Georg Simmel (1858-1918)
Friné o Trata de Blancas – Débora Arango (1907-2005) |
A indignação moral que a “boa sociedade”
manifesta em relação à prostituição é, sob muitos aspectos, matéria de
ceticismo. Como se a prostituição não fosse a consequência inevitável de um
estado de coisas que essa “boa sociedade”, justamente, impõe ao conjunto da
população! Como se fosse a vontade absolutamente livre das mulheres
prostituir-se, como se fosse uma diversão para elas! Claro, entre a primeira
vez em que o infortúnio, a solidão sem recursos, a ausência de alguma educação
moral, ou ainda o mau exemplo do ambiente incitam uma moça a se oferecer por
dinheiro e, por outro lado, a indescritível miséria em que, de ordinário, sua
carreira se encerra, claro, entre esses dois extremos, existe na maior parte do
tempo um período de prazer e despreocupação. Mas a que preço e quão breve! Nada
mais falso do que chamar de “garotas de vida alegre”, essas infelizes criaturas
e entender por aí que elas vivem efetivamente para a alegria: talvez para a
alegria alheia, mas não decerto para a delas. Ou acaso se estima que seja uma
delícia, noite após noite, em qualquer tempo – calor, chuva ou frio –, bater
pernas pelas ruas para oferecer uma presa e servir de mecanismo ejaculatório ao
primeiro indivíduo que aparecer, por mais repugnante que seja? Acaso se crê
realmente que tal vida, ameaçada de um lado pelas doenças mais infectas, de
outro pela miséria e pela fome, e em terceiro lugar pela polícia, acaso se crê
que essa vida possa mesmo ser escolhida com esse livre-arbítrio que seria a
única coisa a justificar, em contrapartida, a indignação moral? Sem dúvida, a
prostituição superior, fora do controle, se vê melhor aquinhoada por mais
tempo. Se a mulher for bonita e conhecer um pouco a arte da recusa, se ademais
fizer teatro, então pode escolher os candidatos e mesmo as pulseiras
brilhantes. À parte o fato de que a queda é, de ordinário, mais grave quando a
interessada não tem mais à sua disposição os encantos que lhe permitiam comprar
a vida in dulci jubilo, a sociedade
se mostra curiosamente muito mais indulgente para com essa prostituição mais
refinada (por certo capaz de se arranjar globalmente bem melhor do que a prostituição
de rua e de bordel) do que para com a prostituição de nível baixo, a qual, no
entanto – supondo-se que haja pecado nisso –, é muito mais sancionada pela
miséria de sua existência do que a primeira. A atriz, que nada tem de mais
moral do que a mulher de rua e, talvez, até se revele bem mais calculista e
vampiresca, é recebida nos salões de que a prostituta de calçada seria expulsa
por cães. As pessoas felizes, de fato, sempre têm razão, e a lei tão cruel que
quer que se dê a quem possui e que se tome de quem nada tem não conhece
executora mais severa do que a “boa sociedade”. Esta, que em toda parte só
enforca os ladrõezinhos, também só despeja toda a sua indignação virtuosa sobre
pobres mulheres de rua, mostrando pudor apenas em função da condição melhor ou
pior das prostitutas. Isso porque a sociedade vê no infeliz seu inimigo – e não
está errada nisso. Porque esse infeliz, o indivíduo desfavorecido por sua culpa
ou não, sobre o qual pesa um juízo de exclusão equitativo ou não, será
responsabilizado pela coletividade por não ter obtido melhor posição em seu
seio. Ele a detestará, e ela o detestará em troca, lançando-o mais abaixo
ainda. Do mesmo modo que o feliz possuidor recebe em acréscimo, além dos
benefícios diretos da sua situação, um prêmio de felicidade devido ao fato de a
sociedade respeitá-lo, elevá-lo ao pináculo e conceder-lhe por toda parte a
prioridade, também o infeliz será, em acréscimo, punido por sua desgraça,
porque a sociedade trata-o como seu inimigo nato. Pode-se observar todos os
dias que o abastado escorraça o mendigo com
cólera, como se fosse um erro
moral ser pobre, como se isso justificasse, pois, a indignação virtuosa. Neste caso,
como é frequente, a má consciência que o rico sete face ao pobre esconde-se
atrás da máscara de uma legitimidade moral de maneira tão contínua, com
pseudo-razões tão peremptórias, que a própria vítima acaba acreditando. A diferença
que a sociedade estabelece assim no juízo e no tratamento que reserva à
prostituição elegante e à prostituição miserável é um dos exemplos mais
esclarecedores, ou mais tenebrosos, da equidade dessa sociedade, que torna o
desgraçado, cada vez mais desgraçado, perseguindo-o por causa de sua desgraça,
como se se tratasse de algum pecado cometido contra ela. Talvez o faça por uma
obscura antecipação, a saber: ele poderia ter a forte tentação de cometer, de
fato, um pecado contra ela.
SIMMEL, Georg. Filosofia do Amor. Tradução
Luís Eduardo de Lima Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p.1-4