terça-feira, 7 de novembro de 2017

COELHO NETO

ROGEL SAMUEL


- Bolo de cupuaçu, Mestre? - perguntou Lima Silva, servindo o moço.
- Sim, sim. A vida é a variedade... Assim como o paladar pede sabores diversos, assim a alma exige novas impressões, disse Coelho Neto.
- É uma iguaria amazonense, disse Karl Waldemar Scholz. Mas só na minha casa existe esta receita.
- Por quê? – quis saber o escritor num gesto de curiosidade.
- Minha cozinheira aplicou a receita da torta de maçã alemã.
- Apfelstrudel? – perguntou Coelho Neto, em perfeita pronúncia alemã.
- Sim, respondeu Scholz. Contém pedaços de castanha do Pará e calda de cupuaçu.
- Uma delícia, disse o escritor, provando e balançando a cabeça.
Era dia 10 de setembro de 1899.
Coelho Neto deixaria Manaus no dia seguinte, no paquete “Manaus”.
Antes de partir, pose para o fotógrafo Lucciani.
Coelho Neto, maranhense, filho de um português e de uma índia, desembarcou na noite de 11 de agosto. Estava na cidade há 26 dias, no Hotel Cassina. Ele já era famoso aos 35 anos.
Alto, magro, discretamente elegante.
Tinha publicado, naquela época, sete romances, sete livros de contos, quatro volumes de crônicas, três novelas, dois volumes de “educação moral e cívica”, dois poemas dramáticos, uma balada e uma conferência.
Era redator da “Gazeta do Rio”, de Patrocínio; e do “Diário de Notícias”, de Rui Barbosa.
Dava aula de história da arte na Escola Nacional de Belas Artes.
Coelho Neto pertencia ao grupo de Bilac, Murat, Aluísio de Azevedo, Raimundo Correia, Paula Ney, Guimarães Passos, Raul Pompéia, Martins Fontes.
Já na primeira noite em Manaus esteve reunido com a intelectualidade amazonense.
Jantou com Raul de Azevedo, Fran Paxeco e Cláudio de Sousa, que era médico em Manaus.
Cláudio de Sousa, depois, entrou para a Academia Brasileira de Letras.
No dia seguinte, no Teatro Amazonas, foi assistir, junto com o Governador Ramalho, à opereta portuguesa: “Os 28 dias de Clarinha”.
No outro dia, almoçou com amigos, a bordo, visitou Eduardo Ribeiro na sua chácara, almoçou na casa do diretor do “Amazonas Comercial”,  no Palácio do Governo, na chácara de Inácio Pessoa, na casa de Th. Vaz.
Visitou o Centro Artístico, o Congresso, o Ginásio, a Escola Normal, o Instituto Benjamin Constant, o quartel de polícia, o hospital da Beneficência Portuguesa.
Participou de um piquenique no Tarumã, de um baile de gala no “Sport Club”... Coelho Neto parecia chefe de estado.
No Teatro Amazonas durante a operetta “Dia e noite”, foi glorificado com duas bandas de música e por discurso de Claudio de Sousa. Houve hino nacional e discurso do próprio escritor.
- Volto amanhã para o Rio, disse Coelho Neto.
E acrescentou:
- Estou cansado e saudoso. Deixei no Rio um filho recém-nascido e a viagem foi longa.
- Muito longa? - indagou, vivamente, Lima Silva.
- Parei no Espírito Santo, na Bahia, em Sergipe, em Pernambuco, na Paraíba, em Fortaleza, no Maranhão, no Pará.
Depois de alguns minutos de conversação, Lima Silva disparou:
- Tem visto Thaumaturgo de Azevedo?
Houve momento de constrangimento. Coelho Neto corou.
O arguto Lima Silva queria saber o que estava por trás daquela viagem, pois o escritor não devia ter vindo a Manaus somente para almoçar e ser homenageado.
Sabia que Coelho Neto era ligado aos militares republicanos, como secretário-geral da Liga de Defesa Nacional. Coelho casou-se com Maria Gabriela Brandão, logo após a Proclamação da República, tendo como padrinho o próprio Presidente Deodoro da Fonseca. O casal teve treze filhos, dos quais só sete sobreviveram. Devia conhecer de perto o ex-governador Thaumaturgo, que era amigo de Deodoro.
- Sim, tenho visto, disse ele, meio sem jeito.
- E Fileto Pires Ferreira? – perguntou Lima Silva.
- Este está recluso na sua casa no Andaraí. Mora no meio de um pântano...
- No meio da floresta?
- Sim, não visita ninguém, nem recebe, mas luta por seus direitos. Está preparando um livro que vai chamar-se “A verdade sobre o caso do Amazonas”.
- E depois de um gole, acrescentou:
- Por aqui ninguém fala dele, só de Eduardo Ribeiro.
- Sim, é verdade.
- É a glorificação do Eduardo Ribeiro. O governo de Fileto parece que nem existiu, que foi uma nulidade.
- Mas não foi, redarguiu Lima Silva. Foi melhor do que o de Eduardo.
- Como assim? – indagou o escritor.
- Fileto governou 19 meses. Eduardo quase 8 anos. No Governo de Eduardo Ribeiro, houve a construção... (e Lima Silva foi descrecendo as realizações de Eduardo Ribeiro).
- Tudo isso? Perguntou o escritor maranhense?
- Sim. Mas nos 19 meses do Governo de Fileto Pires houve a inauguração do Serviço de Eletricidade, escavações, nivelamentos e calçamentos das ruas 7 de Dezembro, Demetrio Ribeiro, Quintino Bocaiúva, Marechal Deodoro, Independência, Barroso, Saldanha Marinho, Marcilio Dias, 10 de Julho, Jose Clemente, Monsenhor Coutinho (Progresso), Emilio Moreira, Ramos Ferreira, Ipixuna, Oriental e Marques de Santa Cruz...  215.000 m3 de aterros e desaterros. Fileto fez o aterro do Igarapé dos Remédios, com 80.000 m3 de terra retirada da praia do Rio Branco, onde hoje está Escola Técnica Federal, no trecho entre Mundurucus e ponte dos Remédios. Fez a continuação das obras do Palácio da Justiça e do Palácio do Governo (nunca concluído). O Palácio do Governo, obra monumental, jamais concluída, seria o maior prédio já construído no Brasil de sua época. Fileto terminou a rampa da Praça 15 de Novembro e dos jardins da Matriz. Fechou o contrato do melhoramento do porto e para o estabelecimento da viação urbana e suburbana. Manaus nos fins de 1897 já possuía 16 quilômetros de linhas, 25 bondes para carga e 10 para passageiros, tendo transportado 171.783 usuários, a 250 reis a passagem. Fileto fez a iluminação dos bairros do Mocó, Cachoeira Grande e Cachoeirinha. Instalou 300 lampiões a nafta, fez a construção da rede complementar de água, instalou o serviço telefônico de 330 aparelhos, cujo início de funcionamento se deu em 1897. Fileto concluiu as obras do Teatro Amazonas, que estavam paradas e o inaugurou em 31 de dezembro de 1896.
- Tudo isso em 19 meses?
- Sim. E não deixou dívidas, mas um monstruoso saldo. Ele começou seu governo pagando as dívidas, pois Eduardo Ribeiro tinha deixado o Governo quebrado. Fileto pagou todas as dívidas do governo anterior e alavancou as obras.
- O Sr. tem razão, doutor.
No fim daquela tarde Lima Silva desconfiou que Coelho Neto tinha vindo ao Amazonas como observador político da capital para preparar o desfecho que ia ser cassar a pretensão de Eduardo Ribeiro de assumir o Senado.

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