terça-feira, 31 de agosto de 2010

O LEGADO DE CRAVEIRO COSTA AO ACRE ANTIGO

Isaac Melo


Hospital de São Vicente. Maceió. O relógio da sala marcava 10 horas e 30 minutos. O dia era 31 de Agosto. 1934 era o ano. Naquela manhã, Craveiro Costa havia saido, como de costume, para o trabalho. Encontrava-se no Gabinete do Tesouro do Estado de Alagoas. Sentiu um desconforto no peito, uma nuvem turva a lhe envolver. Momentos depois, no hospital, familiares e amigos choravam ante o corpo desfalecido do então diretor do Departamento de Produção e Trabalho do Estado.

A história do Acre é uma miscelânea de outras pequenas histórias, cujos protagonistas vão de gentes simples e anônimas a personagens marcantes da história brasileira. Pessoas que por motivações diversas ali foram se estabelecer. Nessa amálgama de gentes e histórias se sublinha o nome do alagoano João Craveiro Costa.

Craveiro Costa
Nascido em Maceió, a 22 de Janeiro de 1871 (4?), Craveiro Costa se inscreve na história daqueles que ao descender de família pobre consegue alcançar um alto prestígio social. Ao perder o pai muito cedo, teve que deixar os estudos para ajudar a mãe e o fez como caixeiro-servente de uma casa comercial. Era estudioso, afeito à leitura. E logo ascendeu profissionalmente. Ainda jovem começou a escrever nos jornais de Maceió tornando-se um jornalista audacioso, planfetário que nas páginas do famoso e histórico jornal alagoano “Guttemberg” tomaria a defesa do que os seus opositores chamavam de “Oligarquia Malta”.

Aos 26 anos teve que deixar seu estado. Estabeleceu-se, primeiramente, em São Paulo, e logo após Rio de Janeiro. Passou a trabalhar como guarda-livros em vários estabelecimentos comerciais. Retornou a Alagoas para novamente deixá-la, a 19 de Fevereiro de 1903, com destino à Manaus. Ali demora pouco e retorna mais uma vez a seu estado. Devido seus conhecimentos em Contabilidade passa, então, a trabalhar, respectivamente, na Contadoria da Recebedoria Central, e na Contadoria Geral do Estado. É a partir de então que Craveiro Costa passa a ser uma referência em relação a temas como Economia e Estatísticas.

Laura Guimarães Passos e Craveiro Costa
A relação de Craveiro Costa com o Acre se afirma, ainda mais, a partir de 1910 quando recém-casado com sua conterrânea Laura Guimarães Passos destinam-se à cidade de Cruzeiro do Sul, onde estabelecem residência. Todavia, dois anos depois a senhora Laura Passos viria a falecer ao conceber o primeiro filho. Tempos depois, Craveiro Costa contrai segundo matrimônio, a 11 de dezembro de 1915, com a também viúva Adelaide Sampaio Figueiredo, acreana, com quem viveria até os últimos dias.

Os anos em que permaneceu no Acre, Craveiro viveu-os com intensidade na vida pública, política e intelectual. Num tempo em que escola era artigo de luxo e dela poucos podiam desfrutar e quase inexistia Craveiro Costa ajudou a fundar os primeiros grupos escolares do Juruá. Da educação, no Acre antigo, muito se ocupou o alagoano. Assim, em 05 de Março de 1907 era nomeado Inspetor Escolar do Departamento do Alto Juruá; em 29 de Dezembro se tornaria lente de História Universal e diretor do Liceu Afonso Pena; também ocuparia, entre Março de 1912 a Abril de 1913, o cargo de Secretário Geral do Governo do Departamento; de 1913 a 1917 desempenharia a função de Inspetor de Instrução Pública; e em 15 de Outubro de 1919, assumia a direção do Grupo Escolar Brasil.

Adelaide Sampaio,
segunda esposa de Craveiro Costa
Assim que o Acre foi incorporado ao Brasil iniciou-se a luta pela sua autonomia política, o que se tornaria uma realidade muitas décadas depois, junho de 1962. Com esse fim, em 1907, foi fundado o Partido Autonomista Acreano, do qual mais adiante Craveiro Costa iria fazer parte. Integrando o Partido Autonomista do Alto Juruá Craveiro funda o jornal O Estado – órgão oficial do Partido e do qual permanece como diretor até deixar o Acre. O primeiro número saiu a 12 de Agosto de 1916, com conteúdo político, noticioso e literário. Craveiro Costa também esteve à frente, como redator, do jornal O Cruzeiro do Sul, o segundo jornal na história de Cruzeiro do Sul, que havia sido fundado pelo então prefeito coronel Thaumaturgo de Azevedo, como órgão oficial do governo Departamental, em 1906.

Craveiro foi uma ardorosa voz que se ergueu a favor da autonomia acreana. E assim o veremos, em Junho de 1910, quando se torna o advogado do Departamento do Alto Juruá ao compor a célebre comissão da qual fazia parte também Francisco Riquet e Alfredo Teles de Menezes, cuja missão era esclarecer as autoridades brasileiras a respeito da situação acreana.

Muitos outros fatos e contribuições se registram da presença de Craveiro Costa em terras acreanas. Mas aquele, sobretudo, pelo qual será lembrado e merecerá figurar na historiografia acreana se dará a partir de 1922, ano em que retorna, definitivamente, para Alagoas a convite do então governador Fernandes Lima. Na bagagem, Craveiro leva a experiência dos anos vividos no Acre e a profunda dedicação e identificação com o povo e sua causa, que será expresso de modo admirálvel em O Fim da Epopéia, assim chamada a primeira edição, de 1924, de A Conquista do Deserto Ocidental.

O livro surgiu a partir de uma série de artigos intitulados “A Conquista do Deserto Ocidental”, publicados por Craveiro a partir de 1922 no Jornal de Alagoas. Não se trata de uma interpretação, propriamente, é antes uma apresentação de fatos históricos que o autor realiza. Uma apresentação apologética à causa acreana e um discurso ferrenho e combativo às autoridades federais que deixavam o povo acreano à mercê do descaso e abandono.

É comum olhar desconfiado para certos “defensores” do Acre antigo, pois geralmente visavam seus próprios interesses ou a consolidação e monopolização do poder. No entanto, é necessário que se faça justiça a Craveiro. No Acre não fez fortunas. Chegou, permaneceu e retornou pobre para sua terra. Morava numa modesta casa construída sob um morro, tão comum na geografia de Cruzeiro do Sul. Não possuía terras, nem seringais. Fora no Acre tão somente educador, funcionário público, literato, jornalista. Afeito a família como era, quis apenas retribuir à terra que gerou seus filhos um pouco de sua gratidão.

Muitos ignoram, todavia, é Craveiro Costa uma das primeiras vozes a se levantar no Acre em defesa do seringueiro escravisado e a denunciar a formação de grandes latifúndios que exploravam e provocavam a fome, a morte e o desespero de famílias humildes. Ele é vibrátil na defesa do Acre. Paulo Silveira, que esborçou uma biografia do autor, ressalta que o livro é um hino que canta a liberdade, impugna a injustiça, combate a corrupção.

Era um homem afeito às letras. Escreveu obras de grande valor histórico como a obra biográfica “O Visconde de Sinimbu” (1937), uma verdadeira lição de história brasileira, sem exageros e paixões, cujos exemplares logo se esgotaram e hoje é raridade. O mesmo se pode dizer de “História das Alagoas”, considerado um dos melhores trabalhos já feitos sobre o Estado. Enfim, Craveiro deixou uma obra de grande valor histórico, sociológico e humanístico demonstrado por um acurado senso de pesquisa e por uma sensibilidade aos problemas sócio-econômicos.

Assim foi Craveiro Costa, um homem que se dedicou ao jornalismo, a literatura, ao serviço público, deixando-se guiar sempre pela ética e os valores, os quais expressou na defesa dos camponeses do Acre (seringueiros) e de Alagoas (colhedores de algodão). Quando de sua morte era um nome de referência em assuntos relativos à Economia, Estatísticas e Contabilidade em todo o Estado. É tanto que, ali, ao redor de seu féretro encontravam-se gente simples e as mais eminentes autoridades da intelectualidade e da política alagoana.

O menino que começou a vida como caixeiro-servente se tornaria um personagem relevante na história de dois estados, e ajudaria a escrever um capítulo importante na história, tanto de Alagoas como na do Acre. O pensamento de Craveiro Costa resiste como testamento e testemunho. Testamento de amor as duas terras que habitou e defendeu. Testemunho de uma época que ficou registrada por meio de seus escritos, e que nos permite, hoje, contemplá-la, tal como filme antigo, saudoso e pujante.

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REFERÊNCIAS

SILVEIRA, Paulo de Castro. Craveiro Costa. Maceió: Sergasa, 1983.
COSTA, Craveiro. A Conquista do Deserto Ocidental. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

O RIO COMANDA A VIDA - Uma Interpretação da Amazônia

Isaac Melo


Do ensaísta Leandro Tocantins é lícito esperar-se que venha escrever sobre a Amazônia obra que alcance a eminência da obra-prima. Essas palavras do proeminente sociólogo Gilberto Freyre vêm confirmar o que é o livro O Rio Comanda a Vida, uma obra-prima das letras amazônicas.

O Rio Comanda a Vida veio a público em 1952 pelas mãos de Cassiano Ricardo, então diretor da extinta Editora A Noite, com o subtítulo “Panoramas da Amazônia”. Em edições posteriores a obra ganharia novos capítulos-ensaios e permutaria o subtítulo para “Uma Interpretação da Amazônia”.

É seu autor aquele que é considerado um dos mais importantes intérpretes da Amazônia, Leandro Tocantins, com toda uma vida de estudos e dedicação à cultura amazônica. Tendo nascido em Belém (PA), aos nove meses de idade viajou para o Acre onde seus pais, Van Dyck Amanajás Tocantins e Iraídes Góes, se estabeleceram, mais precisamente no rio Tarauacá, seringal Foz do Muru, de onde administravam seringais, herança da liquidação da Casa Aviadora Barbosa & Tocantins, da praça de Belém, afetada pela crise econômica da borracha. Tocantins publicou inúmeros livros, desde ensaios a poesias, e tornou-se uma referência importante para todos aqueles que se debruçam em estudar, acuradamente, a Amazônia e seus complexos.

Os 28 capítulos-ensaios (edição de 1972) que compõem O Rio Comanda a Vida podem ser lidos aleatoriariamente, sem prejuízos de compreensão para o leitor, uma vez que cada ensaio possui temáticas diferentes e independentes, embora, seja necessário ressaltar que o livro forma um todo coerente, sob o prisma de dois ângulos: o do seu substrato sociológico e histórico em quadro livro, e o da sua projeção para o futuro. O primeiro capítulo denomina-se “A água doce que entra no mar” e trata basicamente dos descobridores do caudaloso e imponente Rio Amazonas. E finaliza o livro o texto “O rio comanda a vida” que aborda a dinâmica dos rios na vida dos povos amazônicos. Em edições posteriores à primeira, o autor achou por bem incluir alguns apensos, isto é, conferências por ele pronunciadas.

O livro pretendeu ser, na época em que foi escrito, uma evocação e um testemunho de alguém que conheceu tradições, lendas, viu panoramas, observou fatos sociais. E como ressalta o próprio autor, no primeiro momento, a obra nasceu a partir de “impressões pessoais, pesquisas históricas e geopolíticas, trajetórias humanas, idéias e fatos, a que procurei dar forma e vibração, sem me afastar do real, da verdade, no intuito de fazer conhecida honestamente a Amazônia e chamar a atenção dos poderes governamentais para os problemas do vale e as necessidades de seu povo”. Nesse sentido, o livro nasceu de um sentimento brasileiro de integração da Amazônia no processo social e econômico do país.

Nas palavras do escritor, a unidade do livro se justifica na ideia de que a natureza absorve e prende o homem em suas malhas, apesar do lento e continuado esforço para humanizá-la. Daí o rio – uma das mais poderosas forças do meio – dominar a vida, que ainda é, nesta época de revolução técnica, marcada profundamente pelos fatores geográficos.

O que O Rio Comanda a Vida se pretende é interpretar algumas partes integrantes da área cultural luso-cristã, área que se distingue no extremo norte pela marca da exploração humana ditada pelo extrativismo e profundamente influída, no seu processo sócio-econômico, pela água e pela floresta. Interpreta alguns aspectos regionais, apresentando um conjunto de sugestões para a caracterização da vida amazônica.

Muitos dos anseios projetados por Tocantins em seu livro, hoje, são uma realidade. Sua obra abriu novas perspectivas para Amazônia ao chamar a atenção para a importância da integração amazônica conciliando desenvolvimento e preservação, numa conquista ampliada pelo desenvolvimento social e econômico da região, alertando as autoridades para a cobiça internacional pelo qual vinha sofrendo a Amazônia e colocando-a não só na pauta nacional, mas em discussão a nível internacional.

O Rio Comanda a Vida une a virtude literária de expressão clara e atraente ao honesto saber histórico, à acuidade na interpretação sociológica. O autor de Casa Grande e Senzala não diria essas palavras ao acaso. Portanto, ressoa mais como convite do que como testemunho, pois penetrar em estudos profundos e sérios acerca da Amazônia é semelhante a penetrar em sua própria selva.

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TOCANTINS, Leandro. O Rio Comanda a Vida. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1972.

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O RIO COMANDA A VIDA
Leandro Tocantins
(último ensaio da obra de mesmo nome)


O primado social dos rios, trazendo a marca da geografia singular, revela-se nos múltiplos aspectos da vida amazônica, alguns dos quais foram retratados em capítulos precedentes. Diante disso, entrevê-se uns laivos de determinismo, quase a confirmar os exageros da doutrina defendida por Taine, Buckle e Huntington. Porque o homem, diante do cenário grande demais para a sua pequenez, sente-se impotente, inapto para transformar as energias atuantes no meio em proveito próprio, e lhe avassala o espírito a angústia das distâncias tirânicas que os rios ainda mais aumentam no sinuoso deflúvio. E se torna rendido, senão à terra mas fatalmente ao rio, poderoso gerador de fenômenos sociais.

Eis o Nilo, o mais extenso dos cursos fluviais, contido desde a era imemorial dos faraós pelos sistemas de irrigação, oferecendo, submisso, o milagre de sua fertilidade, agora definitivamente subjugado nas represas construídas pela técnica moderna, a lembrar as palavras de Heródoto de que o Egito é uma dádiva sua.

Mas, quem poderá controlar as formidáveis e dispersas energias do Amazonas? O volume colossal das águas, o arremesso violento da corrente, a inconsistência do solo invalidam qualquer diligência de refreá-lo em benefício social, e ele continua selvagem, primitivo, entregue aos devaneios de sua geografia, aos caprichos de sua hidrografia. A obra seria uma luta entre gigantes e pigmeus, e é possível que o rio acabasse por vencer.

Os caminhos que andam trazem a fortuna ou a desgraça. Quando nas cheias a navegação alcança os sítios mais longínquos, certas vezes as alegrias do feliz acontecimento são toldadas pelas inundações funestas, arrasando culturas agrícolas, tragando barrancos, removendo a pobreza franciscana das barracas, levando desespero aos lares, e constituindo uma séria ameaça à economia.

Nos seis meses de seca o verão derrama sobre o vale o fulgor do sol em céu azul, descoberto, e o drama nos altos rios é a falta d’água no álveo empobrecido, a água contra a qual se blasfemara no desespero das alagações. Ficam retidos os gaiolas mais imprudentes que se aventuram a subir o caminho fluvial no fim da estação invernosa, com o casco nu, em falsa postura na calha vazia, amparada pelas âncoras de madeiros silvestres, mantidos em equilíbrio por meio de cabos de aço retesos entre os mastros e as árvores das florestas. Os batelões, arrastando-se nos baixios, roçando nos paus perigosos, realizam milagres para levar aos vilórios, aos seringais, os mantimentos, as coisas essenciais da vida.

O seringueiro aproveita a quadra e corta a árvore de leite, o madeiro abate os enormes lenhos e decepa-os em toros, jogando-os ao leito desnudo dos igarapés. Quando chegam as chuvas, o primeiro fica na barraca, inativo, porque não poderá vencer nas estradas alagadas o duplo embate com a selva e a água, mas no segundo renascem esperanças de sua madeira vir do âmago da mata, boiando no repiquete, do igarapé ao rio, e daí ao mar, no porão dos navios.

A safra toda se escoa pelo caminho andante numa pressa de aproveitar aqueles breves dias de repiquetes, seguindo mesmo ritmo de fuga das águas barrentas, à procura da foz libertadora.

As comunidades, as barracas, os barracões, se desenvolvem à beira dos rios, junto aos barrancos, trepados nos esteios, prontos para locomoverem-se à ré se as terras caídas ameaçarem as palafitas, mas sempre junto da água, na atração máxima do caudal que é a vereda das energias vitais.

Nas paragens do Baixo Amazonas, onde a largura e a profundidade dos cursos fluviais poupam menos dissabores ao homem, a trilha líquida continua a exercer sua implacável hegemonia nos transportes e também nas desolações das grandes enchentes, que demandam nas fazendas pastoris a construção das marombas, imensos palanques erguidos em pleno campo, nos quais as reses ficam cercadas pela água, recebendo o pastoreio diário dos vaqueiros, que lhes trazem de montaria a canarana alimentar.

O homem e o rio são os dois mais ativos agentes da Geografia humana da Amazônia. O rio enchendo a vida do homem de motivações psicológicas, o rio imprimindo à sociedade rumos e tendências, criando tipos característicos na vida regional.

A noção do ius soli parece que se priva de seu conteúdo sentimental em detrimento do rio. Quando alguém se refere à terra natal, só costuma dizer: eu nasci no Juruá, eu nasci no Purus. Se fala da borracha, esta perde a sua qualidade de produto silvestre para ser do rio: borracha do Abunã, borracha do Xingu. Quando há ocasião de assinalar uma área produtiva, o rio é que absorve os elogios: o Yaco é bom de leite, o Antimari é grande produtor de borracha. As ocorrências da vida de cada um estão ligadas ao rio e não à terra: fui muito feliz no Tarauacá, fiquei noivo no Envira e casei no Muru.

O rio, sempre o rio, unido ao homem. Em associação quase mística, o que pode comportar a transposição da máxima de Heródoto para os condados amazônicos, onde a vida chega a ser, até certo ponto, uma dádiva do rio, e a água uma espécie de fiador dos destinos humanos.

Veias do sangue da planície, caminho natural dos descobridores, farnel do pobre e do rico, determinantes das temperaturas e dos fenômenos atmosféricos, amados, odiados, louvados, amaldiçoados, os rios são a fonte perene do progresso, pois sem eles o vale se estiolaria no vazio inexpressivo dos desertos. Esses oásis fabulosos tornaram possível a conquista da terra e asseguraram a presença humana, embelezam a paisagem, fazem girar a civilização – comandam a vida no anfiteatro amazônico.
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TOCANTINS, Leandro. O Rio Comanda a Vida. Uma interpretação da Amazônia.  Biblioteca do Exército editora: Rio de Janeiro, 1973.

Entrevista em que Leandro Tocantins conta um pouco da história de como escreveu o livro "O rio comanda a vida".

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O QUE É PRAGMATISMO?

Profª. Inês Lacerda Araújo


O jornalista Luís Fernando Veríssimo escreveu em sua coluna há algumas semanas, que "pragmático" virou sinônimo de algo sujo. De fato, o termo vem sendo usado para designar pessoas, em geral políticos, que agem sem nenhum escrúpulo, em seu próprio benefício, sem prestar contas, passando por cima de procedimentos legítimos e legais.

Levar vantagem em tudo, esse foi o mote de uma campanha de cigarro na TV, na época em que fazer propaganda de cigarro ainda não era proibido. O jogador Gérson bate com um maço de Vila Rica na cabeça e diz: "É preciso levar vantagem em tudo", o que ficou conhecido como "lei de Gérson". O próprio ex-jogador abomina essa propaganda, não se conforma com o juízo de valor que ficou colado a sua imagem.

Em filosofia pragmatismo é uma corrente filosófica que nasceu no final do século 19, com uma intenção muito diferente!

Pragma no grego significa ação, trata-se de uma filosofia voltada para a prática, é a ação e os resultados produzidos que importam, muito mais do que conceitos abtratos como mente, ideia, abstração. Se temos uma mente, não é porque somos seres espirituais presos a um corpo, mas é porque temos uma inteligência que evolui junto com necessidades práticas de se haver no mundo, lidar com situações problemáticas, que exigem solução.

O conceito de verdade de W. James é uma crítica à concepção de verdade como cópia da realidade. Se há na parede um relógio cujos ponteiros estão parados, a pergunta é por que razão? Alguém esqueceu de trocar as pilhas, vale a pena consertar? E não, vejo um relógio e tenho a imagem dele na minha mente e isso é verdade.

Para J. Dewey, as coisas têm uma natureza interconectada, elas se relacionam de um modo que requer resposta, reação, que visam resultados, importam as consequências da ação. O que vale nesse processo é o uso inteligente da experiência, o que foi aprendido ao longo de gerações. A ação eficiente, que experimenta as diversas situações e lida com elas, vale mais do que a contemplação das ideias. Ao invés de construir castelos no ar, diz Dewey, é melhor construir casas adequadas à vida de seres humanos com suas necessidades concretas.

A ação é transformação constante, melhoria de nossas condições, em educação, em moral e em política. Não há democracia sem educação, nem educação sem democracia, afirma Dewey.

Portanto, pragmatismo filosófico é o oposto do político maquiavélico, aquele que usa dos bens públicos para atingir seus objetivos, seus fins de sucesso pessoal a qualquer preço. Assim, passam por cima da democracia, um regime aberto em que se deve dar satisfação ao público de todos os seus atos.

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* Inês Lacerda Araújo - filósofa, professora e autora, entre outros, de Foucault e a crítica do sujeito (Curitiba: Ed. da UFPR, 2008).

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

À SOMBRA DAS PIRÂMIDES

Carlos Heitor Cony


Nunca tive nada contra os camelos, mas a recíproca parece que não é verdadeira. Dez anos atrás, em Jerusalém, um deles comeu a lente grande-angular da minha Pentax e eu perdi a oportunidade de fotografar um beduíno com radinho de pilha contra a paisagem do deserto da Judéia.

Daria uma execelente fot de abertura (página dupla) para uma reportagem encomendada.

Tempos depois, no Cairo, dei um vexame diante de quatro mil anos de história condensados nas pirâmides. Um camelo cismou comigo e ficou andando atrás de mim. De início, fingi que não estava entendendo. Mas ele tanto insistiu em me fuçar que acabei perdendo a paciência e os bons modos.

Na inutilidade de xingar o camelo, xinguei o cameleiro em todos os idiomas que mal conheço. O cara pensou que eu queria dar uma volta montado no animal e aí foram os dois – camelo e cameleiro – que não me largaram. Terminei dando uma gorjeta ao homem para que fossem embora.

Não é agradável olhar de perto esse animal estúpido e solerte. Seus dentes são esverdeados, o hálito é deplorável. Durante séculos, ele vence a imensidão das areias com as gorduras acumuladas nas suas corcovas de sebo.

Ia xingá-lo uma última vez quando descobri que aquele era um camelo cego, de pupilas vazias e gastas pelos ventos do deserto. Daí a humilhação em que agora vivia, rodando em torno das pirâmides, explorado por cameleiros excitados, levando no lombo turistas cevados e ignorantes como eu.

Posso esquecer tudo na vida, graças e desgraças, mulheres que amei e que talvez tenham me amado. Mas não esquecerei aquele animal estúpido e cego que passou a manhã se oferecendo ao freguês que não o alugou, que procurou um dono que não o quis e encontrou um amigo que não o compreendeu.

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CONY, Carlos Heitor. Os anos mais antigos do passado. Rio de Janeiro: Record, 1999.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

IDIOMA: FERRAMENTA ESSENCIAL NO MUNDO DO TRABALHO

Profª. Luísa Galvão Lessa


Em tempos de acelerada globalização, e de inglês como a língua franca para o acesso a prestígio e empregabilidade no mundo corporativo, é importante repensar o papel real que o bom domínio de Língua Portuguesa pode representar em tal cenário. Se saber inglês virou rotina e uma obrigação profissional, é necessário enfatizar que empresas de excelência, bem como caçadores de talentos desejam encontrar profissionais que saibam manejar bem o idioma pátrio. Ninguém deseja empregar uma pessoa que se expressa mal em seu idioma nativo. Por isso, utilizar bem a língua portuguesa é um diferencial competitivo para os profissionais das mais diversas áreas do conhecimento.

Parodiando o historiador inglês Theodore Zeldin, que escreveu, em seu livro Conversação, que à medida que se galga mais altos patamares no atual universo de trabalho mais se passa o tempo "conversando", pode-se afirmar, sem temor de exagero que, do mesmo modo, quanto mais se ascende na escala profissional, mais se necessita do bom uso da língua materna, mais se passa o tempo lendo e escrevendo. A comunicação escrita, malgrado a oralidade de nossa cultura e o uso de meios como o telefone e os audiovisuais, termina por se impor ao trabalho cotidiano. Não é preciso apenas ler, mas igualmente escrever bastante, mesmo que para tanto ninguém cobre um estilo fluente e impecável.

O mundo corporativo e globalizado exige cada vez mais aprendizado intelectual, envolvendo participações e apresentações em cursos, congressos e seminários, além de publicações de toda ordem, não é difícil imaginar que o papel desempenhado pela língua tende a crescer e a se valorizar. O idioma é uma ferramenta de trabalho essencial. O erro de Português, além de vexatório, compromete a imagem de qualidade que qualquer profissional precisa transmitir.

Falar, escrever, comunicar-se bem será, cada vez mais, uma exigência cotidiana. Para quem quer começar, a saída está ao alcance da mão. Ler bastante é a regra principal. Além disso, há vários livros no mercado que ajudam na tarefa de manter o português sempre atual. A Internet também pode ser um bom ponto de partida. Há várias páginas na rede que relacionam os erros mais comuns, dão dicas de redação comercial e facilitam a vida de quem deseja ter mais intimidade com a língua portuguesa.

É preciso que os profissionais se desvencilhem de hábitos equivocados e de uma cultura que sempre consagrou a língua como algo para intelectuais, juristas e literatos. É necessário repensar a língua como o primeiro e grande instrumento de comunicação de que dispõe o ser humano. Pois a experiência mostra que, se se pensar assim, os ganhos podem ser imensos, evitando-se prejuízos, mal-entendidos e aborrecimentos. Nunca é tarde para alguém aprimorar-se no idioma nativo, tanto na feição escrita quanto oral. Cada pessoa pode desenvolver e lapidar o que "naturalmente" já traz colado à percepção do mundo: o idioma nativo.



*** Luísa Lessa ocupa a cadeira nº 34 da Academia Acreana de Letras.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

FOUCAULT E O CONCEITO DE LOUCURA

Profª. Inês Lacerda Araújo


Em sua tese de doutorado A História da Loucura na Idade Clássica ( 1961), Foucault trata de um tema estranho à academia e que inova no modo de abordar a loucura. Ele a situa na história a partir do século 15, até o tratamento asilar que surge em fins do século 18 e que se transforma no hospital psiquiátrico moderno.

O rosto, os gestos e atitudes da loucura sempre foram reconhecidos, mas o modo de "tratar" e de lidar com a loucura sofreram transformações que seguem ou são criadas por diferentes necessidades sociais e econômicas. Nem sempre o louco foi percebido como doente mental, alvo de intervenção médica. A "Nau dos Loucos" no fim da Idade Média (quadro acima de Bosh), percorria os portos e ora deixava essas estranhas figuras para serem encarceradas, ora seguia com elas de porto em porto, sem que representassem uma ameaça à razão ou à ordem social. Isso só aconteceu mais tarde, com a criação do Hospital Geral, que como o nome indica, encarcerava doentes, vagabundos, loucos. Os mais violentos eram presos a correntes, o chão era feito de tábuas vazadas para que as fezes caíssem na palha.

Prender ou não e quem prender, dependia da falta ou excesso de mão de obra. Olhar e intervir no Hospital Geral se deveu, em parte, aos protestos de presos políticos da Revolução Francesa, que exigiam tratamento diferenciado daquele dado aos pobres e delirantes. Finalmente os loucos foram separados dos demais. Na França, Pinel inaugura o asilo, o mesmo fez Tuke na Inglaterra. A obediência, o rigor disciplinar, o poder do médico de acalmar o doente, fazer com que ele reconhecesse seu "erro", olhar a si mesmo e acabar por admitir que delirava, voltar à realidade, tudo isso põe a loucura num novo patamar, o do olhar objetivador, médico, científico. O louco é libertado das correntes e preso a um novo ordenamento de saber: a loucura se torna doença mental.

O passo seguinte para as instituições psiquiátricas que combinam a hierarquia do asilo com choque, química e intervenções cirúrgicas foi o que o próprio Foucault verificou, logo após se formar em filosofia pela Sorbonne, quando foi voluntário no Hospital Sainte-Anne.

O sofrimento do doente, o internamento, como tratar, se há tratamento, o que é doença mental, como diagnosticar, todas essas questões são hoje levantadas. Não há resposta clara. Há um lado trágico da loucura presente nas obras literárias, na pintura, no cinema. Há outro lado em que se pretende enquadrar como doença sujeita a algum tipo de intervenção.

Em suma, pouco sabemos, somos confrontados com pessoas e seu sofrimento. A situação é melhor quando se recusa o conceito de loucura e se prefere o de doença mental? O que é o físico e o mental? O que é comportamental e o que é experiência pessoal? Com tantas dúvidas, que se tenha, pelo menos, cautela. Para Foucault são acontecimentos na ordem do saber que têm efeitos de poder.

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* Inês Lacerda Araújo - filósofa, professora e autora, entre outros, de Foucault e a crítica do sujeito (Curitiba: Ed. da UFPR, 2008).

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

UMA HISTÓRIA BONITA

Carlos Heitor Cony

É comum me perguntarem qual a história mais bonita que conheço. Difícil responder. De histórias feias estou cheio: é só ir contando o que costuma acontecer comigo e com os outros.

Das histórias bonitas que me encantaram, algumas têm fundo religioso. A parábola do filho pródigo é linda, assim como a história de José e seus irmãos. Mas quando pedem um conto bonito mesmo, lembro sempre a freirinha que era porteira de um convento.

Muito jovem, ela foi seduzida por um nobre que todos os dias passava pelo convento, aparentemente para trazer esmolas que ele recolhia pela cidade. No fundo, para seduzir aquela moça que dedicara sua juventude ao serviço de Deus.

A freira decidiu fugir. Antes, passou pela capela, onde havia uma imagem de Maria diante da qual sempre rezava. Colocou as chaves aos pés da Virgem e fugiu.

Anos depois, abandonada pelo sedutor, ela pensou em voltar ao convento. Bateu à porta – que estava aberta. Foi entrando e ficou admirada porque ninguém lhe fazia perguntas, era como se nunca tivesse fugido, como se todos os dias ela tivesse continuado a abrir e a fechar as portas – todas as portas do monastério.

Metade deslumbrada, metade apavorada, ela foi à capela. Ajoelhou-se diante da imagem de Maria, talvez nem mais soubesse rezar, mesmo assim rezou com o que sabia: com a amargura de sua derrota. De repente, viu que alguma coisa brilhava sob o manto azul da Virgem. Eram as suas chaves.

Ela nem mais se lembrava que as havia deixado ali, no momento da fuga. Tampouco, pedira qualquer coisa, apenas fugira, não tivera coragem para entregar as chaves à superiora.

E durante anos ninguém dera por sua falta. Todas as manhãs as portas eram abertas, todas as noites as portas eram fechadas. Alguém tomara o seu lugar. Alguém que lhe devolveu a capacidade de acreditar nela mesma.

***   *   ***
CONY, Carlos Heitor. Os anos mais antigos do passado. Rio de Janeiro: Record, 1999.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O GUARDADOR DE REBANHOS

trechos do poema de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)
Ilustração: Pulika
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.

Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.

Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz.
E deixou-o pregado na cruz que há no céu

E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeio raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedra aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores,
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas (…)


Fernando Pessoa. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992, p. 209-210.

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terça-feira, 3 de agosto de 2010

CULTIVO UMA ROSA BRANCA

José Martí

Cultivo uma rosa branca,
em julho como em janeiro,
para o amigo verdadeiro
que me estende sua mão franca.

E para o mau que me arranca
o coração com que vivo,
cardo ou urtiga não cultivo:
cultivo uma rosa branca.

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Foto: Galeria de Eliza e Jose