quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

MATEMÁTICA MISTURADA COM PORTUGUÊS

José de Anchieta Batista
 

Se ainda hoje é muito difícil para os militares da fronteira amazônica dedicarem-se aos estudos, em razão das peculiaridades da profissão e das permanentes missões por eles desempenhadas, imaginem só como não era antigamente. 

Naquele ambiente de dificuldades, todo soldado engajado sonhava ser cabo e todo cabo sonhava ser sargento. Raramente, contudo, algum deles conseguia ser aprovado nos concursos para acesso ao nível superior, pois não dispunham de horários para se dedicarem aos livros. Além dessa escassez de tempo, aliada ao cansaço impingido pelo cotidiano da vida castrense, os concursos não eram dos mais fáceis, tornando deveras longínqua tão ambicionada pretensão. 

Há umas quatro décadas, na então Quarta Companhia de Fronteiras, sediada em Rio Branco, capital do Estado do Acre, um desses comandantes mais humanos e mais preocupados com o lado social e com o crescimento de seus comandados, pôs a valer uma iniciativa elogiável. Após as devidas adaptações nos horários do quartel, fez funcionar dois cursos preparatórios: - um grupo seria constituído pelos soldados mais antigos e menos escolarizados, a fim de  possibilitar-lhes o ingresso no curso de formação de cabos, anualmente realizado no Comando Militar da Amazônia, em Manaus; o outro seria destinado a quem possuísse um nível escolar mais elevado, que lhes auferisse condições para ingressar na Escola de Sargentos das Armas, lá em Três corações, Minas Gerais.  Para isso, o bondoso coronel mandou fazer um levantamento de quais sargentos e oficiais estavam capacitados para ministrarem as aulas e atribuiu-lhes a missão. As maiores dificuldades de aprendizado, como era de se esperar, residiam nos assombrosos fantasmas da matemática, disciplina que ficara sob a responsabilidade do sargento Joaquim Ferreira, graduado no assunto pela Universidade Federal do Acre. E foi justamente dentro do contexto da matemática que ocorreu o fato pitoresco que aqui relatamos. 

Um dos soldados, com nome de José Caiçara e apelido de “Quati”, já com doze anos de caserna, era candidato ao curso de cabos. Estudara tão-somente, em sua infância distante, até o segundo ano primário duma escola rural embrenhada num desses nossos afastados seringais. Diante, porém, daquela grande oportunidade, o praça motivou-se todo, não se deu por vencido e partiu para o desafio. 

Durante os primeiros quinze dias o “Quati” não sentiu maiores complicações. A orientação do comandante era que tudo deveria começar do nível mais rudimentar possível. Os assuntos de Língua Portuguesa, por exemplo, tiveram início na revisão do alfabeto, sua divisão em vogais e consoantes etc., numa abordagem tão simples que mais se parecia com as antigas aulas da histórica “Carta de A-B-C”. Na Aritmética também o pontapé inicial se deu nos moldes da velha tabuada, com soluções de pequenas contas de somar e diminuir. Assim, tudo ocorria com muito otimismo e perseverança. Os resultados eram promissores. 

Todavia, passados os primeiros dias, o “Quati”, inesperadamente, foi obrigado a abandonar a sala de aula por um período considerável. Que tristeza! Escalaram-no para uma missão lá para as bandas de Santa Rosa do Purus. Quando se tratava de embrenhar-se na floresta, ninguém era tão respeitado quanto ele. Seu nome estava sempre na cabeça da lista, antes mesmo de se saber quem seria o comandante. Podia ser um semianalfabeto, mas era um doutor no convívio com a selva. 

Os dias se passaram e mais de um mês após o início de sua aventura por matas e rios, o “Quati” voltou.  Na mesma data de seu retorno, já estava ele lá, junto dos companheiros de estudo, buscando recuperar o tempo perdido e tentando aprender a terrível matemática. Pelo visto, a matéria já houvera avançado bastante. O sargento Joaquim Ferreira se desdobrava, explicando e solucionando problemas no quadro-negro, momento em que sempre procedia com desmedida paciência e punha em prática a melhor didática possível. O “Quati” sentou-se lá atrás e entregou-se totalmente a prestar atenção. Meia-hora depois se conscientizou de que não entendera patavina e se sentia mais por fora do que cebola em salada de frutas.  Para completar seu desengano, ouviu neste momento, Joaquim Ferreira ler em voz alta o enunciado de mais um problema colocado na lousa: - “A” é igual a “B” mais seis. Qual o valor de “A”, se “B” for igual a quatorze? Aquilo foi a gota d`água. O “Quati” sentiu-se totalmente violentado. Não seria possível entrar em sua cabeça aquele negócio de números convivendo, no mesmo problema, com as letras do alfabeto. Levantou-se, colocou o caderno debaixo do braço, pediu licença ao sargento e dirigiu-se à porta de saída.

O Joaquim parou de explicar e voltou-se para o soldado: 

- Já vai? 

- Já, meu Sargento! 

- Mas, por quê? 

- Matemática já é difícil e o Senhor misturando com português... desisto! 

O “Quati” realmente desistiu, teve multiplicado o seu ódio por números, nunca mais voltou a uma sala de aula e viveu a vida inteira como soldado raso. 


* José de Anchieta Batista, poeta, autor de MENINO DA RUA DO BAGAÇO (Rio de Janeiro: Publit, 2009), e atual diretor-presidente do Acreprevidência.

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