Evandro
Ferreira
Dentre
as mais de 550 espécies de palmeiras nativas das Américas do Sul, Central e do
Norte, apenas a pupunha (Bactris gasipaes)
é considerada como espécie completamente domesticada. O açaí-de-touceira, atualmente
amplamente cultivado na Amazônia, ainda está em estágio inicial de
domesticação.
Conceitualmente,
a domesticação de uma planta consiste em um longo processo de seleção conduzido
pelo homem com o objetivo de adaptar a planta para suprir suas necessidades de
alimentos, materiais de construção, medicamentos e outros produtos. Por essa
razão, geralmente as plantas domesticadas são geneticamente distintas de seus
progenitores selvagens e, na maioria das vezes, totalmente dependentes do homem
para sua sobrevivência, não conseguindo se reproduzir na natureza sem a
intervenção humana. Isso explica o fato de roçados cultivados com culturas
perenes, como café, abacate e mamão, geralmente não prosperarem quando deixados
sem os cuidados básicos de podas e limpezas do terreno onde são cultivados.
O
processo de domesticação e disseminação do cultivo da pupunha foi realizado por
indígenas sul-americanos muito antes da chegada dos primeiros europeus. Quando
isto aconteceu, a espécie já se encontrava distribuída por toda a Amazônia,
norte da América do Sul e parte da América Central. Os frutos, que podem ser
usados na alimentação humana e de animais domésticos, foram a principal razão
para a domesticação da espécie. Somente nos últimos 30 anos é que seu cultivo foi
expandido para a costa atlântica brasileira, especialmente para a produção de
palmito, que rivaliza em qualidade com o palmito extraído de algumas espécies
de açaí na Amazônia e da palmeira Jussara, na Mata Atlântica. Esse interesse
comercial fez com que a espécie tenha atingido um status de cultivo industrial.
Apesar
da sua importância econômica, até recentemente existiam discordâncias quanto à
classificação botânica da pupunha. Ocorre que muitas plantas cultivadas de
pupunha, com variações no tamanho e na cor dos frutos, foram descritas como
espécies ou variedades distintas. Da mesma forma, algumas plantas
morfologicamente similares à pupunha cultivada, mas que cresciam espontaneamente
na floresta também foram descritas como espécies distintas. Até o famoso
botânico alemão Martius contribui para a confusão ao criar o gênero Guilielma para batizar plantas de
pupunha cultivada que ele havia encontrado no Maranhão nos idos de 1824.
A
confusão quanto ao correto nome científico da pupunha foi resolvida em duas
etapas. A primeira, em 1991, quando o pesquisador americano Roger Sanders fez
um estudo filogenético e comprovou que o gênero Guilielma proposto por Martius não diferia do gênero Bactris, que havia sido proposto em
1777. Posteriormente, em 2000, o pesquisador inglês Andrew Henderson fez uma
revisão taxonômica do gênero Bactris
e propôs que o nome científico mais apropriado para as plantas cultivadas de
pupunha seria Bactris gasipaes
variedade gasipaes. O nome das
plantas selvagens morfologicamente similares às cultivadas passou a ser Bactris gasipaes variedade chichagui.
Entretanto,
ainda pairam algumas dúvidas sobre como
ocorreu a domesticação da pupunha e algumas perguntas ainda não estão
completamente respondidas. Qual ou quais os ancestrais selvagens foram usados
pelos indígenas para desenvolver a pupunha domesticada? Isso foi feito de forma
isolada em uma única região ou ocorreu de forma simultânea em diferentes
localidades na América do Sul e Central?
Para alguns pesquisadores, a domesticação
ocorreu uma única vez em algum lugar do sudoeste da Amazônia, em uma região que
compreende parte do Acre, e regiões adjacentes da Amazônia boliviana e peruana.
Para outros esse evento único ocorreu no noroeste da Amazônia colombiana.
Finalmente, uma hipótese completamente diferente advoga que a domesticação
ocorreu mais ou menos simultaneamente em diversas localidades na América do Sul
e na América Central.
Estudos filogenéticos que realizamos em
meados da década de 90 indicam que sob o ponto de vista anatômico e morfológico
pelo menos uma espécie de pupunha selvagem, Bactris
dahlgreniana, amplamente distribuída no sudoeste da Amazônia, norte de Mato
Grosso e sul do Pará, é estreitamente relacionada com as plantas cultivadas,
sugerindo que estas últimas podem ter sido selecionadas a partir da primeira.
Dados históricos apóiam o sudoeste da
Amazônia como o centro de domesticação da pupunha. O botânico suíço Jacques
Huber, então funcionário do Museu Goeldi e amplo conhecedor da Amazônia, já
havia encontrado a pupunha cultivada e seus parentes selvagens quando visitou o
alto rio Solimões, no Brasil e regiões adjacentes no Peru. Quando, por volta de
1904, ele encontrou as mesmas plantas ao longo do rio Purus, se convenceu de
que a pupunha selvagem, que ele batizou de Guilielma
microcarpa, conhecida pelos nativos como ‘pupunha brava’, era a mais
provável ancestral da pupunha cultivada.
O botânico brasileiro Barbosa Rodrigues,
ao visitar a região da Chapada dos Guimarães por volta de 1900, encontrou uma
espécie de pupunha selvagem em matas de galeria locais, mas não observou a
pupunha cultivada, que conhecia de sua viagem ao Pará, realizada por volta de
1870. Como não havia observado pupunha selvagem no Pará, ele propôs que os
indígenas que habitavam as cabeceiras dos rios Xingu e Tapajós provavelmente
domesticaram a pupunha e levaram sementes da mesma para o baixo Amazonas.
Análises genéticas realizadas nos últimos anos apóiam a hipótese de dois
eventos de domesticação ocorridos no sudoeste da Amazônia, coincidindo com as
proposições de Jacques Huber e Barbosa Rodrigues.
Por hora, existe quase um consenso no meio acadêmico de
que a pupunha brava, cujo nome científico mudou de Guilielma microcarpa para Bactris
dahlgreniana, é a espécie com maiores chances de ter dado origem à pupunha
cultivada. Inclusive seu nome popular deriva do fato da mesma ser em quase tudo
idêntica à pupunha cultivada, com exceção dos frutos, que são muito menores e
não tem valor comercial. Se a pupunha brava for, no futuro, confirmada como a
ancestral da pupunha cultivada, os indígenas responsáveis por esse processo
merecem nossa admiração. Afinal, eles partiram de uma espécie cujos frutos
mediam menos de 2 cm de diâmetro e desenvolveram variedades cultivadas com
frutos medindo até 8 cm de diâmetro. Uma façanha e tanto considerando que o
processo foi feito de forma intuitiva.
* Evandro Ferreira - acreano, nascido em Rio Branco, pesquisador do INPA-AC e do Parque Zoobotânico da UFAC. Mestrado em Botânica no Lehman College, New York, USA, e Ph.D. em Botânica Sistemática pela City University of New York (CUNY) & The New York Botanical Garden (NYBG).
* Evandro Ferreira - acreano, nascido em Rio Branco, pesquisador do INPA-AC e do Parque Zoobotânico da UFAC. Mestrado em Botânica no Lehman College, New York, USA, e Ph.D. em Botânica Sistemática pela City University of New York (CUNY) & The New York Botanical Garden (NYBG).
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