quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

ÓPERA AQUIRY – A Luta de um Povo

José Augusto de Castro e Costa 


O Projeto Ópera Estúdio, idealizado pelo Departamento de Música da UnB, é um dos empreendimentos que vem logrando sucesso contínuo, desde 2004, enriquecendo sobremaneira a vida cultural da capital da República. 

Acadêmicos, professores e demais profissionais da Universidade de Brasília têm, por meio do projeto, adquirido a possibilidade de viver a emoção e o profissionalismo de encenar uma ópera completa e de elevadíssimo nível. 

A UnB, com esta iniciativa, tem aproximado o público de uma das mais admiráveis manifestações culturais – o drama musical. Ressalte-se, ainda, que uma das propostas do aludido projeto, é motivar o público em geral, habituando-o a óperas consagradas, tais como Carmen, O Barbeiro de Sevilha, La Bohème, As Bodas de Fígaro, levando-lhes o conhecimento íntimo de autores como Bizet, Rossini, Mozart e Donizetti. 

Envolvido no Projeto Ópera Estúdio encontra-se o brilhante acreano Mário Lima Brasil, filho de dona Alaíde e do jornalista Geraldo Brasil, que marcou presença na administração do Acre, como Chefe de Gabinete do então Governador Ruy Lino. 

Por pertencer ao “staf” da Universidade de Brasília, com exercício no corpo docente do Departamento de Musica, Mario Brasil é figura integrante do Projeto Ópera Estúdio e, em assim sendo, foi convidado para incluir no repertório, uma de suas mais importantes composições :  “AQUIRY – A Luta de um Povo”.

 Como afirma o compositor acreano, mais do que inspiração, “AQUIRY – A Luta de um Povo” nasceu de três desejos, isto é, a avidez de comemorar o centenário da Revolução Acreana, o interesse de mostrar a luta dos acreanos contra o imperialismo capitalista que ameaçava instalar-se na Amazônia e a vontade de tornar a Ópera um estimulante “da criação das instituições de música no Estado do Acre”. 

Para deleite do público de Brasília, a ópera acreana foi levada a efeito, em reprise, no último dia 21 de fevereiro, no Teatro Nacional Cláudio Santoro, em evento que contou com grande público, exigente e entusiasmado com a “performance”, protagonizada por elenco  formado pela nova geração de cantores líricos da UnB. 

O espetáculo, produzido pela professora da Universidade de Brasília, Irene Bentley, com a direção musical de Mário Brasil e direção cênica de Moritz Heinemann, utiliza a música, associada às Artes Cênicas, às Artes Visuais, à Expressão Corporal e à Poesia, como conhecimentos integrados que viabilizam o desenvolvimento do potencial criativo do ser humano. 

“AQUIRY – A Luta de um Povo” é uma ópera composta para uma orquestra clássica de doze solistas, corpo lírico de vinte e sete sopranos, nove contraltos, cinco tenores, seis baixos, cinco instrumentistas, além de quatorze bailarinos e oito figurantes. 

Trata-se de uma ópera composta em três atos. O primeiro ato refere-se ao navio Rio Afuá aportando no seringal Boa Aventurança, no Acre, trazendo nordestinos para trabalharem no extrativismo da borracha, além de Rodrigo de Carvalho, um dos combatentes da Revolução Acreana. 

O segundo ato encena o convite e a aceitação condicionada de Plácido de Castro para comandar o Exército Revolucionário Acreano e o desenrolar da revolução em si, com destaques a focar a primeira derrota sofrida pelos brasileiros, motivada por emboscadas e traições resultantes em fuzilamento do traidor, culminando com a tomada de Puerto Alonso e a rendição dos bolivianos. 

O terceiro ato inicia-se com a assinatura do Tratado de Petrópolis, enfocando o desinteresse das autoridades brasileiras, a turbulência política encenada por Autonomistas e Unionistas, as hostilidades contra Plácido de Castro, e finaliza com o assassinato do herói acreano. 

No encerramento, o corpo lírico canta a morte traiçoeira de Plácido e enfatiza a promessa daquele povo guerreiro de lutar pelos seus ideais de liberdade. 

Mario Brasil é acreano de Rio Branco, radicado em Brasília, onde iniciou seus estudos na UnB. Estudou trompa com Bohumil Med, aperfeiçoando-se em composição e regência com o professor Cláudio Santoro. Estudou Música e Tecnologia na Inglaterra, com Richard Ortton e concluiu o mestrado no Japão, com Kozo Moriyama, na Universidade de Arte de Tóquio, onde dedicou-se ao estudo sobre as influências culturais no instrumento trompa. Ainda em Tóquio teve a oportunidade de aprimorar seus conhecimentos musicais na Escola Japonesa de Composição, com Minoru Miki, que o influenciou a compor o balé “Cantos em Cantos do Japão”, para orquestra de cinco instrumentos japoneses. 

Ainda sob a influência japonesa, Mario Brasil compôs seu segundo balé, denominado “Amazônia, o Último Sonho” e a série “Valsas Amazônicas”. 

Atualmente Mario Lima Brasil exerce a atividade de professor da Universidade de Brasília, onde leciona as disciplinas Música Afro-Brasileira na Amazônia, Composição Musical, Etnomusicologia, Educação Musical, Contraponto e Inclusão Social através da Música. 

Mario Brasil possui um caráter visivelmente acreano e o reflete, quando revela que sua composição mais notável, a ópera “AQUIRY – A Luta de um Povo”, foi inspirada na “música afro-brasileira na Amazônia, nos modos nordestinos e nos sons da floresta”, o que, indubitavelmente retrata a apaixonante história da Revolução Acreana, uma história recheada de inclemência e bravura, e inundada pelo sangue mais ardente, a circular nas artérias brasileiras.


* José Augusto de Castro e Costa é cronista e poeta acreano. Reside em Brasília, e escreve o Blog FELICIDACRE. 

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

TRÊS SONETOS DE JORGE TUFIC

“Jorge Tufic é um dos grandes escritores brasileiros, autor de uma obra rara, dotada de linguagem lírica e de alta metáfora, sonora e imagística, flutuante e bem elaborada.”
Clodomir Monteiro


O VINHO DO MÍSTICO 
Jorge Tufic

Ao Yogue Paramahansa Yogananda

Testemunhas de mim são as garrafas. 
Louvo, ao secá-las, ao meu bom Khayyam. 
Ao néctar místico lançam-se tarrafas, 
e a pesca é boa quando a vida é sã. 
Embriago-me de Deus toda manhã, 
verticalizo a dor como as girafas. 
Alcanço a plenitude. Adoro Pã,
danço longe do tédio e das estafas. 
Meu turbante rebrilha. Posto em lótus, 
ultrapasso o Nirvana e tiro fotos 
da solidão mais cósmica do além. 
Bebo com Deus a chuva que ele ama. 
É sempre bom beber. O vinho é chama
 que se transmuda como lhe convém.


SONETO ÀS BORBOLETAS 
Jorge Tufic

Sempre dou baixa aos dias na folhinha. 
Porém, quanto mais risco, mais florescem, 
quer nos blocos seguintes, quer na minha  
janela aberta aos outros que amanhecem. 
Não sei das vezes que a esse gesto eu vinha 
dando o meu tempo que as aranhas tecem; 
tantos dias iguais, seja à tardinha, 
seja às estrelas quando resplandecem. 
Montões de calendários tomam conta 
de algumas prateleiras que derramam 
velhos papéis inúteis, dessa monta. 
Números, datas, portas e janelas, 
foram, decerto, árvores que inflamam
para os céus borboletas amarelas.


O CRISTO DE SARAMAGO 
 Jorge Tufic

A rede, sim, transluz-se e colhe o peixe. 
A terra é sangue, inútil proteção 
ao cordeiro aflitivo – que se o deixe 
manumisso da horrível sagração. 
A tempestade, o mar, o rubro feixe 
se azula em mim nos touros de um clarão... 
Ventos, parai! Que o mundo não se queixe 
dessa fúria de Deus em minha mão. 
Que são curas, milagres como o vinho, 
meus pássaros de areia, o gesto santo 
no adiar-se a vida para mais caminho 
Uma simples mulher curou-me, um dia, 
das chagas com suas lágrimas; e o quanto
 dera-me alívio à cruz donde eu pendia.


O poeta Jorge Tufic é acreano de Sena Madureira. Tufic é consagrado como um dos melhores poetas de sua geração, tendo exercido um papel imprescindível na literatura amazonense, cearense e acreana. Em 2012, recebeu o Prêmio Raul Bopp da União Brasileira de Escritos – RJ, pela obra QUANDO AS NOITES VOAVAM.

Clique aqui para acessar o blog de Jorge Tufic.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

E JÁ QUE OS MORTOS NÃO FALAM...

Leila Jalul


Contava Dona Marlúcia, com muita tristeza, que a filha Maria Augusta nascera normal. Aos primeiros meses de vida, tanto quanto qualquer outra criança sadia, balbuciava o restrito número de vocábulos próprios do período de vida. Papá, mamã, ádua, bó, etc...

Maria Augusta era uma criança linda, orgulhavam-se os pais. Os olhos grandes esverdeados e os fartos cílios não indicavam a sua descendência indígena. Não fossem os cabelos pretos e lisos, parecia mais uma estrangeirinha nórdica nascida em ninho errado.

Um dia de festa na cidade, por conta de uma eleição, um desalmado e irresponsável festeiro soltou um rojão potente que veio a cair, desgraçadamente, sobre o teto de zinco do quarto da pequena. Martino Holanda e Marlúcia, em estado de loucura e pavor, imaginaram o pior e correram para ver se a filha estava bem.

O que viram, no entanto, foi de cortar o coração. Maria Augusta, em choque, estava sentadinha no berço. Não ria e não chorava. O vômito cobria sua fraldinha e toda a cobertura de tecidos do berço. Retirada dali, sem esboçar reação, foi banhada e perfumada para que pudesse novamente entrar no sono de menina tranquila que era. Por precaução e temor de que novos rojões fossem disparados, pai e mãe levaram a pequena para que dormisse entre eles.

Nos dias seguintes, por quase uma semana, a bebê apresentava febre alta e não havia quem a fizesse parar de chorar. Outra estranheza, também, foi verificada: Maria Augusta expressava medo nos olhos e, por mais que fosse embalada na rede, só conseguia dormir quando tomada pelo cansaço. Os pais, só então, resolveram buscar ajuda médica. Aquilo que parecia uma reação comum ao susto, tornou-se, por muito tempo, um estado de choque permanente. Vez por outra, em convulsão, era levada ao hospital de emergência e acalmada com Luminaleta, o medicamento da época. 

Entre melhoras e pioras, mais pioras que melhoras, o tempo foi passando. Cresceu no tamanho e aprendeu a andar. Falar, não. Era uma criança triste, olhar perdido no horizonte e sono intranquilo. Os testes auditivos foram satisfatórios, razão pela qual foi matriculada numa escolinha para, esperavam os pais, uma possível socialização. A recusa da menina foi determinante para que de lá saísse e brincasse em casa com alguns primos e vizinhos. As crianças interagiam. Ela, não. 

A vida não deu recreio aos pais. Marlúcia era enfermeira do centro cirúrgico de uma maternidade. Martino, o pai, era bioquímico do Estado e, no período da tarde, trabalhava num laboratório particular. O sonho do casal era fazer economias e empreender uma viagem aos Estados Unidos. O mutismo de Maria Augusta haveria de ter cura, nem que, para isso tivessem de percorrer o mundo. Fosse pela medicina, fosse pelo curandeirismo, acreditavam na vitória. 

Enquanto trabalhavam, em tempo integral, escolheram Elza, uma boa moça, para cuidar da casa e da menina. Meio que aparentada da família, logo angariou confiança e respeito. Uma mão na roda! A menininha também gostava dela.

O que estava dando certo, no entanto, durou pouco. Um dia, por ter necessidade de resolver um problema na cidade, Elza deixou Maria Augusta aos cuidados de Ramires Meirelles, um boliviano que estava hospedado em sua casa. Não sabia ela, infelizmente, que o problema a ser resolvido demoraria mais que o previsto.

Neste mesmo dia, como se empurrada por Deus, Marlúcia voltou mais cedo para casa. Ainda na porta, sem mesmo jogar a bolsa numa cadeira, escutou uma voz de criança gritando. Não, não, não! - dizia a voz. Num impulso, certa de que era a filha, adentrou no quarto dela e viu Ramires tentando tirar-lhe a roupa. Maria Augusta lutava com garra. Com mais força que a força que seus nove anos permitia lutar.

Num arranco, cega de ódio, Marlúcia abriu uma fenda na cabeça do boliviano com um ferro de passar, o primeiro objeto que sua mão pôde alcançar. Logo chegaram Elza e Martino Holanda que, arrastando pelos pés, retiraram o corpo de Ramires Meirelles do quarto da menina, enquanto a mãe, desdobrada em cuidados, encobria-lhe o rosto para que não visse a cena.

Aos poucos, com ajuda de profissionais, Maria Augusta voltou a falar, deixando para trás os olhares perdidos no infinito e o estado quase catatônico que a manteve muda por mais de oito anos.

De Ramires Meirelles não se soube mais nada. Quem deveria saber, não por acaso e sem razões, manteve-se mudo para todo o sempre.

E já que os mortos não falam...

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

MATEMÁTICA MISTURADA COM PORTUGUÊS

José de Anchieta Batista
 

Se ainda hoje é muito difícil para os militares da fronteira amazônica dedicarem-se aos estudos, em razão das peculiaridades da profissão e das permanentes missões por eles desempenhadas, imaginem só como não era antigamente. 

Naquele ambiente de dificuldades, todo soldado engajado sonhava ser cabo e todo cabo sonhava ser sargento. Raramente, contudo, algum deles conseguia ser aprovado nos concursos para acesso ao nível superior, pois não dispunham de horários para se dedicarem aos livros. Além dessa escassez de tempo, aliada ao cansaço impingido pelo cotidiano da vida castrense, os concursos não eram dos mais fáceis, tornando deveras longínqua tão ambicionada pretensão. 

Há umas quatro décadas, na então Quarta Companhia de Fronteiras, sediada em Rio Branco, capital do Estado do Acre, um desses comandantes mais humanos e mais preocupados com o lado social e com o crescimento de seus comandados, pôs a valer uma iniciativa elogiável. Após as devidas adaptações nos horários do quartel, fez funcionar dois cursos preparatórios: - um grupo seria constituído pelos soldados mais antigos e menos escolarizados, a fim de  possibilitar-lhes o ingresso no curso de formação de cabos, anualmente realizado no Comando Militar da Amazônia, em Manaus; o outro seria destinado a quem possuísse um nível escolar mais elevado, que lhes auferisse condições para ingressar na Escola de Sargentos das Armas, lá em Três corações, Minas Gerais.  Para isso, o bondoso coronel mandou fazer um levantamento de quais sargentos e oficiais estavam capacitados para ministrarem as aulas e atribuiu-lhes a missão. As maiores dificuldades de aprendizado, como era de se esperar, residiam nos assombrosos fantasmas da matemática, disciplina que ficara sob a responsabilidade do sargento Joaquim Ferreira, graduado no assunto pela Universidade Federal do Acre. E foi justamente dentro do contexto da matemática que ocorreu o fato pitoresco que aqui relatamos. 

Um dos soldados, com nome de José Caiçara e apelido de “Quati”, já com doze anos de caserna, era candidato ao curso de cabos. Estudara tão-somente, em sua infância distante, até o segundo ano primário duma escola rural embrenhada num desses nossos afastados seringais. Diante, porém, daquela grande oportunidade, o praça motivou-se todo, não se deu por vencido e partiu para o desafio. 

Durante os primeiros quinze dias o “Quati” não sentiu maiores complicações. A orientação do comandante era que tudo deveria começar do nível mais rudimentar possível. Os assuntos de Língua Portuguesa, por exemplo, tiveram início na revisão do alfabeto, sua divisão em vogais e consoantes etc., numa abordagem tão simples que mais se parecia com as antigas aulas da histórica “Carta de A-B-C”. Na Aritmética também o pontapé inicial se deu nos moldes da velha tabuada, com soluções de pequenas contas de somar e diminuir. Assim, tudo ocorria com muito otimismo e perseverança. Os resultados eram promissores. 

Todavia, passados os primeiros dias, o “Quati”, inesperadamente, foi obrigado a abandonar a sala de aula por um período considerável. Que tristeza! Escalaram-no para uma missão lá para as bandas de Santa Rosa do Purus. Quando se tratava de embrenhar-se na floresta, ninguém era tão respeitado quanto ele. Seu nome estava sempre na cabeça da lista, antes mesmo de se saber quem seria o comandante. Podia ser um semianalfabeto, mas era um doutor no convívio com a selva. 

Os dias se passaram e mais de um mês após o início de sua aventura por matas e rios, o “Quati” voltou.  Na mesma data de seu retorno, já estava ele lá, junto dos companheiros de estudo, buscando recuperar o tempo perdido e tentando aprender a terrível matemática. Pelo visto, a matéria já houvera avançado bastante. O sargento Joaquim Ferreira se desdobrava, explicando e solucionando problemas no quadro-negro, momento em que sempre procedia com desmedida paciência e punha em prática a melhor didática possível. O “Quati” sentou-se lá atrás e entregou-se totalmente a prestar atenção. Meia-hora depois se conscientizou de que não entendera patavina e se sentia mais por fora do que cebola em salada de frutas.  Para completar seu desengano, ouviu neste momento, Joaquim Ferreira ler em voz alta o enunciado de mais um problema colocado na lousa: - “A” é igual a “B” mais seis. Qual o valor de “A”, se “B” for igual a quatorze? Aquilo foi a gota d`água. O “Quati” sentiu-se totalmente violentado. Não seria possível entrar em sua cabeça aquele negócio de números convivendo, no mesmo problema, com as letras do alfabeto. Levantou-se, colocou o caderno debaixo do braço, pediu licença ao sargento e dirigiu-se à porta de saída.

O Joaquim parou de explicar e voltou-se para o soldado: 

- Já vai? 

- Já, meu Sargento! 

- Mas, por quê? 

- Matemática já é difícil e o Senhor misturando com português... desisto! 

O “Quati” realmente desistiu, teve multiplicado o seu ódio por números, nunca mais voltou a uma sala de aula e viveu a vida inteira como soldado raso. 


* José de Anchieta Batista, poeta, autor de MENINO DA RUA DO BAGAÇO (Rio de Janeiro: Publit, 2009), e atual diretor-presidente do Acreprevidência.