domingo, 24 de fevereiro de 2013

E JÁ QUE OS MORTOS NÃO FALAM...

Leila Jalul


Contava Dona Marlúcia, com muita tristeza, que a filha Maria Augusta nascera normal. Aos primeiros meses de vida, tanto quanto qualquer outra criança sadia, balbuciava o restrito número de vocábulos próprios do período de vida. Papá, mamã, ádua, bó, etc...

Maria Augusta era uma criança linda, orgulhavam-se os pais. Os olhos grandes esverdeados e os fartos cílios não indicavam a sua descendência indígena. Não fossem os cabelos pretos e lisos, parecia mais uma estrangeirinha nórdica nascida em ninho errado.

Um dia de festa na cidade, por conta de uma eleição, um desalmado e irresponsável festeiro soltou um rojão potente que veio a cair, desgraçadamente, sobre o teto de zinco do quarto da pequena. Martino Holanda e Marlúcia, em estado de loucura e pavor, imaginaram o pior e correram para ver se a filha estava bem.

O que viram, no entanto, foi de cortar o coração. Maria Augusta, em choque, estava sentadinha no berço. Não ria e não chorava. O vômito cobria sua fraldinha e toda a cobertura de tecidos do berço. Retirada dali, sem esboçar reação, foi banhada e perfumada para que pudesse novamente entrar no sono de menina tranquila que era. Por precaução e temor de que novos rojões fossem disparados, pai e mãe levaram a pequena para que dormisse entre eles.

Nos dias seguintes, por quase uma semana, a bebê apresentava febre alta e não havia quem a fizesse parar de chorar. Outra estranheza, também, foi verificada: Maria Augusta expressava medo nos olhos e, por mais que fosse embalada na rede, só conseguia dormir quando tomada pelo cansaço. Os pais, só então, resolveram buscar ajuda médica. Aquilo que parecia uma reação comum ao susto, tornou-se, por muito tempo, um estado de choque permanente. Vez por outra, em convulsão, era levada ao hospital de emergência e acalmada com Luminaleta, o medicamento da época. 

Entre melhoras e pioras, mais pioras que melhoras, o tempo foi passando. Cresceu no tamanho e aprendeu a andar. Falar, não. Era uma criança triste, olhar perdido no horizonte e sono intranquilo. Os testes auditivos foram satisfatórios, razão pela qual foi matriculada numa escolinha para, esperavam os pais, uma possível socialização. A recusa da menina foi determinante para que de lá saísse e brincasse em casa com alguns primos e vizinhos. As crianças interagiam. Ela, não. 

A vida não deu recreio aos pais. Marlúcia era enfermeira do centro cirúrgico de uma maternidade. Martino, o pai, era bioquímico do Estado e, no período da tarde, trabalhava num laboratório particular. O sonho do casal era fazer economias e empreender uma viagem aos Estados Unidos. O mutismo de Maria Augusta haveria de ter cura, nem que, para isso tivessem de percorrer o mundo. Fosse pela medicina, fosse pelo curandeirismo, acreditavam na vitória. 

Enquanto trabalhavam, em tempo integral, escolheram Elza, uma boa moça, para cuidar da casa e da menina. Meio que aparentada da família, logo angariou confiança e respeito. Uma mão na roda! A menininha também gostava dela.

O que estava dando certo, no entanto, durou pouco. Um dia, por ter necessidade de resolver um problema na cidade, Elza deixou Maria Augusta aos cuidados de Ramires Meirelles, um boliviano que estava hospedado em sua casa. Não sabia ela, infelizmente, que o problema a ser resolvido demoraria mais que o previsto.

Neste mesmo dia, como se empurrada por Deus, Marlúcia voltou mais cedo para casa. Ainda na porta, sem mesmo jogar a bolsa numa cadeira, escutou uma voz de criança gritando. Não, não, não! - dizia a voz. Num impulso, certa de que era a filha, adentrou no quarto dela e viu Ramires tentando tirar-lhe a roupa. Maria Augusta lutava com garra. Com mais força que a força que seus nove anos permitia lutar.

Num arranco, cega de ódio, Marlúcia abriu uma fenda na cabeça do boliviano com um ferro de passar, o primeiro objeto que sua mão pôde alcançar. Logo chegaram Elza e Martino Holanda que, arrastando pelos pés, retiraram o corpo de Ramires Meirelles do quarto da menina, enquanto a mãe, desdobrada em cuidados, encobria-lhe o rosto para que não visse a cena.

Aos poucos, com ajuda de profissionais, Maria Augusta voltou a falar, deixando para trás os olhares perdidos no infinito e o estado quase catatônico que a manteve muda por mais de oito anos.

De Ramires Meirelles não se soube mais nada. Quem deveria saber, não por acaso e sem razões, manteve-se mudo para todo o sempre.

E já que os mortos não falam...

Um comentário:

Manhosa LobaVirtual disse...

Um ditado popular... "A malles que vêm para o bem"...


Saudades...