quarta-feira, 29 de novembro de 2017

CRÔNICAS DE GARIBALDI BRASIL

MOZAICOS DA CIDADE NASCENTE
Garibaldi Brasil (1908-1986)


Garibaldi Brasil
O retângulo da cartolina passou das mãos do contínuo para as do Diretor que, ao lê-lo, sorriu e passou-me. Li: Fulano de tal, “enfermeiro desempregado”. Sim, de fato, aquele era um cartão de visitas sui generis mas eu conheço cousa melhor e mais divertida. Por exemplo, em Manaus, terrinha fértil em nomes estrambólicos, certa feita, uma senhorinha loquaz que usava um “lorgnon” impertinente, deu-me o seu cartão, onde se lia: Fulaninha, “poetisa moderna”. E ainda na capital baré houve aquele outro, meu colega acadêmico de Direito que, depois de confraternizar conosco, estendeu-me, enfaticamente, o seu cartão: Rabindranath Tagore Barbuda Thury, Sargento do Exército, tipógrafo e Acadêmico de Direito... E por aí vai.

Há também o histórico cartão de visitas de Georges Clemenceau que continha somente o nome Clemenceau mas isso era o suficiente porque o mundo inteiro conhecia o “Tigre” da França.

Quando, em plena ditadura, os interventores nortistas eram substituídos, a cada passo, pelo falecido Major Carneiro de Mendonça, no Ceará, no Pará, não sei onde mais, houve quem, fazendo a sua blaguezinha, aconselhasse o pupilo do sr. Getúlio a mandar imprimir o seu cartão com o seguinte: “Interventor profissional”.

Aqui no Acre há o caso conhecido e gozado do Rachid Duck, recém chegado de Beyruth, siriozinho elegante e namorador, que, tendo ingressado no comércio, mandou fazer o seu cartão da seguinte forma: “Rachid Duck, jovem e simpático comerciante”.

A lista é enorme mas o mais engraçado e oportuno cartão de visitas do mundo era, decerto, aquele que o Julio Mascarenhas, também daqui do Acre, mandou fazer para ele, depois de penosa experiência no ramo de vendedor de enceradeiras, em Belém do Pará. Dizia assim: “Se não quiser a enceradeira não precisa me bater. Sou Julio Mascarenhas e esta é a minha profissão”.

*

O mal não é só do Acre... Infelizmente existe por esses Brasis afora. É uma espécie de gente retrógrada, sempre descontente e improdutiva. São os do contra, os que tomam Sal de Fruta... Um amigo meu os denominava de “jabotis” do progresso...

Quando o então governador Hugo Carneiro inaugurou, há 21 anos atrás, o mercado público da cidade, moderna obra de alvenaria com todos os requisitos de higiene, houve uma celeuma: aquilo era uma obra suntuária como o Palácio Rio Branco e o Quartel da Força Policial! O Acre não comportava aquilo! Era um desperdício! Duas décadas são passadas e o nosso Mercado, que hoje está completando a sua maioridade, está pequeno, exíguo, insuficiente.

Ainda me lembro da festa de inauguração do Mercado. Muita gente, banda de música, discursos e aquele sorriso de satisfação estampado no rosto vermelho do Dr. Martin, o prefeito dinâmico e enérgico. E que zelo pelo próprio municipal, que rigor de limpeza que o Prefeito exigia! Por causa do chafariz que fornecia água ao Mercado, muita gente pagou multa por haver deixado pingar algumas gotas de água das torneiras. Hoje a cidade está muito maior e sua população aumentada de 5 vezes mais. E o Mercado Público, que é a nossa despensa, precisa de mais espaço ou de um outro pavilhão para melhor servir à capital. Por isso é que o cronista se exalta de satisfação e orgulho quando se põe a contemplar esses novos monumentos arquitetônicos que o dinamismo progressista de Guiomard Santos está dotando a nossa Rio Branco: o Grande Hotel, a Maternidade, a Escola Normal, o Aeroporto... Mas os “jabotis” do progresso continuam a falar. É demais para o Acre... como se o Acre não fosse também filho de Deus... É o caso de dizer-se, embora como pilhéria: Deixa-los falar que eles calarão-se-ão-se.

*

Ao maj. Isidoro Pereira

Dizem e com bastante acerto que as melhores essências se guardam em frascos pequenos e deve ser verdade mesmo porque esses homens pequeninos são um colosso de tenacidade. Ponho muita fé nos homens de estatura baixa porque a História do Mundo está cheia de exemplos e sempre os vejo produzindo, aqui e ali, animados duma estranha e poderosa força de vontade que tudo consegue.

É o caso desse paraense de Soure que há vinte anos porfia contra toda a sorte de dificuldades para realizar um velho e acalentado sonho: projetar o seu clube como a sociedade líder da nossa capital, o Rio Branco Futebol Clube.

Isidoro da Cunha Pereira é, sem dúvida, o incansável baluarte do grêmio esportivo que ele elegeu como um verdadeiro “hobby” na sua vida de pacato funcionário da Fazenda, com aqueles outros três quixotes da boa vontade: José de Melo, Nembri de Brito e Nilo Bezerra. Um deles, o primeiro, partiu cedo para o cinzento país dos mistérios mas os que sobraram, continuaram na faina. Foi uma longa e movimentada trajetória, cheia de idealismo e de entusiasmo que nunca esmoreceu, a vida do grande clube, na qual se revezavam, periodicamente, como numa legítima corrida olímpica, aqueles quatro teimosos. E agora, depois de anos de lutas, de incompreensões e fadigas de toda a espécie, a meta está próxima e quem traz o facho sagrado é Isidoro da Cunha Pereira.

O Rio Branco tem, quase pronta, a sua sonhada sede. Condigna e erguida à custa sabe Deus de quantos sacrifícios, ela ali está, moderna e elegante, dominando a velha Praça que já mudou de nome três vezes, testemunha de quanto pode a persistência de um caboclo de Soure.

O Rio Branco Futebol Clube é, antes de tudo, um patrimônio da cidade como tão bem compreendeu o nosso governador, quando veio a última fase da construção do prédio, em auxílio da tradicional agremiação, como um Cirineu oportuno e generoso... E assim pouco já falta para que, dentro em breve, tenhamos um clube à altura dos fósforos da capital, isto é, um ambiente social condigno e civilizado. Amplos salões, modernas dependências, campos de esportes, de tudo terá a linda sede do glorioso Rio Branco. E, então, o caboclinho de Soure descansará feliz, dentro de casa, com direito a tudo, por sua autêntica vitória... inclusive um “bosó de ouro”...

– “Olha os dados, Zé Bezerra!”.


BRASIL, Garibaldi. Mosaicos da cidade nascente. Rio Branco: Gráfica e Editora Poronga, 1993. p.18-19; 28-29; 42-44;  (edição em fac-simile do original de 1950).

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

MEU TEMPO DE CRIANÇA NOS SERINGAIS DO RIO MURU (Parte 5)

Txai Antônio Macêdo
CRÔNICAS INDIGENISTAS

Da colocação Currimboque a cidade de Tarauacá

Diante a situação de saúde da minha mãe e por necessidade de que seus filhos frequentassem escolas, meu pai decidiu voltar da colocação Currimboque para a cidade de Tarauacá. Nessa época eu estava com doze anos de idade...

Nosso retorno foi muito trabalhoso, pois, assim como foi quando nos mudamos para a colocação, tivemos que levar todas nossas ‘tralhas’ nas canoas igarapé abaixo a até desaguar no Rio Muru outra vez. E assim descemos o igarapé São José, matando paca para fazer nosso rancho da viagem.

Pernoitamos a última noite de descida na colocação de seu José de Castro. Quando chegamos nessa colocação recebemos a notícia de uma festa que aconteceria naquela noite, na casa de seu Agenor Moura, localizada na margem do Rio Muru e logo abaixo da foz do Igarapé São José. Eu e meus irmãos ainda nos animamos para chegar a festa naquela noite, mas meu pai e minha mãe não permitiram, por isso nos acalmamos e ficamos conformados com a decisão. No dia seguinte saímos na confluência do rio Muru e dali era só descer até a cidade. Mal havíamos começado a descida, e, ao cruzar com outros viajantes, logo ficamos sabendo dos boatos da festa.

Cito como exemplo o que aconteceu entre os seringueiros Valdir Machado e Francisco Felizardo...

Valdir namorava uma moça de nome Maria Moura que, por sinal, era a mais bonita do seringal Colombo. Valdir já era criminoso: Havia matado Nicodemos, um grande valentão ‘de má conduta’, segundo os mais velhos me contavam. - Do outro lado da história tinha o Francisco Felizardo, que também já havia matado outro seringueiro.  Ambos eram apaixonados por Maria Moura e de forma alguma, Francisco Felizardo aceitava o namoro de Valdir Machado com sua ‘pretendida’.

Ambos se toparam na noite da festa, na casa de seu Agenor Moura, que era o genitor de Maria Moura. Mal se encontraram, os dois pretendentes decidiram travar travar um duelo sangrento:   brigaram muito e, em dado momento, utilizando as temidas ‘facas peixeira de 12 polegadas’ furaram e se cortaram mutuamente, até morrerem caindo um para cada lado.

Maria Moura, dona de muita beleza, continuou sua vida, vindo, tempo depois, a se casar com um novo e sortudo homem da região.

A descida continuou até voltarmos para a cidade, onde nos hospedamos em uma casa alugada. Minha mãe foi logo cuidar de fazer o tratamento com o Dr Tomé, alcançando, ao término desse, sucesso em recuperar sua saúde. Quanto a mim, fui estudar no jardim da infância do Grupo Escolar João Ribeiro.

Vejam bem: naquele tempo não se diziam muitos dos termos e palavras que se ouve hoje em dia. Muito menos nos seringais.

Assim, quando entrei na escola começou o jogo das novas palavras e de outros acontecimentos muitas vezes inevitáveis…

Um belo dia, logo de manhã, no decorrer dos primeiros dias de aula, comecei a ouvir coisas totalmente desconhecidas na sala de aula - e confesso que eu não entendia bulhufas de nada. Era algo como um ronco muito forte que entrou em funcionamento na proximidade da escola e, quando aquilo aconteceu, me assustei e quis saber das outras crianças do que se tratava, e logo me responderam que era um caminhão. Mas, eu ainda não sabia o que era um caminhão e nem o que era uma garagem. Acontece que nessa manhã um caminhão, que naquele dia estava sem o escapamento,  foi posto em funcionamento dentro da garagem que se localizava logo atrás da minha escola.

Claro que insisti perguntando aos coleguinhas o que era aquilo. Eles foram compreensivos e objetivos, me explicando sobre o caminhão “que ia sair da garagem e que ia devorar toda cidade”!

Assustado fiquei: Caminhão? Garagem? - O complemento “devorar toda cidade” invadiu a minha cabeça, e eu fiquei preocupado com minha mãe, e minhas irmãs, que podiam ser todos devorados pelo bicho que eu ainda não conhecia. Esse bendito caminhão, foi o terror que invadiu os meus pensamentos naquele dia.

O que fiz? Respondo: Abandonei a sala de aula e de forma disparada sai na carreira para alcançar minha família antes de serem devorados por aquele bicho desconhecido.
A casa onde minha família morava ficava a uns dois quilômetros da sede da escola. Corri, corri e chegou um momento que minha aflição era tanta, que me urinei por completo, vindo a me agarrar no tronco de uma cajarana, localizada a beira da rua Constância de Menezes, pela qual eu ia correndo.

Chegando em casa, muito apavorado, peguei minha mãe pela beira do vestido e minhas irmãs e sai arrastando casa afora, puxando um ‘um cordão de mulheres’. Meu objetivo era atravessar o Rio Tarauacá na confluência com o Rio Muru, me embrenhar floresta à dentro, até chegar onde se encontrava meu pai, que nesse dia estava numa colocação na margem do rio, em frente a aldeia Kaxinawá da foz do igarapé do Caucho.  Eu procurava meu pai para com ele somar qualquer esforço que fosse necessário contra o bicho-caminhão, que estava saindo da garagem, e segundo aqueles meninos da escola, ia devorar toda cidade.

Durante minha aflição eu havia gritado muito com minha família, para que corressem junto comigo, mas eles não conseguiam entender nada do que realmente estava acontecendo. Até que de súbito apareceram os vizinhos de minha mãe e, ao entenderem o que se passava e perceberem o que estava acontecendo na minha cabeça, no meu estado nervoso, me convenceram a sossegar, me explicando o que era um caminhão, desmentindo aquilo que os meninos da escola, os meus colegas, ainda desconhecidos, haviam me falado.

A cidade era para nós um abismo, e a floresta era a nossa verdadeira casa. O que mais eu ficaria fazendo ali? Procurei convencer meu pai a me levar pra floresta de volta pra casa onde nasci e fui criado até irmos pra cidade. Foi quando ele decidiu me levar dali e voltei para morar com meu pai, junto aos Huni Kuin do Caucho.

E novamente comecei uma nova diáspora: da cidade de Tarauacá a aldeia Kaxinawá do igarapé do Caucho...

Tudo ali andava muito bem entre nós e os indígenas, todos estes vizinhos do meu pai. Eu e ele morávamos sozinhos e trabalhávamos para manter a minha mãe morando lá na cidade com minhas irmãs, que ainda eram menores nessa época. Meu irmão mais velho, Raimundo Batista de Macêdo já havia se casado e morava relativamente perto de mim e meu pai. E nesta convivência cheguei aos treze anos de idade.

Neste local trabalhávamos com criação de animais e agricultura, vivendo praticamente junto com o povo indígena Kaxinawá da aldeia Foz do Igarapé do Caucho, no Rio Muru. Ali vivi até meus quinze anos de idade, e sempre estudando com a professora Diva, na escola que ficava na colocação 18 Praias.

Numa noite de festa na aldeia Kaxinawá da Boca do Igarapé do Caucho, na casa de Chico Luiz, filho do velho Tuxaua Luiz Francisco. Essas festas eram animadas pelos bons sanfoneiros Isídio e Simão, dois irmãos nordestinos que moravam na  cidade de Tarauacá, e que quando contratados pelos indígenas iam tocar na aldeia. Mas, nesse dia, o medo tomou conta de todos os presentes, pois, o policial Pedro Leonel e seu irmão Pedro Dá, os quais se diziam donos do Seringal Tamandaré, que era totalmente ocupado pelos Kaxinawá, invadiram a aldeia, armados e tomaram tudo que os índios tinham em suas casas: Espingardas, machados, terçados, enxadas dentre outros pertences dos índios.

Meu irmão mais velho, Raimundo Batista de Macêdo, aquele que havia feito o patrão tirar sua conta corrente numa barra de sabão*, e João Herculano, enfrentaram os patrões policiais e fizeram eles devolverem tudo que estavam levando dos índios, pois,  aquele ato praticado pelo policial era imoral e meu irmão e seu amigo não aceitaram isso. A coragem desse meu irmão era grande e o seu senso de humanidade era bem maior, no entanto, sua atitude naquela situação foi muito perigosa para todos que se encontrava naquela Aldeia.

Mas esse enfrentamento começou com minha intervenção, pois, fiquei tremendamente preocupado e, mesmo ainda criança, não aguentava ver aquela injustiça contra os pobres índios, nossos amigos. Por isso, quando vi o policial fazendo aquela arbitrariedade contra eles, não me contive e procurei meu irmão, que também estava na festa. Mostrei e ele o que estava acontecendo e, sem medir o esforço, foi pra cima do policial, que naquele instante, apontou sua arma para ele. Nesse momento, meu irmão encostou seu punhal no peito do policial e falou: “Aperta o gatilho, porque vou derramar tuas tripas, ou então, entregue os pertences dos índios”. - Eu vi que uma arma estava apontada para o meu irmão e fui chamar o João Herculano para ajudar. João tirou o revólver da mão do policial com um pequeno golpe com o pé na mão do arrogante.

Eu fui crescendo naquela aldeia, junto com seus ocupantes, conhecendo seus costumes e tradições, que era diferente, mas, fui aprendendo e, também ensinando os txais conforme seu próprio modo de vida naquele lugar.

Anos depois, após concluir o segundo ano primário, fui morar novamente na cidade de Tarauacá, para estudar com a professora Ritinha Catão, no Grupo Escolar João Ribeiro, escola essa que até os dias atuais está localizada na Praça Valério Caldas de Magalhães no centro da cidade. Foi nessa escola onde cursei até a 4ª série primária.

No fundo dessa praça funcionava o bar do seu Julebaldo que, também uma sorveteria. Eu e meu irmão Luiz Gonzaga Caetano Barbosa íamos para a escola, mas, nenhum de nós tinha dinheiro no bolso para comprar um picolé. Os filhos dos moradores mais antigos ali da cidade compravam picolé sorvete, e a gente ficava olhando aquilo com água na boca, pensando como seria gostoso poder também conseguir uns.

Meu irmão um pouco mais encapetado do que eu, levava para a escola uma sonrisal no bolso do uniforme, e nas primeiras vezes que ele fez isso eu não sabia das suas  atitudes, e olha  que ele era um ano mais novo de que eu. Só que depois descobri, e pude perceber qual seu engenhoso plano. Pois bem…

O caso é que como ele (Gonzaga) não podia comprar um picolé, esperava que os filhos das famílias mais ricas da cidade comprassem, para que ele pudesse tomar o picolé das mãos dos garotos ricos.

Quando ele pegava o picolé saia correndo e a meninada corria atrás. Ele ai, quebrava o sonrisal e colocava um pedacinho da pílula na boca, e caia no chão espumando pelos cantos da boca, tempo suficiente, para que eu chegasse e afastasse a meninada de cima dele, dando petelecos, tendo como pretexto que ele estava supostamente passando mal. Era perigoso, mas que foram engraçadas aquelas terríveis proezas aprontadas pelo Gonzaga, a isso foram. Os meninos que perderam os picolés quando aquilo acontecia, ficavam muito assustados temendo terem causado um por terem derribado o Gonzaga.

Da Escola na cidade aos seringais do Rio Iboiaçu no alto rio Muru.

Eu ainda contava só 14 anos quando meu pai juntamente com o velho Chagas Kaxinawa, a quem eu chamava de companheiro, decidiram subir o Rio Muru praticamente todo, e em seguida, subir o Rio Iboiaçu até o seringal São João. Meu pai me levou para esta viagem com ele. Nossa canoa tripulada somente por mim, meu pai e o Chagas Kaxinawá, era uma canoa feita de tábuas, com capacidade para mil e quinhentos quilos de carga.

Nossa viagem era tangida a remo, faia, sisga e varejão. Passamos 11 dias subindo o Rio Muru e 04 dias subindo o Rio Iboiaçu, 15 dias varejando na popa daquela canoa.

Desenrolamos muitas curvas, estirões e cachoeiras até chegar ao seringal denominado São João. Nesta viagem, ainda ajudei meu pai e o companheiro Chagas a montar uma armadilha para pegar um Gato Maracajá; e pegamos aquele Gato muito bravo.

Na verdade, tratava-se de uma caçada, que eu terminei também transformando em uma pescaria. Tanto tinha muita caça na floresta deste lugar quanto tinha muito peixe no Rio Iboiaçu.Ali peguei o primeiro Jundiá manteiga, o Jundiá amarelo, também pesquei Jau ou Jundiá Açu, Piroaca, surubim, Caparari, Pirapitinga, Bacu e Bacurana.

No Rio Iboiaçu, meu pai localizou em uma cachoeira o casco de uma tartaruga gigante quase do tamanho de uma canoa. O casco estava quebrado, e havia sido por conta da atividade madeireira antes realizada ao longo daquele Rio. Uma grande tora de madeira que descia no rio bateu-se no casco da antiga tartaruga quebrando o casco da mesma, que ficou ali mesmo, e deve está lá até hoje.

A viagem não logrou muito êxito pensando do ponto de vista dos caçadores adultos, mas, para mim, apesar do cansaço foi quando peguei os maiores peixes que conheci até ali. Passamos ali duas semanas na floresta do Iboiaçu.

Matamos quase nada de caça, deu água no Rio, e então meu pai decidiu junto com o companheiro Chagas ir baixando, e fomos embora pra casa. Eu já estava com saudades da minha mãe, apesar de estar gostando de estar naquela aventura. Meu pai sábio o quanto era é que não perdia aquela oportunidade de aproveitar as águas grandes dos rios, para que pudéssemos chegar para nossa casa rápido, e ao sabor da correnteza das águas. E assim foi feito.

...No Acre, especialmente, na cidade de Tarauacá, além de seringueiro fui também agricultor, estivador, marinheiro prático trabalhando nas embarcações marítimas, vivi um tempo como pescador, e depois de ser basicamente forçado a servir ao Exército brasileiro, fui operador de máquinas pesadas e mecânico de autos-motores. 



Antônio Batista de Macêdo, o Txai Macêdo, é sertanista da FUNAI e uma figura importantíssima para o indigenismo e para os povos indígenas no Acre. Juntamente figuras como com Txai Terri, Dedê Maia foi (e continua sendo) uma memória viva do que foram os anos de luta, desafios, vitórias, alegrias e tristezas em prol das questões indígenas nesse rincão da Amazônia. Vivas a esse grande txai, cuja história merece ser contada e recontada por quem  admira e conhece o seu trabalho. (Jairo Lima)

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

HISTÓRIA DE “CARRAPICHO” E OS DESBRAVADORES HOMENS DO CAN NOS CÉUS DO ACRE E DA AMAZÔNIA, NAS ASAS DA FORÇA AÉREA BRASILEIRA

Gilberto A. Saavedra – Rio de Janeiro

TARAUACÁ – AC (Palco da escrevedura)
Município brasileiro do Acre com o nome de origem indígena, com o significado de “rio dos paus e das tronqueiras”.

HISTÓRIA DE “CARRAPICHO” E OS DESBRAVADORES HOMENS DO CAN NOS CÉUS DO ACRE E DA AMAZÔNIA, NAS ASAS DA FORÇA AÉREA BRASILEIRA.

Esta é, apenas, um pouco da história de José Galera dos Santos; homem do povo que, ficou carinhosamente conhecido no município de Tarauacá – Acre, como “CARRAPICHO”, personagem folclórico da cidade.

Um cidadão brasileiro simples, que deu o seu nome ao aeroporto dessa hospitaleira cidade acreana.

Há 40.139 habitantes em Tarauacá (Ano – 2017 – estimativa IBGE).

A distância entre Tarauacá e Rio Branco, capital do Acre é 409 Km (por estradas) e 384 Km em rota aérea (linha reta).

Mas o que fez esse brasileiro de tão relevante em Tarauacá e, em que época, para que merecesse ter o seu nome (ele tinha o afeto do povo) no aeroporto da cidade?

Sabe-se que, ele chegou ao município para uma apresentação circense, mas que, resolvera ficar nesse novo lugar.

Para melhor entender esta época, contarei essa história desde o seu início, com todos os seus coadjuvantes importantes que, conviveram esse período.

Eu, tive o aprazimento de participar desse memorável tempo, em meados dos anos de 1950, durante os meus 6/7 até os 8 anos de idade em Tarauacá.

Por isso, eu me considero, uma testemunha ocular que (depois de adulto), pesquisei para melhor entender, o que eu na qualidade de uma criança, jamais poderia compreender uma parte dessa bela história patrocinada pelo legendário “Carrapicho”.
Carrapicho. Foto: Blog Tarauacá Notícias
Mas, para falar desse famoso personagem de Tarauacá e de sua história, eu não poderia deixar de fora a imprescindível atuação da aviação aérea (civil e militar) no Acre.

Em especial à FAB (Força Aérea Brasileira) e suas tripulações do CAN (Correio Aéreo Nacional), pois foi o desvelo de Carrapicho (durante anos e anos), a esses bravos aviadores nos céus acreanos, em especial ao da FAB que, fez nascer essa marcante história.


AMAZÔNIA E O TRANSPORTE FLUVIAL

Todos nós sabemos que, o Brasil é um país de dimensão continental; o espaço de norte a Sul é de leste a oeste é imenso.

O isolamento de um lugar distante, a um centro mais desenvolvido, sempre foi, e ainda é, um grande problema, principalmente àquelas pessoas que vivem na Amazônia isoladamente em povoações ribeirinhas.

Nessa região, por exemplo, em uma grande parte dessa imensa extensão de terras, na data atual (2017), ainda predomina essa exclusão social.

O transporte fluvial, como o único meio de interligação, foi e é ainda essencial para essa região, através de sua gigantesca bacia de hidrovias, porém, muito lento e sem o amparo vital à navegação.

Em muitos casos, há um transporte sem conforto (a maioria); sem privacidade; capacidade de passageiros acima do permitido, ocasionando incontáveis vezes o naufrágio da embarcação.

Devido o gigantesco tamanho da Amazônia, chegar ao destino era e continua (não mudou nada) um sacrifício para quem precisava viajar.


ISOLAMENTO DO INTERIOR DO ACRE COM RIO BRANCO - CAPITAL

Antes da criação de campos de aviação no Acre, todo o interior do estado era completamente isolado da cidade de Rio Branco, capital acreana.

O único meio de transporte daquela época era o que lhe fora dado pela mãe Natureza, o fluvial.

Mas como os rios acreanos (a maior parte), correm entre si paralelamente em seus leitos, em direção ao rio Solimões, a longinquidade entre capital e interior, torna-se difícil e longa.

Esse empecilho fluvial, criado pela geografia da natureza do Acre, provoca um transtorno ao estado.

Exceto aos municípios de Brasileia, Xapuri, Epitaciolândia, Porto Acre e Assis Brasil, todos banhados pelo rio Acre, o mesmo da capital.

Havia escassez de gêneros de primeiras necessidades.

Alimentos importados, remédios; além de não ter como deslocar rapidamente um paciente enfermo para um centro mais desenvolvido.

O abastecimento fluvial lento procedente de Belém (mas fundamental), era, e é ainda realizado durante às cheias dos rios.

A implantação de um transporte aéreo (tão sonhado pelos acreanos), era necessário para o escoamento de produtos básicos ou à remoção rápida de pessoas doentes que careciam de um tratamento de saúde mais prudente em Rio Branco ou no Sul do país.


TAQUARY – PRIMEIRO AVIÃO EM RIO BRANCO

Só a partir de 1936, o primeiro avião chega ao Acre.

Era um hidroavião (equipado com dois botes); ele realizou uma amerissagem (pouso de aeronave em superfícies aquáticas) no rio Acre, na capital acreana.

Seu nome: TAQUARY (batizado pelo povo), um avião monomotor modelo Junkers-W-34 de fabricação alemã.

Na chegada da aeronave, houve uma grande recepção por parte das autoridades locais e o povo, em geral, já ansioso, por causa de frustrações anteriores, quando um avião anfíbio da Panair, programado para amerissar no rio Acre, mas não o fez.

Passou duas vezes voando bem baixinhos por cima das cabeças das pessoas que, estavam às margens do rio à espera do avião.

A aeronave ganhou altitude, seguiu um estirão no espaço e sumiu no horizonte, para decepção de todos os presentes ao ato. (Fonte jornal “O Acre” da época - 1936.)

Embora o avião Taquary da Condor tenha chegado primeiro ao Acre, mas quem inaugurou a primeira linha aérea com roteiro fixado (de 15x15 dias) de Rio Branco ao sul do país foi a Companhia da Panair.

A Condor depois da Segunda Guerra Mundial passou a se chamar Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul com grandes serviços prestados ao nosso estado, Amazônia e ao país, juntamente com a Panair e Vasp.

Um ano depois (em 1937) do avião Taquary chegar ao Acre pela primeira vez, é inaugurada a primeira pista de pouso de Rio Branco pelo o novo interventor Manoel Epaminondas Martins, sonho que Martiniano Prado não conseguiu concretizar (já tinha ido embora do Acre) pois até então, só os aviões do tipo anfíbio chegavam a Rio Branco, capital do Acre.

Os trabalhos iniciais desse campo de aviação, foram executados por um mutirão de acreanos que, atenderam de livre e espontânea vontade ao chamado, ainda (em 1935) no governo do interventor federal Martiniano Prado.

Tempo depois, foram implantadas várias pistas de pouso pelo o interior do estado do Acre.

Foi um grande acontecimento naquela região do Acre, trazendo proveitosos benefícios para o povo interiorano com tamanha rapidez, até então considerados impossíveis sem o avião.

Mas o maior benefício para o acreano, estava por vir.


CAN (CORREIO AÉREO NACIONAL NO ACRE)

No ano de 1947, o CAN inicia os seus voos para o então Território Federal do Acre.

O roteiro da linha faz ligar as seguintes cidades: iniciando pelo Rio de Janeiro - São Paulo - Três Lagoas - Campo Grande - Cuiabá - Cáceres - Vila Bela - Forte Príncipe - Guajará Mirim - Porto Velho - Rio Branco - Sena Madureira - Feijó - Tarauacá - Cruzeiro do Sul - Xapuri e Basileia.

Com o surgimento do CAN (Correio Aéreo Nacional) ao Acre, o interior ficou ligado quinzenalmente a Rio Branco e ao Sul do país, graças ao então Major Eduardo Gomes, depois, Marechal do Ar e, como Brigadeiro, um dos mentores dessa idealização (do CAN), sendo proclamado pelo elogiável feito, como o “Patrono da FAB”.

Os aviões que chegavam faziam uma escala de 15 em 15 dias, pelo o interior do Acre, transportando cargas (de qualquer tipo); remédios; assistência médica e livros para os municípios, além de passagens grátis para os mais desprovidos de recursos.

Atualmente (2017), a maioria dos municípios estão interligados entre si pelos tráfegos aéreo e rodoviário.

Aproveito essa narrativa, para chamar a atenção, de novos brasileiros (jovens), que desconhecem os importantes serviços prestados à “Pátria”, por esses valorosos homens do ar.

Imbuídos dos melhores propósitos deram às suas vidas durante muito tempo, uma missão de valor na sociedade (ajudando os mais necessitados), sem sombra de dúvidas, numa causa nobre que merece o reconhecimento dos brasileiros.

Muitos foram acometidos de patologias endêmicas da região (malária; infecções associadas à água como hepatite ou febre tifoide; verminoses e a leptospirose); além das mortes em acidentes aéreos, nas quedas dos aviões durante essa espinhosa missão de desbravar o interior brasileiro.

Um lugar sempre esquecido pelo poder público da União, voltado somente, sempre para a extensa costa marítima (litoral), deixando a gigantesca Amazônia num abandono total.

Mesmo com poucos recursos (instrumentos) técnicos de bordo, esses aviadores cumpriram essa grande façanha de integração nacional nas asas da FAB, tendo como orgulho da aviação, um brasileiro - Alberto Santos Dumont, “O pai da aviação”.

A Aeronáutica através de suas aeronaves da Força Aérea Brasileira prestou um fundamental serviço aos irmãos brasileiros do interior de nossa nação, com os voos dos seus aviões anfíbios PBY Catalina – o ‘pata choca’ (desde 1958) e o Douglas C-3 e 47 do CAN (Correio Aéreo Nacional) num trabalho incessante e primordial, de extrema essencialidade ao Brasil, principalmente à nossa gigantesca Amazônia.

O povo acreano no gesto de agradecimento à FAB, pelos seus voos nos céus do Acre, homenageou os homens do CAN com a seguinte frase.

 “CORREIO AÉREO NACIONAL:
GLÓRIA PACÍFICA DA FORÇA AÉREA BRASILEIRA.”

Também foi de suma importância para o Acre e Amazônia os serviços aéreos das extintas companhias da Cruzeiro do Sul, da Panair do Brasil e Vasp, as quais também operavam em suas linhas os Catalina e os DC-3 e C47.

CARRAPICHO E OS DESBRAVADORES AVIADORES DO CAN NOS CÉUS DO ACRE

Um homem brasileiro, modesto, chamado de José Galera dos Santos que, com sabedoria, reconheceu logo o grande e espinhoso trabalho dos bravos homens do CAN.
Carrapicho. Foto: Blog Tarauacá Notícias
Um artista de cenas circenses, desses muitos que vagueiam pelas plagas interioranas, mostrando o seu trabalho para sobreviver e angariando plateias, principalmente dos mais jovens ou crianças.

José Galera ao chegar a Tarauacá, conseguira tudo isso: carinho; amizade e o respeito do taraucaense, pela sua despretensiosa arte como artista de circo, mas de profícua relevância cultural para o município.

José Galera, apaixonou-se tanto pela cidade que, resolvera ficar.

Ficou e não foi mais embora do novo lugar.

Rapidamente se tornara uma pessoa querida em Tarauacá, pelo seu modo reverencioso com todos.

Já como funcionário do aeroporto de Tarauacá na função de guarda campo da pista de pouso, carinhosamente chamado de ‘Carrapicho’.
Com o seu jeito alegre, brincalhão e inteligente, não perdeu o ensejo de homenagear os aviadores do CAN quando de suas chegadas em Tarauacá de quinze em quinze dias.

Com o mínimo de tempo de estadia da tripulação no aeroporto, Carrapicho, sagazmente, fazia a festa no próprio ambiente, durante o tempo necessário do desembarque e embarque das cargas da aeronave.

Eu como testemunha ocular, de uma parte dessa bela história em meados dos anos de 1950/2/3, ainda criança, tive o prazer de conviver com uma parte desse magnífico tempo patrocinado pelo carismático ‘Carrapicho’.

Na data da chegada do avião, lá estava eu (ainda garoto), mas me recordo como se fosse hoje, das brincadeiras do Carrapicho com suas pernas de pau, o megafone ou sua corneta, cantando e brincando com o público; às vezes com o seu tradicional uniforme da Aeronáutica, com suas medalhas no peito.

O aeroporto, também ficava repleto de pessoas para saber quem chegava e quem partia; a recepção aos aviadores era calorosa.

Tarauacá era governada pelo o então Prefeito Municipal Arnaldo de Farias; esposo da professora Creusa.

Ainda me lembro dos nomes de algumas famílias tradicionais: muitos árabes (turcos, sírios, libaneses), etc. Nagip, Said Bachir da Casa Samaritana; F Baima; Muni Bissot; Raimundo e Humberto turco; Jose Higino; Jofre Catão e sua farmácia; Leal; Pedro Correia; família do Jonas Lopes (da padaria) B. Roque; Baima, etc.

José Galera preparava um grande banquete à tripulação da FAB.

Uma farta mesa de refeição com doces e o cardápio da cidade, além das mais variadas frutas da região, incluindo o gigante e gostoso abacaxi de Tarauacá; uma grande bancada cheia de iguaria apetitosa que, dava água na boca de qualquer um dos visitantes ao evento.

Com o calor dos participantes ao ato de boas-vindas, todos se envolviam nessa festa quinzenal.

Carrapicho sendo um atendente solícito, logo ganhou uma grande admiração das tripulações da FAB que, dirigiam o CAN no Acre.

E assim, durante anos e anos, ele foi estimado por todos do CAN na passagem por Tarauacá.

Carrapicho, no decorrer de sua vida, foi condecorado várias vezes pela tripulação da FAB.

Foi homenageado com a Comenda (medalha) Brigadeiro Eduardo Gomes, pelo seu tratamento cordial com os homens do CAN no município de Tarauacá.

Tempo depois, a Força Aérea Brasileira prestou uma homenagem ao Carrapicho, pelo seu elogiável trabalho e o carinho aos integrantes do Correio Aéreo Nacional, o que lhe rendeu uma medalha de “Amigo da FAB”.

Numa demonstração de mesura ao Carrapicho, a FAB resolvera trazer ao Acre os aviões da Esquadrilha da Fumaça.

As aeronaves fizeram emocionantes acrobacias nos céus de Rio Branco e em Tarauacá.

O espetáculo aéreo contou com a participação de Carrapicho de dentro de uma das aeronaves da FAB.

Nessa época da Esquadrilha da Fumaça, a minha família já estava em Rio Branco, mas do chão, eu presenciei as piruetas aéreas da FAB.

Jose Galera dos Santos o Carrapicho, é considerado, como o maior incentivador cultural de Tarauacá. Nunca deixou de anunciar os espetáculos (arte e cultura) com o seu megafone.

Em 2009, a rádio Nova Era – FM, de Tarauacá, instituiu em sua homenagem o prêmio Carrapicho de cultura, agraciado aos que mais se destacam nas artes no município.
Carrapicho em desfile cívico. Foto: Blog Tarauacá Notícias

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

MEU TEMPO DE CRIANÇA NOS SERINGAIS DO RIO MURU (Parte 4)

Txai Antônio Macêdo 
Crônicas Indigenistas


Ainda na colocação Currimboque: Promessa feita, dádiva recebida e sacrifício pago

Num daqueles ‘dias de branco’ -  como costumavam dizer os seringueiros adultos -, sai para cortar minha estrada de seringa, São José ‘de cima’ (lembrem-se disso: toda estrada tem seu próprio nome) e no decorrer do trabalho, naquele dia, adquiri uma febre fortíssima.

Ocorre que eu havia passado por baixo de um pé de Palmari e não vi a árvore, e por isso, ganhei aquela famigerada febre. Para aumentar minha má sorte naquele dia caiu uma forte chuva, e eu ainda estava longe de casa. Tive que sobreviver toda aquela chuvarada com a febre que me atacava de forma quase intolerável. Cheguei na casa de meus pais usando uma ‘muleta’  improvisada, feita com pau de caneleiro, e sem querer deixei minha mãe muito assustada, especialmente, ao me ver andando apoiado nessa muleta.

Passado mais de um mês, minha mãe, senhora Carmina Caetano Barbosa, que era uma pessoa muito religiosa e sempre bem motivada pela fé cristã, diante da situação que ela me via ali, aleijado da perna direita, devido ao choque térmico ocasionado pela febre e a chuvarada que tomei na estrada de seringa, caiu de joelhos ao chão e pediu a Santa Maria da Liberdade que intercedesse junto ao Criador pela cura da minha perna direita, que, ao que parece, já estava ‘encolhida’ há mais de 40 dias.  
Santa Maria da Liberdade

Ela prometeu para a santa que, se a minha perna voltasse a se movimentar como era antes, ela me mandaria a pé da colocação Currimboque  até o túmulo dessa jovem santificada para banhar minha perna na terra da sepultura dessa ‘santa’, que era uma moça já morta há muitos anos, e que havia sido ‘santificada’ pela população dos seringais. Assim, quarenta dias depois, comecei a movimentar minha perna e todos os outros seringueiros que me viam não se cansavam de dizer: Olhe o menino! Ficou bom da perna dona Carmina, a senhora foi atendida.

O verão chegou, e uma caravana de romeiros vinda de toda bacia do Rio Muru se deslocava para o local onde se encontrava a sepultura da santa milagrosa. Minha mãe que, já havia ouvido falar muito bem da referida moça que se santificou, não perdeu tempo: Logo preparou uma farofa daquelas muito deliciosa e duradoura, colocou-a em um saco encauchado com látex de seringueira e me ordenou acompanhar os romeiros para pagar a sua promessa.

Não discuti e nem pensei duas vezes: Coloquei a rede num saco. O saco numa estopa. Minha faquinha na bainha. A bainha no cinturão e fui caminhando por vinte e dois dias pelos varadouros da floresta, para cumprir a promessa feita por minha mãe, banhando-me na terra solta da sepultura da Santa. - Durante a caminhada junto à caravana de romeiros, compartilhei com eles momentos bons e momentos de sérias dificuldades, apresentadas ao longo dos varadouros, às vezes limpos ou, na maioria dos casos, com mata ‘serrada’.

Como a natureza é rica, e ao mesmo tempo cheia de surpresas. Passamos por muitas colocações das bacias dos Rios Muru, Rio Envira e Rio Paraná do Ouro. Dessas recordo de algumas como: Morada Nova, Cius, Vai quem quer, Sobral, Mato Grosso, Tianguá, Chato, Alto do bode, Alto Bonito e Paraná do Ouro. - Recordo-me dessas localidades pela importância que cada local desses teve para nossa viagem, pois, eram locais onde buscávamos informações sobre os varadouros, recebíamos refeição caseira e gratuita, tomávamos água de fontes e igarapés tiradas de potes de cerâmica. Eram locais onde descansávamos à noite, para, no dia seguinte, darmos continuidade de nossa viagem.

Mas, teve uma vez que andamos um dia inteiro na floresta, sem água para beber, pois, todos os poucos e pequenos igarapés estavam secos, mas, ainda assim, todos nós estávamos determinados a continuar nossa caminhada passando muitas vezes por dentro de capoeiras de antigas malocas, antes pertencentes a grupos indígenas já exterminados pelas “correrias”, praticadas por seringalistas como o Pedro Biló na bacia do alto rio Envira, Paraná do Ouro, rio Humaitá, rio Muru, rio Tarauacá, rio Jordão, rio Iboiaçu, rio Tejo, Paraná do Machadinho e rio Breu.

Depois deste dia de sede, esforço altamente controlado, fomos pernoitar na casa de um dos filhos de Pedro Biló, de nome Francisco Biló. Este senhor era um dos filhos que se juntava a seu pai, como um dos grandes matadores de índios.

Na moradia de Francisco Biló tinha água boa e abundante. Os donos da casa não estavam presentes na noite que chegamos nesta colocação mas, a decisão unânime de nossa caravana foi acampar ali naquela noite. Eu, deitado na rede ficava pensando nas aflições vividas pelos grupos indígenas quando eram atacados pela “correria” de Pedro Biló, e nós estávamos exatamente na casa do filho dele. De tanto pensar nisso, o sono ainda estava distante, embora estivesse enfadado de caminhar.

Durante a noite, a sede do dia anterior começou a aparecer. Foi quando me levantei para ir até uma talha grande de cerâmica antiga, que ficava sobre um cepo localizado no cantinho da parede de paxiúba. Para minha tristeza terminei encostando a barriga na talha, que por sua vez tombou e esfarelou-se no terreiro da casa: Meu Deus! E agora? - Eu, e os outros integrantes da caravana de romeiros ficamos muito preocupados com o acontecido, e todos se perguntavam: E agora? Quando o dono da casa chegar o que vai acontecer?

Antes da meia noite a família da casa chegou, e eu, tomando à frente de todos, me levantei da rede e expliquei para o dono da casa o que havia acontecido com a talha de cerâmica dele. Ele entendeu e, graças a Deus, nos perdoou sem promover qualquer alarde. Depois disso fomos dormir.

Eu, deitado na minha rede, ficava com minha cabecinha, de apenas onze anos, dando voltas e voltas no mundo da imaginação e das lembranças. Recordações das grandes histórias que me eram contadas pelo o seringueiro Rufino Coelho, vulgo Muru, um senhor que chegou à casa dos meus pais quando eu ia fazer meu primeiro aniversário e terminou ficando junto com nossa família para o resto da vida dele, vivendo muitos anos junto a nós.

Muru dizia que até chegou a ser recrutado para participar de turmas de correrias, onde viu muitas desgraças praticadas contra os povos indígenas brabos (isolados), naquela época.

Entre estas histórias, Muru me contava sobre as “correrias” praticadas por um homem, se não me engano este era procedente do Maranhão, de nome Maximiano da Fonseca, que, e seu nefasto negócio, contava com as participações de chefes de correrias vindo do Peru, conhecidos pelos nomes de Dom Elias, Dom Abudy e Dom Eloy.

Segundo a história do Muru, Maximiano da Fonseca era um homem cheio de mistérios e poderes: Chegava numa casa de família com sessenta homens em sua turma, pedia água recebia e dava os sessenta copos d’água para seus companheiros, mas, o único que os donos da casa viam era ele. Noutro ‘causo’ diziam que ele entrava sozinho numa maloca Indígena no meio da noite, cortava as cordas dos arcos e as molas de rifles em poder dos índios. Fazia tudo sem ser visto pelos índios, para, em seguida, com seus companheiros atacar essas malocas às cinco da manhã. Nestes ataques, as índias novas eram pegas e amarradas para trazer e entregar aos patrões nos barracões. Tais presas eram depois vendidas pelos patrões aos seringueiros e certas delas eram presenteadas a outros patrões. Bom e, assim passei a noite revivendo tudo aquilo que me era contado antes pelos seringueiros.

Finalmente o sono me venceu.

No dia seguinte a farofa de todos que integravam a caravana já estava no fim e, exatamente no entardecer deste dia, chegamos à sede do Seringal Liberdade, na margem esquerda do Rio Envira, de nome indígena Henê-Bariá ou Pixiã, na língua indígena Huni kuin. É lá onde se localiza o túmulo da Santa Maria da Liberdade e naquela noite de nossa chegada, logo à tardinha, cumpri minha missão de ir até o túmulo e me banhar com a terra da sepultura da Santa, com a qual a minha mãe tinha feito a promessa. Em seguida, me banhei nas águas do Henê-Bariá e, depois desse banho, veio o chamado para a nossa caravana, para a refeição da noite.

No jantar, eu comi carne de carneiro pela primeira vez. Até então, eu achava que aquele animal não era para agente comer e não me sentia convidado pelo o apetite mas, finalmente, comi aquela carne na janta, até porque sentia necessidade de repor minhas energias dispensadas durante os primeiros onze dias de caminhada pela floresta. Outro motivo, além da fome, eu não podia fazer feio na casa alheia como, por exemplo, pedir outro tipo de comida que não fosse o prato oferecido pela família, que nos recebeu e nos abrigou para o jantar da família.

Depois do jantar começaram muitas conversas sobre essa santa, que era uma linda jovem nascida e crescida no seringal, onde foi assassinada no local onde fica sua capela. Contaram que o irmão de Maria tinha um amigo e queria que a jovem namorasse o referido rapaz, e que, depois de um tempo viesse casar-se. Só que Maria não tinha o mesmo propósito, e por isso, não aceitou a indicação feita por seu irmão, que ao se sentir contrariado diante de seu amigo, pegou uma arma e atirou na irmã, vinda a mesma a falecer.

Depois da morte da jovem, logo santificada, o seringal Liberdade passou a ser um local de muito destaque, tão importante que, até hoje todos os anos é muito frequentado por diversos romeiros tanto do Acre quanto de fora do Brasil, que lá vão pagar suas promessas naquele local, e tem outros que vão ali para conhecer a história envolvendo aquele episódio.

Após pagar minha promessa voltei caminhando mais onze dias, junto com a mesma caravana que minha mãe havia me entregado. Chegando em casa minha querida mãe nos recebeu com uma mesa sortida de muitas comidas, todas produzidas com a devida qualidade da arte culinária de minha mãe e minhas irmãs.

Dou um salto na minha história, rompendo com a narrativa...

Talvez por conta desta importância, que, muitos anos depois, quando ocorreram os estudos de identificação e delimitação das terras indígenas Kulina do Rio Envira e Kulina do Igarapé do Pau, a faixa de terra que compreende a área do seringal Liberdade ficou fora dos limites das terras indígenas, respeitando o credo católico, o recanto sagrado e o livre arbítrio dos romeiros católicos que se apegam a jovem assassinada e santificada. E, revoltados com o fato desta faixa de terra ter ficado fora dos limites dos territoriais indígena, alguns Kulina (Madija), chegaram a furar os olhos da imagem de massa da santa colocada na capela pela Igreja Católica em homenagem a santa santificada. Isto foi feito quando os Padres levaram o corpo da jovem Santa para Roma.

Em 2010, enquanto realizava levantamento junto aos povos indígenas do rio Envira, para suprir o Plano de Mitigação e Compensação nas terras indígenas da área de influência direta e indireta de abrangência dose impactos da BR-364, parei nesse seringal e aproveitei para renovar meus votos junto a santa, que morreu pela liberdade de escolha. Nessa visita eu estava acompanhado eu Gessé-la, Maiane, Jucelino, Francisco Apurinã e Vanderlei o motorista de nosso barco fretado na cidade de Feijó no Acre.

Nessa viagem eu pude registrar outra versão da história, sobre a morte da jovem, contada pelo nosso barqueiro Vanderlei:

“Eu era criança quando ouvia a minha mãe contar que um marreteiro (comerciante itinerante) de nome desconhecido parou no seringal atualmente denominado de Santa Maria da Liberdade, com objetivo de apresentar e comercializar seus produtos. Naquela oportunidade o marreteiro foi convidado pelo dono da casa, pai da jovem para almoçar ali. Como de costume, este comerciante estava de posse de um revólver de calibre 38, o qual deixou sobre a mesa da sala. Nesse recinto estava a jovem de 16 anos, e a moça, sem noção do que poderia ocorrer, pegou a arma que estava carregada e brincando apontou para o rapaz, apertando o gatilho por várias vezes, sem que a arma realizasse qualquer disparo, Todavia, o jovem para quem Maria apontava a arma, era aquele que seu irmão queria que fosse seu namorado. Neste momento, o irmão da jovem pegou a mesma arma e falou: – vou mostrar como se atira. - E acabou que dessa vez a arma disparou contra a adolescente, ocasionando o falecimento dela. Antes da sua morte, enquanto agonizava, pediu para não fazerem nada contra o rapaz, pois ele não havia feito aquilo com o propósito de atirar nela, era tudo brincadeira.

Após alguns dias de seu enterro, o local onde ela foi sepultada começou a inspirar cheiro de flores, e todos que por ali passavam percebiam que se tratava de um túmulo diferente. Aquela notícia chegou até ao conhecimento dos padres do município de Feijó, que vieram para fazer uma inspeção e se surpreenderam ao constatar que a jovem falecida, havia se santificado.”

Deixo aqui essa história da jovem santificada, que me ajudou a fazer minha perna direita voltar a funcionar. O resto da história continuará no texto seguinte, ainda na colocação Currimboque.


Antônio Batista de Macêdo, o Txai Macêdo, é sertanista da FUNAI e uma figura importantíssima para o indigenismo e para os povos indígenas no Acre. Juntamente figuras como com Txai Terri, Dedê Maia foi (e continua sendo) uma memória viva do que foram os anos de luta, desafios, vitórias, alegrias e tristezas em prol das questões indígenas nesse rincão da Amazônia. Vivas a esse grande txai, cuja história merece ser contada e recontada por quem  admira e conhece o seu trabalho. (Jairo Lima)