domingo, 17 de julho de 2022

SOBRE CULTURAS CONDENADAS NA EXPRESSÃO LITERÁRIA AMAZÔNICA

Maria de Nazaré Cavalcante de Sousa

              Roa Bastos organiza a obra Las culturas condenadas (2011), uma seleção de artigos de vários pensadores pelos quais denunciam as tragédias da escravidão, degradação, racialização e extermínio das comunidades paraguaias indígenas desde a invasão europeia na América Latina. Segundo aponta: “Há um prejuízo racista latente, querem crer que a morte física e cultural tem o germe e causa na debilidade racial” (p. 18). Com essa assertiva o escritor levanta uma série de questões e convida intelectuais a refletirem sobre o que se costuma denominar de assimilação cultural de povos “submissos” culturalmente. Roa se refere às etnias indígenas do Paraguai e também ao povo explorado.

     Roa apresenta olhares de antropólogos, intelectuais que relatam situações tão caras ao processo de colonização neste continente. Pontua sobre a agressividade de ações de colonizadores justificadas a partir da ideia de uma superioridade racial e cultural.  Trata-se de uma temática ainda tão atual. De forma incisiva, o autor coloca em pauta o que se tornou um embate entre a “sociedade indígena e a sociedade nacional”, o que mantem ao longo dos séculos, um problema de origem, certamente, que descarta a potência da cultura indígena e da sua cosmologia na compreensão do espaço latino americano.

      Ao denunciar o extermínio (físico e cosmológico) das comunidades indígenas motivado pela pretensa hierarquia cultural e racial, confirma-se a atualidade nos escritos de Roa sobre discursos da pós-modernidade, uma categoria que reforça de forma velada a condição de colonialidade (categoria do grupo modernidade-colonialidade) permanente em nosso continente impondo condições coloniais de poder, de ser e de saber conforme os ditames do, ainda, processo civilizatório instituído. Nesse sentido, como política de enfrentamento e não apenas de resistência ao estado de colonialidade estabelecido, são fundamentais a escuta e o compartilhamento de ações de setores subalternos da sociedade que se manifestam como produtores de seu próprio destino, assumindo suas práticas de vida, suas experiências como constitutivos de outras narrativas de conexões culturais e cosmológicas.

     Roa Bastos chama atenção para o que denomina como nova atitude antropológica pela qual pesquisadores da etnologia e da etnografia têm resgatado as culturas indígenas condenadas, colocando-as em seus escritos, tal qual como as tratadas numa sociedade colonizadora. Neste grupo de intelectuais, os literatos têm atuado de forma contundente em narrativas que denunciam a condição das pessoas em espaços convertidos em colônias permanentes.

     O presente texto engaja-se às reflexões do escritor paraguaio propondo dialogar com a escrita de um branco (o escritor amazonense Paulo Jacob), desta feita da Amazônia brasileira, que se manifesta, assim como Roa Bastos, numa condição de aliado de tais condenados que vivenciam, como os indígenas paraguaios, as mesmas condições de apagamentos culturais e de condição de racialização perene. Uma leitura que caminha em busca de reafirmar a necessidade de constante diálogo entre culturas diversas que ainda se mantem por toda a América latina, acreditando que muito pouco se avançou em estabelecimento de diálogos e atitudes equitativas em torno dos apagamentos culturais.  

       Manuela Carneiro em prefácio do livro Pacificando o branco (Bruce Albert e Ramos, 2002) discute sobre a urgência de intensificar outros discursos antropológicos, levanta sobre a necessidade de estudos que   dialoguem com percepções e atitudes dos que foram postos na condição de subalternizados na América Latina, ou seja, tornar pulsante e colocar em confronto com o “pensamento modelo”, destituindo a carga substancial de nossos preconceitos e imaginação em relação ao outro. Insiste que seja revisto o olhar etnocêntrico que constantemente é legitimado no universo acadêmico. Embora pareça um discurso superado, ainda se encontra bastante arraigado em diversas universidades brasileiras, por exemplo. 

     Assim, é importante que nos coloquemos como objetos de outras subjetividades, o que torna possível avançar para uma construção de vivências entre povos como aporte de uma alteridade cultural. Caminhando nesse sentido, para se safar do desejo colonizador da cultuação das inventividades culturais e raciais impostas aos diversos povos da América Latina, sobretudo para que se supere a cosmogonia cristã que discrimina todas as subjetividades dos demais povos. Manuela Carneiro propõe a inserção de narrativas outras com o objetivo de neutralizar para deslegitimar a atual naturalidade e legitimação da ordem social. O que consideramos na perspectiva decolonial como um desmonte do poder, do ser, do saber e do ver eurocentrados.

         Vivendo sob mesmo sistema de colonialidade (Quijano,2007), a Amazônia, no século XX, apresenta como referência de prática de desconstrução de um saber colonial historicamente construído, intelectuais como o literato amazonense Paulo Jacob, que se distanciando do discurso homogêneo sobre o espaço e seus habitantes, imprime em seus escritos outras formas de subjetivação, revendo a condição de racialização vivida pelos povos que habitam este lugar.   

     Neste universo literário, Jacob elege seus personagens amazônidas como mulheres, nativos, indígenas, crianças e outros seres como animais e plantas, com os quais busca formas de confrontar e desafiar a visão de racionalidade e de ser e saber estabelecidos pela sociedade nacional.  Seus romances (em torno de 12 obras de ficção) evidenciam e propõem o protagonismo e visibilidade principalmente da mulher, dos rios, das árvores, dos animais e dos demais seres da Amazônia em mesma condição de existência, inserindo em sua escrita as línguas de diversas etnias, a situação da terra, da floresta que constituem esta região.

     Como exemplo, a prosa poética Amazonas, remansos, rebojos e banzeiros, publicada em 1995, obra que imerge no universo indígena trazendo para o plano ficcional as questões que Roa Bastos levantou em Las culturas condenadas, em relação ao extermínio e ao apagamento cultural. Com isso, Jacob, na Amazônia, instiga a leitura na tentativa de impor-se no espaço em que a literatura ainda é do herói branco. Jacob, como os antropólogos de Roa, inverte a “lógica” histórica.         

       Em Amazonas, remansos, rebojos e banzeiros com a presença de um narrador-personagem, o enredo desenrola em completa simbiose do homem e natureza, ambos em compartilhamento de vidas no mesmo espaço. A abordagem temática e a própria opção de escrita do autor instigam-nos a repensar formas de construções de imaginários que circulam no mercado de produção e consumo de visualidades (colonialidade do ver) promovidos há um longo tempo na ficção sobre a região amazônica e na própria América Latina.

    O enredo compõe-se de inter-relações imagéticas do que historicamente a episteme eurocêntrica de cultura x natureza instituiu como visões binárias. Não é uma obra de enredo idílico, encontramos um rosário de peculiaridades, de ações e tipos humanos e não humanos que externam práticas de coexistências no mesmo patamar de subsistências relacionadas ao corpo e a alma, ou mente. Homem e natureza, ambos com suas almas, convivendo em interação, cumplicidades e divergências traduzindo imagens e sensações que resgatam tradições e indicam caminhos futuros para uma re-existência dos povos (Walsh, 2007).

       Amazonas, remansos, rebojos e banzeiros é um convite do narrador-personagem para embarcar em mundos que negociam imaginários amazônicos ao expressarem suas desesperanças e esperanças em dividir o efervescente cotidiano da floresta entre amigos: a amiga samaumeira (uma das espécies das árvores amazônicas) e um indígena de etnia Inca. A obra pode ser lida também como um projeto de interculturalidade, no sentido de que vislumbra uma re-inserção no universo das tradições, das ontologias ancestrais para atingir buen vivir (Walsh, 2007).

      A obra em questão já no título metaforiza a vida imergindo e sacolejando nas águas de seus imensos e importantes rios que sustentam os seres do lugar. O transitar e o equilíbrio deste universo. Numa relação de trocas de vivências neste espaço, o narrador-personagem nos conta (e também, para a amiga samaumeira) a história do povo inca, da exploração espanhola e seu estabelecimento nas planícies amazônicas. Um narrar que desafia ao padrão colonial do ser que separa a comunhão humano-natureza, evidenciando o protagonismo indígena, numa perspectiva de olhar às cosmovisões e práticas existenciais, territoriais, espirituais dos povos indígenas e das raízes africanas.  

      Catherine Whash reafirma a importância dessa construção de interculturalidade e ilustra essa postura em Eduardo Galeano quando escreveu sobre a constituição do Equador, relacionando a Natureza em pé de igualdade com o humano:

    Desde que a espada e a cruz desembarcaram em terras americanas, a conquista europeia castigou a adoração da natureza, que era pecado de idolatria, com pena de açoite, forca ou fogueira. A comunhão entre a natureza e o povo, costume pagão, foi abolida em nome de Deus e posteriormente em nome da Civilização. Em toda a América e em todo o mundo seguimos pagando as consequências deste divórcio obrigatório (Galeano, A natureza não é muda-quando discutia sobre a nova constituição, 2008)

        Distanciando da temática naturalizada da literatura (sociedade nacional) sobre a Amazônia, essa prosa poética aponta uma inspiradora re-visualidade em seus escritos, pois enfrenta a malfadada temática da dicotômica Amazônia descrita para exportação dividida entre inferno e paraíso. São questões que Adolfo Achinte (arte decolonial) toma para si quando afirma:  Fazer arte de acordo com os cânones hegemônicos petrifica uma única direção da informação, não é uma forma de criar, mas uma forma mais refinada e complexa de consumir. (ACHINTE, p.158). Disso Paulo Jacob se liberta.

    A prosa poética de Jacob apresenta uma temática que propõe sumak kaway (vida em harmonia) ou o buen vivir (viver bem) baseada numa relação dualista, insistindo na construção de valores não somente material, mas espiritual, unindo energia e força sem provocar binarismos e que aponta para convivência - a vivência em respeito e dignidade.

        Os 44 capítulos se constituem também em um verdadeiro dicionário de termos e seres da Amazônia interfronteiriça, uma riqueza de tipos e viveres em convivências imbricadas entre si para a garantia da compreensão de que nós pertencemos a terra, e não ao contrário, ou seja, a terra não nos pertence. Trilhando pela narrativa, há uma espécie de prosear entre velhos conhecidos, conversas de compadres, o narrador e a sumaúma, ora falam sobre a mata, rios, ora falam sobre o tempo ou sobre os irmãos da floresta. O narrador cumpre a missão de evocar a natureza e tudo que nela está contida em sua idiossincrasia, pois ele é parte intrínseca dela. Toma o rio Ucaiali como parceiro na trama que entremeiam as ações de outros personagens: ‘Tempão medonho. Cem anos, noventa talvez. O Ucaiali crescido no pé da terra. Terrão bonito, verdoso, estirado. Julho, agosto, setembro, dias assim. Os baixios florados. As samaumeiras parindo frutos de criação. (Jacob, p.09)

      Nesse ritmo, o enredo se desenrola. O narrador por vezes confidencia a amiga e irmã samaumeira segredos de seu povo, os irmãos incas nos momentos de rituais, de acasalamento e quando atacados pelas armas dos homens barbudos (brancos):

     Capac certa da feita foi ferrado de tapiú. Botou cataplasma de matecclu, mode o trato do inchaço. Cura do conhecimento dos incas. Logo sarou o ferido, passou a febre.” (Jacob, p.23) e:

 Homens, mulheres, crianças tudo acabado. Brancos barbudos, perversos, malignos. Com flecha não deu jeito de enfrentar. Muita gente, muita taboca de matar. Levaram as mulheres. Fizeram mal as coitadas. Muitas morreram. Vingança nunca foi maldade. Não conheces o nosso passado bela samaumeira. (Jacob, p.15)

  Ou ainda para demonstrar o parentesco dele, o homem, terra e mata confidencia à sumaumeira que: “Os bons filhos do sol quando morrem se encarnam nas árvores. Sobem às estrelas. Clareiam a terra, dão cores ao arco-íris” (Jacob, p.25)

      Ou sobre as festas quando lembra: “O Inti Raymi, a grande festa do sol. Começo do cultivo nos campos. Os caminhos abarrotados de gente. Subiam e desciam os Andes. Atravessavam rios, igarapés, pontes de cipó. Acampavam ao lado do templo em Cuzco. Traziam carrego de batatas, milho, feijão, coca. Ao lado do Sapa Inca, a Coya, a rainha e os nobres. (Jacob, p25)

           O narrador-personagem articula as ações e negociações de seu povo no processo de interação e de aprendizado com outros povos que circundam a floresta e com conflitos e ensinamentos dos bichos, das árvores sobre viver bem nesse espaço.

    Anibal Quijano (2007), demonstra que há muito tempo se vem discutindo sobre estes viveres ao mencionar a produção literária de José Argueda que aponta as comunidades indígenas latino-americana em uma  proposta de comunidade solidária, realidades materializadas no dia-a-dia do povo indígena – os palenques e outros tipos de comunidade tradicional – suas metas de felicidades – hoje chamada de bem viver a partir da categoria indígena, em que colocam  no centro a vida das relações humanas com o meio natural – e não orientam suas vidas pelo meio do cálculo, custo-benefício, produtividade, competitividade, etc., suas vidas são divergentes do projeto de capital. (Quijano, p.18)

      Há um enfrentamento na postura desses personagens e espaços em relação a organização etnocêntrica referente ao ego cogito cartesiano (sujeito puramente pensante que entende a existência subalternizando ao corpo) instituído principalmente pelo pensamento eurocêntrico. Quijano, citando Rodolfo Kusch (2000), aponta o pensamento indígena e popular na América Latina em comunidades que não se expressa em sentido corpo-objeto, mas através de acontecimentos em que o emocional cumpre papel fundamental.

     Em algumas línguas indígenas não há uma palavra para sujeito nem objeto. Palavras que podem aproximar-se de ‘sujeito’ é a palavra coração, as relações se estabelecem entre corações intersubjetivamente:

               ...al estudiar la etnia tojolabal plantea que em la lengua de esa comunid no existen las palavras ‘sujeto’ ni ‘objeto’. La palavra que más puede aproximarse a ‘sujeto’ es ‘corazón’ y la relación que se estabelece es entrecorazones, intersubjetiva. Pero como ‘todo tiene corazón’ (la tierra, minerales, vegetales, animales, etc.) (In Farias, p.04)

       Walter Mignolo (2005) irá propor o termo corpopolítica do conhecimento como forma de superação do egopolítica do conhecimento. De certa forma, propõe uma discussão que obriga a desestruturação da relação sujeito-objeto e defende uma intersubjetividade, englobando a terra (pachamama) colocando em evidência a sacralização na perspectiva de uma ecologia crítica. Expõe em suspeição o mito moderno do progresso em detrimento do mito libertador (não lógica antropocêntrica).

    Embora cada povo tenha suas relações cosmológicas e elegem em suas culturas ações especificas de cada etnia, a maioria entende a cosmovisão de sua existência. Matías Ahumada (...), pesquisador indígena, afirma que uma comunidade não se reconhece a si mesma por fora do lugar que habita. Não há uma exterioridade definitiva, mas algo como uma interioridade projetada no vale, na montanha, ou na mata.

     Voltando à prosa poética de Jacob, o narrador em conversa com sua amiga samaumeira reflete sobre as hierarquias existentes na cultura de seu povo. O dever de respeito ao rei Sapa Inca. As relações de casamentos, entre outros dentro do sistema de vida deste. O ângulo de visualidade que é estabelecida a partir do olhar etnocêntrico é posto em suspeição.  Entre outros acontecimentos, a samaumeira amiga tomba, é chegada sua hora, é levada pelas águas, rio acima e rio abaixo.  O narrador reserva os últimos capítulos para observar todo o processo de morte, de seu transportar-se para às margens do rio, de perigo que corria após seus restos mortais serem desviados de seu natural caminho (rumar no rio). É um narrar melancólico, de tristeza e pesar:

    “O curumim brincando. Saltava na água de cima do tronco. Tempão enorme nadando. Quis navegar na samaumeira. Tirou a envira de amarrada. A tronqueira saiu bubuiada. Cortada, servindo de jangada. Andar dias, meses, anos talvez. Caminhada cansadiça, perigosa. Um dia quem sabe sustar caminho. Parar nos restantes da vida. O tronco morto, apodrecido, largado aos pedaços. Caveira podre de quem tão bela e orgulhosa foi. (Jacob, p.73)

         A prosa poética de Paulo Jacob alimenta a ideia de um giro decolonial para que a coexistência de homem e natureza deva prevalecer, tomando como princípio os sentimentos da luta para viver na Floresta.  A trama inicia às margens do Ucaiali (Peru) e perambula entre os rios da floresta, quando a samaumeira segue seu destino. No tecer das histórias de cada um presente no enredo constrói-se de uma postura digna, tanto da natureza como do humano, submetidos nessa natureza como partes iguais. Pensar a natureza e o ser humano em relação de trocas e valores é uma irracionalidade própria da lógica-sujeito objeto.

     No enredar da conversa das personagens há uma esperança acalentada na busca da construção de uma soberania alimentar, uma agricultura familiar e ao regresso dos saberes originários um desejo intrínseco de uma relação íntima em Abya Yala. Há também uma disposição para uma aposta em um projeto de vida, de re-existência, de sentir-pensar e conviver em desacordo com a ordem dominante da matriz moderno/colonial.

    Roa Bastos selecionou – na obra Las Culturas Condenadas – uma série de textos antropológicos para dizer basicamente que as sociedades indígenas e não indígenas latino americanas – embora colonialmente condenadas – são povos que resistem física e culturalmente. Roa demonstrou isso com o testemunho de etnólogos e etnógrafos, caso dos aliados politicamente de suas causas. Paulo Jacob, um literato brasileiro, amazonense em Amazonas, remansos, rebojos e banzeiros demonstra o quanto a literatura cumpre também tal papel, no caso em relação às culturas condenadas dos povos ameríndios amazônicos – cumprindo, com isso, um, portanto, compromisso decolonial.

     Las culturas condenadas e Amazonas, remansos, rebojos e banzeiros levantam questões pertinentes que possibilita prosseguimento ao projeto de descolonização com que se tem empenhado alguns grupos de políticos e intelectuais latino-americanos. Compreendendo que a formação da ideia dialética de ‘nós’ e dos ‘outros’ é constituição de uma representação de poder. Criou-se no outro, o povo originário, seres desprovidos de saber e cultura que foi o contraponto da exigência colonial de transportar a civilização e a sabedoria para os povos que viviam na ignorância e impuseram-se como referência, isso percebemos na escassez na produção escrita sobre temáticas como a do amazonense Paulo Jacob. Distanciando da temática naturalizada da literatura sobre a Amazônia, a obra aponta uma inspiradora re-visualidade em seus escritos, pois enfrenta a malfadada temática da dicotômica Amazônia descrita para exportação dividida entre inferno e paraíso. Como também, na preocupação de Roa Bastos em compilar textos importantes denunciando a condição de aniquilamento, temáticas que advertem sobre as formas que foram construídas a condenação das culturas, apagando vozes, marginalizando povos de etnias que resistem e buscam aliados que lutem para o ‘lugar devido’ de suas histórias na América Latina.

 

Referências

Bastos,Roa. Las culturas candenadas. Compilación Augusto Roa Bastos. La Edición Servilibro Asunción, septiembre 2011

Bruce, Albert e Alcida Rita Ramos. Parcificando os Brasncos – Cosmologias do contato- norte amazônico. Editora:  São Paulo:IRD Éditions, Emprensa Oficial. Edição: 2002

Jacob, Paulo. Amazonas.Remansos, Rebojos e Banzeiros. Nórdica: rio de Janeiro,1995.

Quijano, Anibal. Colonialidad del poder y clasificación (p.93).In: El giro decolonial: reflexiones para uma diversidade epistémica más allá del capitalismo global/ compiladores Santiago Castro-Gómez y Ramon Grosfoguel- Bogotá: siglo del Hombre Editores: Universidad Central, Instituto de estúdios sociales Contemporáneos y Pontifícia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007.

LA TRONKAL( Grupo de trabajo geopolíticas y prácticas simbólicas). Desenganche – visualidades y sonoridades otras. Quito:  ABILIT,2010.

MIGNOLO, Walter. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber. Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, p. 24-32.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena, v. 13, n. 29, p.11- 20, 1992.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade, poder, globalização e democracia. Novos Rumos, v. 37, n. 17, p. 4-28, 2002.

WALSH, Catherine. La educación Intercultural em La Educación. Peru: Ministerio de Educación, 2001.

 WALSH, Catherine. ¿Son posibles unas ciencias sociales/culturales otras? Reflexiones en torno a las epistemologías decoloniales. Nomadas, n. 26, p. 102-113, 2007.

 

* Maria de Nazaré Cavalcante de Sousa é doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Des)fazendo (o) teatro. Sobre a experiência do fazer online

por João Veras*

reflexão crítica a partir da peça-filme Desfazenda: me enterrem fora desse lugar, do coletivo O Bonde, e da peça online Pessoas Perfeitas, dOs Satyros, produzida no contexto da oficina olhar a cena – Laboratório de Crítica Teatral, conduzida por amilton de azevedo no mês de agosto de 2021 de forma virtual no Sesc São Caetano. sete textos das pessoas participantes da ação inauguram a série vozes.

 

Um dia eu estava meio que distraído com essa vida de então quase isolado; aí lembrei que havia planejado assistir a peça Desfazenda – me enterrem fora desse lugar, do coletivo O Bonde (SP). Imediatamente entrei no site da Sympla e comprei o ingresso. Na hora marcada, acessei o YouTube no endereço indicado, segui as orientações, sentei e comecei a assistir ao espetáculo – que começou sem atraso! Semanas depois, também em casa, fiz o mesmo para assistir a outro espetáculo: Pessoas Perfeitas, da companhia Os Satyros (SP). Desta feita o acesso foi pelo programa de videoconferências Zoom.

Essa descrição de quase intimidade caseira tem razão aqui, pois pretendo refletir, pelo olhar de um espectador comum que sou, as duas experiências dentro de um contexto da relação teatro e internet e, com isso, da cena e do espectador, pelas quais a atividade teatral tem sofrido (no bom sentido) algumas mudanças – para alguns problemáticas e determinantes, para outros nem tanto. Quero meter minha colher nesse angu.

Nos dois casos, como prefiro, assisti às peças sem nada saber a respeito das suas dramaturgias. Gosto de ir procurando saber na hora, de ir aventurando minhas percepções, de ir buscando entender o que se passa no exato momento da encenação, de ir vivendo o espetáculo durante o tempo de sua encenação. Também não busquei, antes de assistir, informações nas fichas técnicas. Optei por esperar os seus finais para conferir. Prefiro ir às cegas guiado pela encenação viva que ocorre em tempo real (no caso de Pessoas Perfeitas). Este foi o meu modo de recepção das obras, desta feita “mediada” pela internet. É por onde se manifesta o produto da minha experiência perceptível.

Daí, o mundo a partir de agora é de surpresas. Vamos começar por Desfazenda. Vi, de primeira, que não se tratava de um drama, na sua forma clássica, aquela narrativa linear com os seus personagens em corpo, fala e ações se duelando em cena até o desfecho final esperado ou não pela plateia. Sem perder a perspectiva dramática, no sentido de uma trajetória focada em conflitos não exatamente encenados, mas narrados, percebi um formato centrado nas falas e posições cênicas simétricas dos quatro atores (três homens e uma mulher, todos negros). 

Ailton Barros, Filipe Celestino, Marina Esteves e Jhonny Salaberg: O Bonde / foto: José de Holanda

São relatos de memórias, escritos de diários, mas também manifestos usando levadas de falas e de poemas falados, como visto em slams, ou cantados numa definida rítmica para as bandas do rap, do hip-hop. Vi também que o tema central da peça gira em torno da questão do racismo. Da condição negra. Da história da escravidão no Brasil, uma das inúmeras particulares. Disso tudo que é dor e que ainda não acabou. 

Mais especificamente (isso só soube no final) dos relatos a respeito de crianças negras escravizadas no interior de São Paulo envolvendo a igreja, o poder político aliado ao nazismo – no que resultou numa montagem teatral livre, escrita por Lucas Moura e dirigida por Roberta Estrela D’Alva, a partir do documentário Menino 23 –  Infâncias Perdidas no Brasil, de Belisário Franca.

Então. Devo dizer agora o que será determinante para as próximas linhas. Confesso que esta foi a minha primeira experiência como espectador de teatro gravado (caso do Desfazenda) e também do ao vivo online (caso do Pessoas Perfeitas) – ou seja, de assistir teatro em casa, como se assiste filmes e programas de TV. Este fato determinou já ali a minha condição de espectador e as minhas escolhas quanto ao que observar, dar mais atenção, selecionar a respeito do que falar diante do que assistia. 

Confesso que não foi a dramaturgia o que me prendeu e, por isso, não será a respeito dela o que aqui vou falar. Não por vontade. A distração em relação a ela foi acontecendo durante o espetáculo. A atenção estava voltada para a plataforma e como a experiência cênica se relacionava nela, com ela, a partir dela. É que fui levado a me perguntar sobre se o que eu estava assistindo era teatro ou cinema, posto que teatro gravado, aquele ali que eu estava assistindo, carregava muito da técnica de se fazer e se mostrar cinema. 

A indagação se tornou norma no meu olhar. Desviou-me do texto. Não totalmente. O texto ia e vinha. A estética da montagem e seus elementos também. Mas a base de minhas observações centrava-se sobre a forma do que via na tela. Aquilo era teatro filmado ou cinema teatralizado? Eram as duas coisas juntas? Se isto é possível? E o que eu via não era cinema, nem era teatro assim “puro” como conhecemos? Também não era teatro filmado, tampouco filme teatralizado? Acho que assisti algo novo, algo que nasce e se desenvolve frente aos meus olhos. Essas questões me ocupavam enquanto a peça/filme se desenrolava.

A dramaturgia se desenvolve – isto parece evidente – em uma caixa cênica, portanto em um espaço teatral e também dramatúrgico (claro! claro?), como classicamente o conhecemos com as suas duas paredes laterais (que não estavam expostas, mas imaginadas), e as paredes de fundo e frontal, pelas quais as câmeras, e não a minha presença como espectador, captavam a atuação dos atores, a dramaturgia, enfim. 

Mas as paredes sumiram na medida em que os atores eram captados por câmeras laterais,  diagonais e mesmo frontais. Assim, sem parede, tudo parecia se encontrar sem lugar. Tudo parecia ser filmagem. Não só por isso. Passei a ver cortes, planos, enquadramentos, zoom, focos, duplicação de imagens, transposição de cenas, captação das falas por microfones, imagens de fotografias em slides. A última cena é literalmente cinema com imagens externas de mar, céu e tudo. 

Frente a isso, não poderia deixar de ver um montador em sua mesa dando forma a tudo aquilo. Enfim, passei a ver cinema. E porque não seria teatro? O teatro não se caracteriza – exatamente o que o difere do cinema – por ser uma encenação ao vivo num contínuo em tempo real e a presença diante dos atores de uma plateia? 

Mesmo não sendo ao vivo, cabe alterar, numa mesa de montagem, o espaço cênico em todos os seus movimentos etc? Montagem em mesa, dramaturgia gravada, ausência de atores e público num único espaço e no mesmo momento ao vivo combinam com teatro?

Frame de “Desfazenda”

Voltemos um pouco para a rotina do público. Falar da minha condição também. Há de se considerar que assisti à obra sem precisar sair de casa, guarnecido de toda comodidade que posso ter, mas também com as possíveis adversidades e imprevisões próprias de quem reside em uma casa. Tenho animais, pessoas da família, barulho de automóveis vindo do lado de fora, chegada de visita no aqui do agora, etc. Posso também assistir de novo o espetáculo que, por estar gravado, será exatamente do mesmo jeito que assisti, como um filme. Tudo isso pode não ser determinante, mas engrossa o caldo da diferença.

É patente o quanto que a pandemia empurrou a arte para a internet. E o teatro entrou ainda mais de cabeça no mundo virtual, no mundo digital, no mundo online. Novos são os vocabulários, novas são as gramáticas de experiências tecnológicas antes não provadas. Vem se experimentando diversas formas inclusive bem diferentes daquela que acabo de relatar. É o caso do segundo espetáculo que assisti – Pessoas Perfeitas da companhia Os Satyros, com dramaturgia de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez e direção geral deste último. E o que vi? Várias personagens – tipos marginais/marginalizados – acontecendo em cena por seus conflitos, por suas dores que se entrelaçam e se identificam, dando ao espectador a experiência das suas visibilizações como humanos. A condição humana em profundidade. Belas interpretações. Um carrossel de imagens, estranhas imagens ao fundo de atores e atrizes firmes, majestosos, impávidos.

Da mesma maneira como em Desfazenda, em Pessoas Perfeitas fui envolvido pela surpresa da forma, pela novidade do meio pelo qual o teatro chegava a mim em casa. Naquele instante vivia mais a possibilidade – que se realizou ante meus olhos – de se manter a essência da conexão tão cara ao teatro que é a sua relação ao vivo com o público. A que tem se sustentado pela presença coeva da cena em ação e o público, ambos em um mesmo espaço/tempo. O que não vi – porque de fato não acontece – em Desfazenda, que assisti no YouTube. 

Em Pessoas Perfeitas a plataforma utilizada é o programa de videoconferências Zoom. Por ele, os atores e os espectadores estão ao vivo presentes ao mesmo tempo e em um mesmo espaço comum, à vista de todos (quando ligadas suas câmeras) e não-físico. Eles estão em um momento real não só, de um lado, encenando e, de outro, assistindo, mas interagindo – inclusive dentro do espaço dramatúrgico. 

Os Satyros em “Pessoas Perfeitas” / imagem: divulgação

É mais uma forma de fazer teatro. A dos Satyros não abre mão da presença ao vivo e da interação. Nesse sentido, há um momento metateatral em que um dos atores pede à plateia que responda à saudação de boa noite que virá de uma das personagens, devendo para tanto cada um dos espectadores ligar o seu áudio, responder à saudação da personagem e depois imediatamente desligá-lo. O que passa a acontecer em vários momentos até o final da peça, quando tal interação envolve os demais personagens. Aqui o teatro propõe a interatividade, dar um passe orientado ao espectador para que este adentre, de alguma forma, agora como personagem, na dramaturgia – a voz coletiva do velho coro das tragédias gregas. Tal qual a mais tradicional das dramaturgias.

Isto nos leva a pensar que, com a internet, o sentido único de presença vinculado à ideia de fisicalidade não pode ser mais exclusivo. É possível hoje estar perfeitamente presente com uma pessoa ou um coletivo sem que, com isso, esta presença seja necessariamente física, corporal.

É, de fato, uma experiência nova que não altera a velha. Estou me referindo especificamente a dos Satyros. Com ela o teatro não deixa de ser teatro. Ao mesmo tempo em que todos se encontram corporalmente separados uns dos outros, todos estão juntos. A ideia de presença não perde o seu sentido original. Ao mesmo tempo em que é ressignificada. Ninguém por esta vivência deixa de estar diante do outro, dos outros, de partilhar uma experiência comum no exato momento em que ela acontece, se realiza. Falo de uma realização fática. Todos nós, atores e espectadores, estamos ali vivendo uma experiência de produção dramatúrgica e de acesso a ela que não só é realizada no mesmo espaço (que dão o nome de virtual) e ao mesmo tempo, mas em plena interatividade. Isto a mim parecer ser – e é – uma realização real. 

Portanto não pode ser considerado cinema porque o cinema é um produto manufaturado com antecedência para ser mostrado ao público já perfeitamente pronto, acabado. Não há interatividade nesse processo. Nas suas sessões, o único que  comparece é o espectador. Há uma separação entre o fazer, seu produto e o público. No que se aproxima a experiência da peça Desfazenda, onde o que o espectador assiste é resultado do que outrora fora filmado e montado. Nesta prática, o que se vê como resultado é o filme de uma peça original filmada (que para tanto sofre alterações necessárias ao novo meio), portanto um produto reprodutível. É o filme da peça, inclusive porque passou por uma produção de montagem e formatação anterior que é própria do cinema, e pelo qual impossibilita a associação das práticas coevas de apresentar e de assistir temporal e espacialmente copresentemente ao vivo.

Fábio Penna em “Pessoas Perfeitas” / imagem: divulgação

Como compreendo, a experiência dos Satyros é o teatro fazendo uso da tecnologia digital, virtual e online sem deixar de ser teatro enquanto nova composição de fazer e assistir teatro; como uma variação do acontecimento cênico e um novo feitio de interação ator/espectador. Todos esses aspectos de novidade não são suficientes para alterar a ideia de teatro em sua essência, a ponto de confundi-lo com cinema, por exemplo. Portanto, se o teatro sempre foi uma experiência dramatúrgica realizada ao vivo – com a presença coetânea do espectador e dos atores – com potência de interatividade, dentro do mesmo percurso temporal e no mesmo lugar, não tenho como duvidar de que a experiência dos Satyros dá conta disso.

O que quero dizer é que as realizações que acabo de relatar demonstram o quanto a forma de fazer e também de assistir teatro foram alteradas com o advento da internet e seu esplendoroso avanço tecnológico, combinado com uma potência/imposição movida/possibilitada pela vida pandêmica. É certo que a mobilidade no campo da encenação dramatúrgica não é nada de novo. Mudanças vêm acontecendo desde que o teatro é teatro. As práticas online, virtuais e digitais têm as suas especificidades jamais provadas até então no campo cênico. 

Tento constatar aqui que é indubitável que nas duas experiências dramatúrgicas a coisa se move ante os olhos do espectador, da mesma forma que este também passa a experimentar novas formas de lidar com isso tudo. As duas experiências que acabo de relatar são patentemente distintas na forma de fazer e de mostrar. 

É perceptível no caso de Desfazenda a ausência da presença/relação pulsante, dupla e coetânea da de quem assiste com a de quem faz. Por este formato, pelo menos este que o grupo optou em fazer, a experiência dramatúrgica ganha outra configuração, a da espécie que combina as duas linguagens, podendo, assim, resultar numa terceira, de tipo híbrida. No caso de Pessoas Perfeitas não creio que resulte noutra coisa sua experiência enquanto teatro. O que não quer dizer que inexistam alterações no modo de fazer em si. Ali o teatro continua sendo teatro, mesmo que use outro espaço (com as suas evidentes especificidades) para se realizar. 

Quanto ao aspecto estético da encenação, da materialidade cênica, é plenamente visível o quanto ambas as obras continuam provando formas diversas e distintas dentro do contexto do acontecimento cênico, da poética cênica. São duas plataformas digitais (duas novas formas de materialidades) – desta feita fazendo às vezes de espaços cênicos e para além deles, expandindo-os – sobre as quais cada encenador explora e experimenta as possibilidades que se lhes apresentam.

As “limitações” e as liberdades estéticas que estes espaços estranhos impõem, tanto para uma parte quanto para outra, são relativas para o resultado artístico. Nesse sentido, o que a mim parece indiscutível é o efeito disto (no que se desdobra), isto é, a singularidade de cada experiência em si, das duas configurações brevemente examinadas aqui, inclusive em relação àquela outra a qual estamos profundamente acostumados (dogmaticamente ou não), em relação a qual as formas online, virtuais e digitais são capazes de perder ou de ganhar, o que pode sugerir, para o campo estético, simplesmente outras variações do acontecimento cênico, porquanto – será exatamente por isto que – o teatro segue se fazendo. 


João Veras é um artista acreano de Rio Branco. Autor das obras Seringalidade – O Estado da Colonialidade na Amazônia e os Condenados da Floresta (editora Valer, 2017), Minhas Músicas de Invenção – Uma Experiência de Criação Sonora na Amazônia (editora NEPAN, 2019) e A Audiência dos Mortos – Sobre o Colonialismo Cultural no Acre (editora NEPAN, 2020). Contato: joao_veras@hotmail.com

Texto publicado originalmente em (Des)fazendo (o) teatro. Sobre a experiência do fazer online | ruína acesa (ruinaacesa.com.br)