-
Sim, sim. A vida é a variedade... Assim como o paladar pede sabores diversos,
assim a alma exige novas impressões, disse Coelho Neto.
-
É uma iguaria amazonense, disse Karl Waldemar Scholz. Mas só na minha casa
existe esta receita.
-
Por quê? – quis saber o escritor num gesto de curiosidade.
-
Minha cozinheira aplicou a receita da torta de maçã alemã.
-
Apfelstrudel? – perguntou Coelho Neto, em perfeita pronúncia alemã.
-
Sim, respondeu Scholz. Contém pedaços de castanha do Pará e calda de cupuaçu.
-
Uma delícia, disse o escritor, provando e balançando a cabeça.
Era
dia 10 de setembro de 1899.
Coelho
Neto deixaria Manaus no dia seguinte, no paquete “Manaus”.
Antes
de partir, pose para o fotógrafo Lucciani.
Coelho
Neto, maranhense, filho de um português e de uma índia, desembarcou na noite de
11 de agosto. Estava na cidade há 26 dias, no Hotel Cassina. Ele já era famoso
aos 35 anos.
Alto,
magro, discretamente elegante.
Tinha
publicado, naquela época, sete romances, sete livros de contos, quatro volumes
de crônicas, três novelas, dois volumes de “educação moral e cívica”, dois
poemas dramáticos, uma balada e uma conferência.
Era
redator da “Gazeta do Rio”, de Patrocínio; e do “Diário de Notícias”, de Rui
Barbosa.
Dava
aula de história da arte na Escola Nacional de Belas Artes.
Coelho
Neto pertencia ao grupo de Bilac, Murat, Aluísio de Azevedo, Raimundo Correia,
Paula Ney, Guimarães Passos, Raul Pompéia, Martins Fontes.
Já
na primeira noite em Manaus esteve reunido com a intelectualidade amazonense.
Jantou
com Raul de Azevedo, Fran Paxeco e Cláudio de Sousa, que era médico em Manaus.
Cláudio
de Sousa, depois, entrou para a Academia Brasileira de Letras.
No
dia seguinte, no Teatro Amazonas, foi assistir, junto com o Governador Ramalho,
à opereta portuguesa: “Os 28 dias de Clarinha”.
No
outro dia, almoçou com amigos, a bordo, visitou Eduardo Ribeiro na sua chácara,
almoçou na casa do diretor do “Amazonas Comercial”, no Palácio do Governo, na chácara de Inácio
Pessoa, na casa de Th. Vaz.
Visitou
o Centro Artístico, o Congresso, o Ginásio, a Escola Normal, o Instituto
Benjamin Constant, o quartel de polícia, o hospital da Beneficência Portuguesa.
Participou
de um piquenique no Tarumã, de um baile de gala no “Sport Club”... Coelho Neto
parecia chefe de estado.
No
Teatro Amazonas durante a operetta “Dia e noite”, foi glorificado com duas bandas
de música e por discurso de Claudio de Sousa. Houve hino nacional e discurso do
próprio escritor.
-
Volto amanhã para o Rio, disse Coelho Neto.
E
acrescentou:
-
Estou cansado e saudoso. Deixei no Rio um filho recém-nascido e a viagem foi
longa.
-
Muito longa? - indagou, vivamente, Lima Silva.
-
Parei no Espírito Santo, na Bahia, em Sergipe, em Pernambuco, na Paraíba, em
Fortaleza, no Maranhão, no Pará.
Depois
de alguns minutos de conversação, Lima Silva disparou:
-
Tem visto Thaumaturgo de Azevedo?
Houve
momento de constrangimento. Coelho Neto corou.
O
arguto Lima Silva queria saber o que estava por trás daquela viagem, pois o
escritor não devia ter vindo a Manaus somente para almoçar e ser homenageado.
Sabia
que Coelho Neto era ligado aos militares republicanos, como secretário-geral da
Liga de Defesa Nacional. Coelho casou-se com Maria Gabriela Brandão, logo após
a Proclamação da República, tendo como padrinho o próprio Presidente Deodoro da
Fonseca. O casal teve treze filhos, dos quais só sete sobreviveram. Devia
conhecer de perto o ex-governador Thaumaturgo, que era amigo de Deodoro.
-
Sim, tenho visto, disse ele, meio sem jeito.
-
E Fileto Pires Ferreira? – perguntou Lima Silva.
-
Este está recluso na sua casa no Andaraí. Mora no meio de um pântano...
-
No meio da floresta?
-
Sim, não visita ninguém, nem recebe, mas luta por seus direitos. Está
preparando um livro que vai chamar-se “A verdade sobre o caso do Amazonas”.
-
E depois de um gole, acrescentou:
-
Por aqui ninguém fala dele, só de Eduardo Ribeiro.
-
Sim, é verdade.
-
É a glorificação do Eduardo Ribeiro. O governo de Fileto parece que nem
existiu, que foi uma nulidade.
-
Mas não foi, redarguiu Lima Silva. Foi melhor do que o de Eduardo.
-
Como assim? – indagou o escritor.
-
Fileto governou 19 meses. Eduardo quase 8 anos. No Governo de Eduardo Ribeiro,
houve a construção... (e Lima Silva foi descrecendo as realizações de Eduardo
Ribeiro).
-
Tudo isso? Perguntou o escritor maranhense?
-
Sim. Mas nos 19 meses do Governo de Fileto Pires houve a inauguração do Serviço
de Eletricidade, escavações, nivelamentos e calçamentos das ruas 7 de Dezembro,
Demetrio Ribeiro, Quintino Bocaiúva, Marechal Deodoro, Independência, Barroso,
Saldanha Marinho, Marcilio Dias, 10 de Julho, Jose Clemente, Monsenhor Coutinho
(Progresso), Emilio Moreira, Ramos Ferreira, Ipixuna, Oriental e Marques de
Santa Cruz... 215.000 m3 de aterros e
desaterros. Fileto fez o aterro do Igarapé dos Remédios, com 80.000 m3 de terra
retirada da praia do Rio Branco, onde hoje está Escola Técnica Federal, no
trecho entre Mundurucus e ponte dos Remédios. Fez a continuação das obras do
Palácio da Justiça e do Palácio do Governo (nunca concluído). O Palácio do
Governo, obra monumental, jamais concluída, seria o maior prédio já construído
no Brasil de sua época. Fileto terminou a rampa da Praça 15 de Novembro e dos
jardins da Matriz. Fechou o contrato do melhoramento do porto e para o
estabelecimento da viação urbana e suburbana. Manaus nos fins de 1897 já
possuía 16 quilômetros de linhas, 25 bondes para carga e 10 para passageiros,
tendo transportado 171.783 usuários, a 250 reis a passagem. Fileto fez a
iluminação dos bairros do Mocó, Cachoeira Grande e Cachoeirinha. Instalou 300
lampiões a nafta, fez a construção da rede complementar de água, instalou o
serviço telefônico de 330 aparelhos, cujo início de funcionamento se deu em
1897. Fileto concluiu as obras do Teatro Amazonas, que estavam paradas e o
inaugurou em 31 de dezembro de 1896.
-
Tudo isso em 19 meses?
-
Sim. E não deixou dívidas, mas um monstruoso saldo. Ele começou seu governo
pagando as dívidas, pois Eduardo Ribeiro tinha deixado o Governo quebrado.
Fileto pagou todas as dívidas do governo anterior e alavancou as obras.
-
O Sr. tem razão, doutor.
No fim daquela tarde Lima Silva desconfiou que Coelho Neto tinha vindo
ao Amazonas como observador político da capital para preparar o desfecho que ia
ser cassar a pretensão de Eduardo Ribeiro de assumir o Senado.
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