J. G. de Araújo Jorge (1914-1987)
DUAS COTILÉDONES. Dois livros irmãos, dois
livros que se parecem, que trazem na fisionomia os mesmos traços indisfarçáveis,
só reproduzidos pelos mesmos “genes” ecológicos: “Sapupema”, de José
Potyguara, e “Aturá de ritmos”, de Alves de Menezes. O primeiro, um
punhado de contos, de contos que reproduzem aspectos da vida amazonense, essa
rala e paradoxalmente intensa vida que se espalha rios a dentro, levando a
civilização às profundezas das mais espessas florestas do mundo. No Amazonas, a
impressão do viajante que sobrevoar as suas selvas, será a de que as cidades
estão escondidas submersas no mar de clorofila e da vegetação luxuriante
tropical. Há nos contos de José Potyguara a visão objetiva e clara de sua terra.
Num estilo simples, direto, sem muitas circunvoluções, ao contrário dos rios
amazônicos que parecem demorar na terra com pena de deixá-la, ele nos vai
contando as suas histórias. Histórias reais, cada uma delas encerrando uma
característica da alma amazonense, suas ânsias, seus desejos, suas paixões. Aí está
a vida, vivinha da silva, material farto para dez, para cem, para mil, romances
que ainda não foram escritos. “Vingança” é um deles, “Caxinauás”, outro, “Alagação”,
é um dos mais belos trechos do livro, onde o poder descritivo do autor se
acentua. Chico Reinaldo, um símbolo do caboclo amazônico, estoico, resistente,
invencível, lutando contra a terra adversa, pegajosa, ainda informação, terra
que melhor que nenhuma outra cabe naquela frase feliz de Agripino Grieco: “parece
que ainda se veem as impressões digitais do Criador!” Chico Reinaldo é um
pequeno e maravilhoso estudo psicológico do homem do Amazonas, na sua luta sem
tréguas contra o meio. Assombrosa luta, desproporcional, que nos enche de
orgulho quando verificamos a lenta, mas decisiva imposição do homem sobre a terra.
José Potyguara explica o título de seu trabalho:
“Na vastidão da planície amazônica, a gigantesca sumaumeira ergue-se altiva
dominando a floresta com sua copa majestosa.
Perdido no labirinto verde da selva, o viajante
pede socorro, batendo na sapupema do tronco secular.
O som reboa longe...”
E conclui:
“Enfeixando contos e quadros da longínqua
região, este volume é como um eco selvagem da sapupema, transmitindo os anseios,
os apelos, e as angústias de uma gente que trabalha com tenacidade, sofre com estoicismo
e vive paradoxalmente pobre, em meio às imensas riquezas do setentrião
brasileiro.”
Mensagens assim encontrarão eco. Filho do
distante Tarauacá, onde o autor situou aliás um dos seus quadros, eu me sirvo
de livros como este para lutar contra o tempo, e colorir sempre de novas
tintas, as emoções sagradas de minha infância, infância que me saturou as
retinas de paisagens inesquecíveis, povoadas de pássaros coloridos, “gaiolas”
pitorescos, regatões curiosos, rios verdes como serpentes, engenhos rústicos,
igarapés turbulentos, e liberdades maravilhosas. Livros como este, são para
mim, passagens grátis de retorno à minha terra, numa viagem feita de saudades a
um passado feliz.
* * *
O segundo livro que recebi, é “Aturá de ritmos”,
de Alves de Menezes. Aqui estamos diante de um poeta excelente, com as mesmas
qualidades do contista. Não raras vezes o seu verso deriva para descrições do
meio e da paisagem. Mas um sopro de lirismo quente invade às vezes as páginas
deste livro, impregnadas também de um suave desencanto. Como que a poesia de
Alves de Menezes reflete a solidão do Amazonas, o abandono das suas terras, a
tristeza ingênita das paragens só povoadas de pássaros, e habitadas de árvores.
O homem desaparece, é um detalhe insignificante no conjunto. Mas encontramos
nessa voz amazônica todos os tons de sua região. A terra ainda é a grande
dominadora, a inspiração primordial de quem quer que escreva sobre o Amazonas. E
é por isso que, mesmo no verso, os quadros se fixam, e a poesia é dentro deles
como um canto de ave que se ouve ao longe, não se sabe onde, “Alagação” é um
poema forte, definitivo:
“Um rumor de águas
revoltas
rola
pela planície...
É o coração do rio,
descompensado,
dilatando as aurículas
profundas
na diástole da
enchente...”
Assistimos à alagação. As águas crescem, o “repiquete”
desce das cabeceiras insuflando água no curso apertado do rio que se contorce
entre os barrancos. As águas comem os barrancos, e as árvores desraigadas tombam
num vozerio de pássaros assustados e ninhos desfeitos. Passam levadas pela
corrente, ramagens sonoras como trechos sinfônicos da grande coral. O caboclo
olha impotente, assustado, e procura os altos, a terra firme. A água cresce. A
lavoura dos terrenos mais baixos, o jerimum da praia, a melancia, o milharal,
tudo vai sendo devorado pela goela barrenta da enchente. Os igapós de olhos
vidrados e mortos no interior da mata, acordam com a chegada verde da
enxurrada. E seus espelhos que refletiam o céu e o silêncio das noites no fundo
das clareiras, se turvam de repente.
Ouçamos o poeta:
“Nos barrancos
naufragados
as casinhas dos
caboclos
de água pelos joelhos
parecem esquisitas
banhistas
vestidas de palha
entrando no rio
tremendo de frio...
O gado,
em jejum,
nas marombas,
alonga o olhar em
derredor
olhando o rio,
o rio
cheio,
o rio,
que passa
turbulento,
despótico,
arbitrário,
levando no roldão das
águas piriricas
roçados,
plantações,
esteiras de capins,
toda a roupagem agreste
dos barrancos,
todo o ornamento
vegetal das margens...”
Só o amazonense pode sentir e recompor
mentalmente um quadro destes, com todas as suas cores de realidade e suas
nuances de tragédia. Todo o livro de Alves de Menezes é assim, verídico,
humano, vivo, refletindo o homem e a terra, sua vida e sua luta. Seu estilo é
forte e agreste, sua linguagem simples, mas plástica, reproduzindo fielmente o
que vê e o que sente. Há poemas belíssimos. “Garças”, “Igapó”, o “Lago “Gaiola”,
“Pé-d’água”, “Canoa velha”. Há um sabor de folclore às vezes na simplicidade
emocional e nos motivos de seus versos. Em “Boiuna” por exemplo. Mas o poeta é
sempre magnífico nas suas expressões. Ora cantando os encantos da “cunhatã”:
“porque teus lábios,
bons de fazer tucura
são doces como ingá,
e tem curvas fatais e
são vermelhos
que nem o bico do tungurupá;
porque os teus seios
duros de pontudos
parecem duas pupunhas
inchadas
amadurecendo no teu
corpo em flor.”
tudo amazônico, das imagens ao estilo, nas
sugestões emotivas à linguagem. Ora repetindo com novas formas a história do
Apuizeiro.
“Essa copa triunfal que
hoje ostentas ao sol,
toda cheia de alegres
passarinhos,
e onde o vento sacode
os turíbulos rústicos
dos ninhos,
incensando de sons
o espesso matagal,”
tudo isso é poesia, beleza, através da força de
um estilo musical e colorido. Conforta encontrar alguns poetas ainda, poetas
que saibam dizer coisas belas assim: “turíbulos rústicos dos ninhos, incensando
de sons o espesso matagal”.
Todo o livro de Alves de Menezes está cheio de
imagens e ritmos. Por isso o seu autor nos define o título:
“Aturá, – balaio rústico
feito de cipós e
tranças...
........................................
Meu coração, aturá
Carregado de
lembranças...”
Parece-me que essa é a simplicidade dos
verdadeiros poetas. Nada de artificial, de medíocre, de exotismos que mal disfarçam
a incapacidade sensorial dos seus exploradores. Alves de Menezes não é no
entanto um poeta completo, sem defeitos. Não. Há páginas fracas no livro,
páginas indecisas. Mas não há dúvida de que o seu “aturá” está cheio de muita
beleza, emoção e poesia.
JORGE, J. G. de Araújo. Cantos e contos do
Amazonas. In Revista Letras Brasileiras, Rio de Janeiro-RJ, Julho de 1943, p.
31-33
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