Leila Jalul
Site Lima Coelho
Contava
Dona Marlúcia, com muita tristeza, que a filha Maria Augusta nascera
normal. Aos primeiros meses de vida, tanto quanto qualquer outra criança
sadia, balbuciava o restrito número de vocábulos próprios do período de
vida. Papá, mamã, ádua, bó, etc...
Maria Augusta era uma criança
linda, orgulhavam-se os pais. Os olhos grandes esverdeados e os fartos
cílios não indicavam a sua descendência indígena. Não fossem os cabelos
pretos e lisos, parecia mais uma estrangeirinha nórdica nascida em ninho
errado.
Um dia de festa na cidade, por conta de uma eleição, um
desalmado e irresponsável festeiro soltou um rojão potente que veio a
cair, desgraçadamente, sobre o teto de zinco do quarto da pequena.
Martino Holanda e Marlúcia, em estado de loucura e pavor, imaginaram o
pior e correram para ver se a filha estava bem.
O que viram, no
entanto, foi de cortar o coração. Maria Augusta, em choque, estava
sentadinha no berço. Não ria e não chorava. O vômito cobria sua
fraldinha e toda a cobertura de tecidos do berço. Retirada dali, sem
esboçar reação, foi banhada e perfumada para que pudesse novamente
entrar no sono de menina tranquila que era. Por precaução e temor de que
novos rojões fossem disparados, pai e mãe levaram a pequena para que
dormisse entre eles.
Nos dias seguintes, por quase uma semana, a bebê
apresentava febre alta e não havia quem a fizesse parar de chorar.
Outra estranheza, também, foi verificada: Maria Augusta expressava medo
nos olhos e, por mais que fosse embalada na rede, só conseguia dormir
quando tomada pelo cansaço. Os pais, só então, resolveram buscar ajuda
médica. Aquilo que parecia uma reação comum ao susto, tornou-se, por
muito tempo, um estado de choque permanente. Vez por outra, em
convulsão, era levada ao hospital de emergência e acalmada com
Luminaleta, o medicamento da época.
Entre
melhoras e pioras, mais pioras que melhoras, o tempo foi passando.
Cresceu no tamanho e aprendeu a andar. Falar, não. Era uma criança
triste, olhar perdido no horizonte e sono intranquilo. Os testes
auditivos foram satisfatórios, razão pela qual foi matriculada numa
escolinha para, esperavam os pais, uma possível socialização. A recusa
da menina foi determinante para que de lá saísse e brincasse em casa com
alguns primos e vizinhos. As crianças interagiam. Ela, não.
A vida
não deu recreio aos pais. Marlúcia era enfermeira do centro cirúrgico de
uma maternidade. Martino, o pai, era bioquímico do Estado e, no período
da tarde, trabalhava num laboratório particular. O sonho do casal era
fazer economias e empreender uma viagem aos Estados Unidos. O mutismo de
Maria Augusta haveria de ter cura, nem que, para isso tivessem de
percorrer o mundo. Fosse pela medicina, fosse pelo curandeirismo,
acreditavam na vitória.
Enquanto
trabalhavam, em tempo integral, escolheram Elza, uma boa moça, para
cuidar da casa e da menina. Meio que aparentada da família, logo
angariou confiança e respeito. Uma mão na roda! A menininha também
gostava dela.
O que estava dando certo, no entanto, durou pouco. Um
dia, por ter necessidade de resolver um problema na cidade, Elza deixou
Maria Augusta aos cuidados de Ramires Meirelles, um boliviano que estava
hospedado em sua casa. Não sabia ela, infelizmente, que o problema a ser
resolvido demoraria mais que o previsto.
Neste mesmo dia, como se
empurrada por Deus, Marlúcia voltou mais cedo para casa. Ainda na porta,
sem mesmo jogar a bolsa numa cadeira, escutou uma voz de criança
gritando. Não, não, não! - dizia a voz. Num impulso, certa de que era a
filha, adentrou no quarto dela e viu Ramires tentando tirar-lhe a roupa.
Maria Augusta lutava com garra. Com mais força que a força que seus
nove anos permitia lutar.
Num arranco, cega de ódio, Marlúcia abriu
uma fenda na cabeça do boliviano com um ferro de passar, o primeiro
objeto que sua mão pôde alcançar. Logo chegaram Elza e Martino Holanda
que, arrastando pelos pés, retiraram o corpo de Ramires Meirelles do
quarto da menina, enquanto a mãe, desdobrada em cuidados, encobria-lhe o
rosto para que não visse a cena.
Aos poucos, com ajuda de
profissionais, Maria Augusta voltou a falar, deixando para trás os
olhares perdidos no infinito e o estado quase catatônico que a manteve
muda por mais de oito anos.
De Ramires Meirelles não se soube mais nada. Quem deveria saber, não por acaso e sem razões, manteve-se mudo para todo o sempre.
E já que os mortos não falam...
Um comentário:
Um ditado popular... "A malles que vêm para o bem"...
Saudades...
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