias.”

Em vista, porem da apresentação daquellas cartas, atraz transcriptas, foi suspenso esse inventario por sentença de 23 de Julho de 1858.

Voltando á carta de João Gabriel quero referir-me áquellas 40 familias localisadas por elle, nesse anno de 1857, no Itapá, sua primeira collocação, nas proximidades da foz do rio Purús. Eram ellas compostas de maranhenses e cearenses residentes no Maranhão, emigrados desde a secca de 1845.

Só em 1862 alcançou elle o Berury, seringal que explorou, acima da Bocca do Purús, a 138 milhas de Manáos.

Confirmando-o ha no Relatorio do Presidente do Amazonas, Sinval Odorico de Moura, apresentado á Assembléa Provincial, a 25 de Março de 1863, um Annexo de Souza Coutinho, (Breve Noticia sobre a extração da salsa e da seringa) com a seguinte referencia:

“O sr. João Gabriel informou-nos que em Berury encontrára umapequena plantação de salsa e tem continuado em maior escala” (Rel. do Prov. do Amazonas, Vol. 3 pag. 58).

Nos annos seguintes continou elle suas explorações, Purús acima, até arimã e Tauariá, onde se localisou definitivamente, e onde viveu o resto de sua vida, mesmo depois de ter chegado alem das confluencias do Acre.

Nenhuma communicação houve mais entre elle e sua familia no Ceará, cujos destinos ignorava completamente.

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A 15 de setembro de 1863 casara-se, em S. Francisco de Uruburetama, a sua filha Antonia Paz de Avila, com o seu parente Marciano Araripe Braga filho de Bernardino de Sena Braga e Maria Francisca, a cujo acto presidiu o padre Rogerio José Cavalcante, vigário daquella Parochia, como consta do assento, ás paginas 31 verso do livro n. 3º, ali archivado.

Só seis annos depois, em 1869, é que voltou João Gabriel ao Ceará. Chegou inesperadamente, sem delle houvesse a menor noticia.

Desembarcando em Fortaleza, desconhecido e desacompanhado, seguiu logo para Uruburetama.não tomou o trem, como, por equivoco, diz José Carvalho, por duas razões ponderosas: primeiro, por não haver ainda no Ceará Estrada de Ferro, pois que o primeiro contracto da Baturité é de 25 de julho de 1870 ee a inauguração dos trabalhos só teve lugar a 20 de janeiro de 1872; segundo porque, mesmo depois de sua construção, não se podia ir áquella zona por nenhuma de suas Estações.

Comprou simplesmente um escravo para acompanha-lo, e quatro burros para a montaria de cargas, e seguiu incógnito pela antiga estrada da Imperatriz.

Era muito no começo do anno e o inverno mal começára. Viagem morosa, por uma estrada cheia de voltas, que naquelle tempo se dizia trinta leguas para o Arraial, com descanços e pernoites em ranchos certos, em alimarias adquiridas com a pressa de quem não pode esperar.

Chegou ao Arraial para subir a serra, donde já se retiravam os donos de sítios para as suas fazendas no Aracaty-assú.

Coincidiu que deixando o seu sitio do Engenho, no Mundahú, vinha descendo a serra a Senhora Dona Mariana Paz, que ia para a sua fazendola do Boqueirão, e, justamente, ao sahir na estrada que leva ao Arraial para Aracaty-assú, passando por S. Francisco, no lugar Cruz das Almas, encontraram-se os dois, – elle com o seu escravo, e Ella acompanhada do genro, Marciano, e dos filhos, dos quaes elle tivera apenas vagas noticiais, na sua passagem pelo Arraial.

Diz a tradição que não se reconheceram, e apenas se olharam numa saudação ligeira, quando Marciano dissera para a sogra: “D. Mariana, se há João Gabriel no mundo, é aquelle velho”.

Foi então que Ella voltou e deram-se a conhecer com muita surpreza para ambos.

Dahia seguiram para o Mundahú, onde a noticia da chegada de João Gabriel foi um verdadeiro acontecimento.

Tentar descreve-lo agora, depois de mais de sessenta annos decorridos, seria embrenhar-me num mundo de fantazias; a surpreza, já de si extraordinaria, daria motivos paras grandes festas e commentarios, mas Ella vinha accrescida da circumstancia especial de ter o nosso heróe regressado rico, de uma riqueza que a imaginação daquelle povo modesto, habituado, naquella epocha, ás pesquenas fortunas da terra, logo qualificou de fabulosa e nababesca.

Esses detalhes encontrei-os ainda commentados pelos parentes e contemporaneos, e a aventura de João Gabriel transformada em romance, a que se apegou Napoleão Ribeiro, naquelle seu citado livro, deturpando-lhe as circumstancias, confundindo nomes e lugares, datas e figuras, até mesmo cahindo no engano de dar a João Gabriel o titulo de commendador, que elle só veio a ter muito posteriormente.

Como se vê, é sem fundamento a asserção de ter elle deixado a filha no berço e te-la casado no seu regresso. Quanfo elle partira já ella contava 3 annos de idade, e quando regressou, com 22 de ausencia, já a encontrou casada, havia 6 annos.

O segundo filho, José Mariano, é que ficára com poucos dias de nascido, o que é fácil de deprehender dos termos de sua segunda carta, escripta á mulher, quando se refere aos parentes, dando á filha o tratamento gracioso de “Senhora Dona”, e a este o de “meu innocente filho”.

A demora de João Gabriel no Ceará foi apenas de alguns mezes. Amparou a familia, auxiliando aos irmãos e cunhados que o procuraram.

Comprou em Sobral, a D. Luiza, que me parece era a viuva do Dr. João Fernandes de Barros, paes do Dr. José Julio de Albuquerque Barros, as fazendas de Santa Maria, Valentim, Touro e Cruz das Almas, no Aracaty-assú, e situou-as com 1.005 cabeças de gado vaccum, compradas a José Balbino, alem de outras acquisições feitas a diversos.

As fazendas custaram-lhe 30.000$000, que naquelle tempo representavam uma fortuna.

Alem destas comprou a Caminhadeira, celebre fazenda que deu nome ao famigerado Vicente Lopes Vidal de Negreiros, conhecido por Vicente Lopes da Caminhadeira, o valente e sagasissimo antagonista dos Moirões, tão decantados na historia criminal do Ceará.

Retornou ao Amazonas no mesmo anno, conduzindo consigo uma verdadeira caravana, de parentes e aggregados, alem da familia e seus velhos progenitores, dos quaes alguns por lá se ficaram de uma vez, como seu pae, José Gabriel de Mello, que falleceu em 1877, no seringal Bem Posta, no Alto Purús, pouco acima da bocca do Acre. Outros ainda voltaram ao Ceará, iniciando-se, por intermedio delles, o grande movimento de emigração que se incrementou depois da grande secca de 1877 para a Amazonia. Sua mãe, D. Roza Maria, regressando depois de viuva, ficou-se no seu sitio do Mundahú, onde falleceu.

Dando noticia de seu regresso, ha no Relatorio do Presidente João Wilkens de Mattos, de 25 de março, de 1870, (Amazonas. Rel. Vol. III pag. 771) a seguinte referencia, que elucida perfeitamente o caso:

“Do Ceará, o cidadão João Gabriel de Carvalho e Mello trouxe uma colonia de 53 cearenses, para o rio Purús. Chegou a este porto á bordo do vapor Madeira, no dia 4 de outubro (1869). Sendo este um bello esforço daquelle cidadão, que procura alargar os horizontes da industria extractiva em que se emprega ha muitos annos, prestei-lhe todos os auxilios para facilitar o transporte da colonia ao seu destino.”

Eis ahi o attestado, em documento official, do que foi João Habriel como explorador e povoador do Rio Purús, do seu esforço “ha muitos annos empregado para alargar os horisontes da industria extractiva”, a que a Amazonia deveu a sua grande prosperidade, infelizmente em actual decadencia.

Essas 53 pessoas, que o acompanharam, eram todas de Uruburetama, seus parentes na maior parte.

Dellas conheci ainda muitas nas minhas viagens pelo Purús; proprietarios de muitos seringaes, já muito velhos, aclimatados, alguns com grande prole, filhos já da terra que adoptaram, mas todos cearenses pelo coração e pela saudade da patria nativa e de origem, das suas serras e do seu sertão, de viver e costumes tão diversos, tão infeliz nas suas calamidades climatericas, mas sempre bôa e attrahente, a melhor do mundo, na imaginação dos seus filhos auzentes.

João Gabriel foi o grande explorador e povoador do Purús e do Acre, a cuja foz só chegou a 3 de abril de 1877, a bordo da lancha Anajaz, commandada pelo piloto Simplicio Gonçalves.

Todos os seringaes, explorados, por elle e seus companheiros, desde Tauáriá, iam sendo povoados por cearenses, que desde aquella sua primeira viagem, seguiam o seu caminho, levados pelos que regressavam, annualmente, á terra do berço e retornavam com novos companheiros.

A sua benemerencia mereceu do governo uma commenda que elle ostentava com desvanecimento. Istou creio que em 1882, quando exercia cargis politicos e Labrea, por influencia o seu grande amigo coronel Rodrigues Labre, que era então deputado provincial no Amazonas. Quando este, em 1872, era presidente da camara daquella villa, João Gabriel era agente fiscal, com exercicio em Tauariá como consta dos relatorios citados.

Ao seu nome não tem sido feita a devida justiça. Outros, de menor actuação daquelle tempo, chefiando faceis e rendosas commissões officiaes na exploração do Purús, na descoberta de suas nascentes, e na demarcação de limites com as republicas visinhas têm o seu na historia. Delle, que era um modesto heróe, á mercê do seu proprio esforço, mal se fala para lembrar-lhe o episodio romantico de sua fugida do Ceará e deturpar-lhe a personalidade e os feitos, dando-lhe a responsabilidade de um erro ridiculo, de que nasceu o nome do rio de que elle foi o primeiro povoador.

A origem desse nome, deturpação grosseira de Aquiry, seria de certo algum de seus companheiros, talvez do proprio Alexandre de Oliveira Lima, o decantado Barão da Bocca do Acre, se é que elle sabia garatujar o nome, ou de alguem que lhe servia de guarda-livros, como conheci ainda muitos no Acre, que mal o assignavam e se intitulavam como taes.

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João gabriel, rico e Commendador, viveu o resto de seus dias no seu seringal Tauariá, onde faleceu a 8 de fevereiro de 1895, aos 75 annos de idade. D. Mariana Paz, sua viuva, regressando ao Ceará, só veiu a morrer 14 annos depois, no seu sitio Mundahú, na Uruburetama, a 18 de setembro de 1909.

De sua filha Antonia Paz não ficou prole.

José Mariano, o segundo, casou no Purús com D. Maria da Gloria Frota, filha de Manoel Miguel da Frota, natural de Sobral e Bernardina Alves da Frota, de Maranguape. Isto no anno de 1889.

Tiveram 6 filhos e residiram na fazenda Santa Maria, que lhe doára seu pae e onde elle faleceu na idade de 52 annos, a 25 de Setembro de 1899. D. Maria da Gloria, a quem conheci no Arraial, no sitio S. João, onde residiu por algum tempo, já casada em segundas nupcias, deixou tambem 6 filhos deste ultimo matrimonio, e veio a falecer a 25 de março de 1912.

Seu segundo marido, Felix Paz de Avila, seu primo, era filho de João Antonio Paz de Avila, das Imburanas, irmão de Mariana; faleceu vivuvo a 6 de junho de 1915.

O seringal Tauariá, no Purús, pertence ainda aos descendentes de João Gabriel, que tem lá o seu tumulo erigido pela familia.

Na Uruburetama a sua parentella é imensa, e entre ella o seu nome é rememorado como o de um grande benfeitor da familia, ao contrario do de sua mulher, que queixou tradicção de uzuraria e egoista. No seu testamento, desta, feito em São Francisco, a 5 de junho de 1905, deixou ella a terça de sua herança ao irmão Joaquim Paz de Avila, o que ocasionou uma demanda da parte de seus herdeiros, que a denunciaram como demente, testando com mais de oitenta annos. Uma junta medica deu-lhe ganho de causa e os herdeiros foram espoliados, como se vê do inventario, feito em Junho de 1900, no cartorio de São Francisco.

Ficam ahi essas notas, veridicas e documentadas, que servirão para rectificar enganos e fantasias, deturpando a figura desse heróe obscuro, mas autentico, modesto e simples, que foi o iniciador dessa obra grandiosa e infeliz, veradeira odisséa do cearense humilde e flagellado, na terra opulenta da illusão e dos desenganos.

 

BULCÃO, Soares. O Commendador João Gabriel: A origem do nome Acre. Revista do Instituto do Ceará - ANNO XLVI – 1932. p. 25-40

 

José Pedro Soares Bulcão (13.5.1873-17.7.1942) nasceu em Uruburetama-CE e faleceu em Fortaleza-CE. Foi membro do Instituto do Ceará e da Academia Cearense de Letras. Chegou à Amazônia ainda na década de 1890. “Expedicionário nas campanhas do Acre, defensor da autonomia do território nas lides da imprensa, Bulcão deixou o Alto-Puruz em Janeiro de 1918, transferindo-se para o rio Pauiní, no Amazonas. Volveu definitivamente ao Ceará em 1920, quando o seu grande amigo Justiniano de Serpa veio ocupar a presidência do estado, cargo em que faleceu, em 1923. [...] Enveredou na política e foi eleito deputado Assembleia Legislativa Estadual, nela figurando até a legislatura que terminou em 1928.” Sobre o Acre, Bulcão ainda escreveu: “Plácido de Castro” (“Panóplia” nº. 3, 1913, Fortaleza), “Luiz Galvez” (Diário do Estado”, Fortaleza, 1914); “Subsídio para a história do Alto-Puruz”, 1918); “Território do Acre, sua organização” (1916, Tip. Do Alto-Puruz, Sena-Madureira). Foto de Soares Bulcão: https://pt.wikipedia.org/wiki/Soares_Bulcão