terça-feira, 10 de maio de 2022

PONDERA: poemas de Di França

PONTO ZERO

 

                         A dois mil e dezessete

 

No escuro mundo em que resido,

feito duma cama de madeira e quatro paredes,

mergulho em flores placentárias, engulo-as

numa tediosa refeição.

Desenho num canto uma janela, assisto

os choros da noite e latidos vizinhos.

Rabisco uma fechadura sem chaves e me tranco

dentro do isolamento tardio.

No ponto zero duma bomba qualquer

sou a chacina e pelúcia.

Engulo o remédio e não me mato,

leio para a morte e ouço o ruído das paredes.

O escárnio do mundo tenho nos lábios

e em sons de teclas cibernéticas

dou risadas ao meu silêncio inútil.

O escarro dos outros eu carrego nos olhos

em choro infantil de dezoito anos

por não ter paixões ou amigos.

As lágrimas que da mente cuspo se unem

aos cuspes injustos

que o mundo me deu à cara. p. 13

 

 

JARDIM DO ÉDEN

 

Desde o primeiro sopro da vida fatal,

No Jardim do Éden não me vi entrar.

Sou errante nesta realidade sem lar,

Nunca provei frutos do bem e do mal.

Expulsão pela ingenuidade ao pensar

Ou serpente que me induza ao pecado

Não me ocorreu, jamais vi chegar.

O que haverá neste Jardim Fechado?

Não tive gênese ou divino contato,

solitário desde as faculdades inatas.

Fui construído em um mundo abstrato,

Não existem em mim naturezas exatas.

Neste Vale do sofrimento humano,

Hei de encontrar-me: Ser profano. p. 39

 

 

MODERNISMO ACREANO

 

Florestas psicodélicas, maquiagens, tecidos!

Toda noite de festa me parece modernismo.

Terra batida, folhas neon e cabelos coloridos,

Funde-se tudo numa tela épica de surrealismo.

 

A batida na batida da batida, debatendo-se

na vaidade do corpo entre a grama e a lama.

No calor do suor da madrugada e penumbra

Eu danço no silêncio e gargalho o inconsciente.

 

O falso glamour deste alvorecer rosado

adorna-nos em pensamentos solitários.

Somos os netos e bisnetos dos Soldados:

A brava herança de hepatites e malárias.

 

Rodopios das luzes dos céus e da terra,

Rodopios dos corpos gerados na Guerra.

Os que cantam no Eixo a falsa essência

Não nasceram nas terras antropofágicas.

 

No cheiro da lua, no sabor das florestas,

na fumaça alcoólica nasce modernismo!

Na dor das calçadas, no espirrar dos mortos

Eu desatino e danço no alucinar da festa.

 

O mundo é uma imensa floresta

A arte, minha poronga, há de guiar-me. p. 47

 

 

FUGAS E CASAS: I

 

Nasci na Esperança

numa casa de madeira.

Suspensa por pilares,

com escada e escorregador.

Lá tinha duque, galinhas

e galos de briga.

Fui para o Novo Mundo.

Lembro das horas no ônibus,

da casa de família grande,

do raio que caiu na igreja,

da panela de pressão explodindo na cozinha

e da coleção de pontas de caixas de leite.

Subi a rua, as latas desceram.

Morei na casa que parecia o térreo

de uma indústria. Dois andares:

Na parte de cima uma grande área coberta,

com mesa para esconder-se debaixo,

e aguardar Papa chegar com chocolate.

Por lá tinha um casal de vizinhos pasteleiros

com o filho pequeno como eu

que me dizia: Teu nariz é de batata.

No resto da vizinhança, lembro dos varais,

não recordo se eram reais ou feito de sonhos.

Lembro do passeio pelas redondezas,

das árvores verdes que mais pareciam desenhos

feitos por qualquer artista. Eram belíssimas.

Naquela casa tente me matar pela primeira vez:

aos 3 anos, engoli uma moeda e me engasguei.

Cuspi para fora e tive de apanhar.

 

II

 

Voltei para a Esperança

numa casa de paredes assustadoras

e iluminação tensíssima.

O que salvava era o balanço:

Ficava na parte de trás do terreiro,

Segurando-se num galho depressivo.

Aquele balanço balançou a solidão da minha infância.

 

Na fuga para Plácido de Castro

teve pato, galinha preta, cheiro de tabaco,

santos em gesso e dependurados.

Lembro de uma menina na mesma idade minha,

de cabelos desgrenhados e mão no topo da cabeça.

Tinha uma senhora ao lado com ares de avó tristíssima.

 

Na casa da Nova Esperança

assaltaram-me sonhos, o medo roubou-me.

Lembro que, nessa mesma casa,

Fiz quadrinhos, fantoches, bonecos de pano.

Tive quarto e cachorros, casa na árvore (num cajueiro)

e assistir às muitas criações dos pedreiros.

 

Subi a rua, as latas ficaram.

Morei na rua José Mendes

Com piscina e quarto partilhado.

Lá tinha cheiro de museu e coisa nova.

 

A velha vida não havia passado.

 

III

 

Mudei-me para a casa do outro lado da rua

que ainda me engole em pesadelos.

Lembro da vizinhança e dos meninos da rua,

dos passeios de bicicleta,

das bolas chutadas ao esgoto.

 

Lembro das lágrimas de amargura

numa paixão da sétima série.

Nas horas ouvindo Crocodile Rock

e nos segundos que ateava fogo a chuva,

descobri-me rei do sentir. Sentia muito.

 

Fui realocado com o passar dos anos,

posto num novo quadrado em branco

contendo uma única parede em verde-claro.

Lá estava eu com a minha falsa vaidade,

ingenuidade e passado, ego atrofiado.

 

Era o meu novo quarto um templo profano,

era Narciso o meu novo brinquedo. p. 103-107

 

FRANÇA, Di. Pondera. Rio Branco: 3 Serpentes Edições, 2022.

 

Di França é artista e escritor negro nascido em Rio Branco-AC. Graduado em Letras – Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Acre, onde, atualmente, é professor substituto. “Pondera” é sua primeira obra literária, levando aproximadamente quatro anos para ser concluída. O livro saiu pela 3 Serpentes Edições, do editor Rodolfo Minari.

quinta-feira, 5 de maio de 2022

CANTOS E CONTOS DO AMAZONAS

J. G. de Araújo Jorge (1914-1987)

DUAS COTILÉDONES. Dois livros irmãos, dois livros que se parecem, que trazem na fisionomia os mesmos traços indisfarçáveis, só reproduzidos pelos mesmos “genes” ecológicos: “Sapupema”, de José Potyguara, e “Aturá de ritmos”, de Alves de Menezes. O primeiro, um punhado de contos, de contos que reproduzem aspectos da vida amazonense, essa rala e paradoxalmente intensa vida que se espalha rios a dentro, levando a civilização às profundezas das mais espessas florestas do mundo. No Amazonas, a impressão do viajante que sobrevoar as suas selvas, será a de que as cidades estão escondidas submersas no mar de clorofila e da vegetação luxuriante tropical. Há nos contos de José Potyguara a visão objetiva e clara de sua terra. Num estilo simples, direto, sem muitas circunvoluções, ao contrário dos rios amazônicos que parecem demorar na terra com pena de deixá-la, ele nos vai contando as suas histórias. Histórias reais, cada uma delas encerrando uma característica da alma amazonense, suas ânsias, seus desejos, suas paixões. Aí está a vida, vivinha da silva, material farto para dez, para cem, para mil, romances que ainda não foram escritos. “Vingança” é um deles, “Caxinauás”, outro, “Alagação”, é um dos mais belos trechos do livro, onde o poder descritivo do autor se acentua. Chico Reinaldo, um símbolo do caboclo amazônico, estoico, resistente, invencível, lutando contra a terra adversa, pegajosa, ainda informação, terra que melhor que nenhuma outra cabe naquela frase feliz de Agripino Grieco: “parece que ainda se veem as impressões digitais do Criador!” Chico Reinaldo é um pequeno e maravilhoso estudo psicológico do homem do Amazonas, na sua luta sem tréguas contra o meio. Assombrosa luta, desproporcional, que nos enche de orgulho quando verificamos a lenta, mas decisiva imposição do homem sobre a terra.

José Potyguara explica o título de seu trabalho: “Na vastidão da planície amazônica, a gigantesca sumaumeira ergue-se altiva dominando a floresta com sua copa majestosa.

Perdido no labirinto verde da selva, o viajante pede socorro, batendo na sapupema do tronco secular.

O som reboa longe...”

E conclui:

“Enfeixando contos e quadros da longínqua região, este volume é como um eco selvagem da sapupema, transmitindo os anseios, os apelos, e as angústias de uma gente que trabalha com tenacidade, sofre com estoicismo e vive paradoxalmente pobre, em meio às imensas riquezas do setentrião brasileiro.”

Mensagens assim encontrarão eco. Filho do distante Tarauacá, onde o autor situou aliás um dos seus quadros, eu me sirvo de livros como este para lutar contra o tempo, e colorir sempre de novas tintas, as emoções sagradas de minha infância, infância que me saturou as retinas de paisagens inesquecíveis, povoadas de pássaros coloridos, “gaiolas” pitorescos, regatões curiosos, rios verdes como serpentes, engenhos rústicos, igarapés turbulentos, e liberdades maravilhosas. Livros como este, são para mim, passagens grátis de retorno à minha terra, numa viagem feita de saudades a um passado feliz.

 

*   *   *

 

O segundo livro que recebi, é “Aturá de ritmos”, de Alves de Menezes. Aqui estamos diante de um poeta excelente, com as mesmas qualidades do contista. Não raras vezes o seu verso deriva para descrições do meio e da paisagem. Mas um sopro de lirismo quente invade às vezes as páginas deste livro, impregnadas também de um suave desencanto. Como que a poesia de Alves de Menezes reflete a solidão do Amazonas, o abandono das suas terras, a tristeza ingênita das paragens só povoadas de pássaros, e habitadas de árvores. O homem desaparece, é um detalhe insignificante no conjunto. Mas encontramos nessa voz amazônica todos os tons de sua região. A terra ainda é a grande dominadora, a inspiração primordial de quem quer que escreva sobre o Amazonas. E é por isso que, mesmo no verso, os quadros se fixam, e a poesia é dentro deles como um canto de ave que se ouve ao longe, não se sabe onde, “Alagação” é um poema forte, definitivo:

 

“Um rumor de águas revoltas

rola

pela planície...

 

É o coração do rio, descompensado,

dilatando as aurículas profundas

na diástole da enchente...”

 

Assistimos à alagação. As águas crescem, o “repiquete” desce das cabeceiras insuflando água no curso apertado do rio que se contorce entre os barrancos. As águas comem os barrancos, e as árvores desraigadas tombam num vozerio de pássaros assustados e ninhos desfeitos. Passam levadas pela corrente, ramagens sonoras como trechos sinfônicos da grande coral. O caboclo olha impotente, assustado, e procura os altos, a terra firme. A água cresce. A lavoura dos terrenos mais baixos, o jerimum da praia, a melancia, o milharal, tudo vai sendo devorado pela goela barrenta da enchente. Os igapós de olhos vidrados e mortos no interior da mata, acordam com a chegada verde da enxurrada. E seus espelhos que refletiam o céu e o silêncio das noites no fundo das clareiras, se turvam de repente.

Ouçamos o poeta:

 

“Nos barrancos naufragados

as casinhas dos caboclos

de água pelos joelhos

parecem esquisitas banhistas

vestidas de palha

entrando no rio

tremendo de frio...

 

O gado,

em jejum,

nas marombas,

alonga o olhar em derredor

olhando o rio,

o rio

cheio,

o rio,

que passa

turbulento,

despótico,

arbitrário,

levando no roldão das águas piriricas

roçados,

plantações,

esteiras de capins,

toda a roupagem agreste dos barrancos,

todo o ornamento vegetal das margens...”

 

Só o amazonense pode sentir e recompor mentalmente um quadro destes, com todas as suas cores de realidade e suas nuances de tragédia. Todo o livro de Alves de Menezes é assim, verídico, humano, vivo, refletindo o homem e a terra, sua vida e sua luta. Seu estilo é forte e agreste, sua linguagem simples, mas plástica, reproduzindo fielmente o que vê e o que sente. Há poemas belíssimos. “Garças”, “Igapó”, o “Lago “Gaiola”, “Pé-d’água”, “Canoa velha”. Há um sabor de folclore às vezes na simplicidade emocional e nos motivos de seus versos. Em “Boiuna” por exemplo. Mas o poeta é sempre magnífico nas suas expressões. Ora cantando os encantos da “cunhatã”:

 

“porque teus lábios, bons de fazer tucura

são doces como ingá,

e tem curvas fatais e são vermelhos

que nem o bico do tungurupá;

porque os teus seios duros de pontudos

parecem duas pupunhas inchadas

amadurecendo no teu corpo em flor.”

 

tudo amazônico, das imagens ao estilo, nas sugestões emotivas à linguagem. Ora repetindo com novas formas a história do Apuizeiro.

 

“Essa copa triunfal que hoje ostentas ao sol,

toda cheia de alegres passarinhos,

e onde o vento sacode os turíbulos rústicos

dos ninhos,

incensando de sons

o espesso matagal,”

 

tudo isso é poesia, beleza, através da força de um estilo musical e colorido. Conforta encontrar alguns poetas ainda, poetas que saibam dizer coisas belas assim: “turíbulos rústicos dos ninhos, incensando de sons o espesso matagal”.

Todo o livro de Alves de Menezes está cheio de imagens e ritmos. Por isso o seu autor nos define o título:

 

“Aturá, – balaio rústico

feito de cipós e tranças...

........................................

Meu coração, aturá

Carregado de lembranças...”

 

Parece-me que essa é a simplicidade dos verdadeiros poetas. Nada de artificial, de medíocre, de exotismos que mal disfarçam a incapacidade sensorial dos seus exploradores. Alves de Menezes não é no entanto um poeta completo, sem defeitos. Não. Há páginas fracas no livro, páginas indecisas. Mas não há dúvida de que o seu “aturá” está cheio de muita beleza, emoção e poesia.

 

JORGE, J. G. de Araújo. Cantos e contos do Amazonas. In Revista Letras Brasileiras, Rio de Janeiro-RJ, Julho de 1943, p. 31-33

domingo, 1 de maio de 2022

CINZA

Diego Mendes Sousa

Para Jorge Tufic (1930-2018)

 

Terminei esta manhã

de quarta-feira de cinzas

como a natureza do tempo

apresenta-se agora.

 

O vento espalha-se frio

é chuva que vem

dizer

que a saudade é

um murmurar melancólico.

 

Deus começa a chorar, Tufic!

 

Depois do reinado festivo

do momo

gota a gota, fico a relembrar

os seus versos a uísque

doze anos.

 

Guardanapos, pássaros, retratos,

noites, varandas, fraturas do Líbano...

Seu ócio secreto!

Os espantos amazônicos!

Vou lendo a tarde extrema

da sua floresta interior

e o coração hermético

dos seus mistérios,

a memória não espera.

 

A vida ainda é dor,

onde deuses abrigam

lágrimas e lembranças.

 

Velho amigo boêmio,

Jorge Tufic – derradeiro

Poeta de antanho –

na ressaca deste

e de outros milhentos

silêncios.

 

Parnaíba, costa do Piauí, 

14 de fevereiro de 2018.

 

SOUSA, Diego Mendes. Rosa numinosa. Teresina: Ed. do Autor, 2022. p. 77-78