quinta-feira, 21 de março de 2019

EM DEFESA DO ÁLCOOL

Romeu Jobim (1927-2015)

Quando o conheci já se aposentara em seu Estado e fixara residência no Rio de Janeiro. Ali assinava o rodapé de um jornal e, junto ao Parlamento, se credenciara como jornalista político. Consta que, perante o último, também auferia bom dinheiro, escrevendo discursos para Deputados e Senadores.
Seus artigos, além da correção da forma e da elegância do estilo, se caracterizavam pelo ímpeto demolidor. Dele, por certo, não se poderia dizer que, incendiário, se tornara bombeiro. Natural do Amazonas, seus trabalhos literários (era autor de alguns livros sobre a região) ou puramente jornalísticos, segundo um contemporâneo, tinham a força do Rio-Mar.
Era na oratória, contudo, que alcançava os píncaros mais ousados, fosse qual fosse o assunto ou ocasião. Bastava dar-lhe a palavra. Só o ouvi uma vez, confesso. Foi o suficiente, no entanto, para verificar que excedia a lenda. Casava-se a cabocla Nazaré, agregada à família de amigo comum. Não sei se, em cerimônias nupciais, já se disseram coisas tão bonitas.
Li dois de seus livros. A crítica atual os acharia enfáticos e ricos de adjetivos. Mas a verdade é que neles, em linguagem sublime da melhor categoria, encontrei as páginas talvez mais arrebatadoras que já se escreveram sobre a Amazônia. Conseguiu pôr efetivamente nelas toda a complexidade e estranha beleza do Grande Vale.
Em certa fase da vida foi também, segundo seus conterrâneos, um tremendo boêmio, tomando pileques históricos, tais as que aprontou e disse, em discursos memoráveis, sob o efeito da bebida. Terá sido por esse tempo que andou em Rio Branco, deparando-se-lhe, no exílio acreano que se impôs, outro expoente da intelectualidade e da oratória.
Os torneios então travados entre os dois, contaram-me algumas testemunhas, foram o que de mais expressivo já produziu o humano engenho. Se um representava a culminância das montanhas, natural de Minas, o outro era a própria grande planiciária da Hileia. Nas solenidades respeitavam-se: só um dos dois falava, revezando-se. No dia a dia, contudo, e sob o efeito das libações, o confronto era inevitável.
O que mais o singularizava, por ocasião de seus discursos, era a imprevisibilidade, ninguém tendo condições de lhes adivinhar o desdobramento, improvisados ao sabor das circunstâncias. Nunca ia, contudo, além das palavras. Capaz de conduzir multidões aonde quisesse, só as levava ao arrebatamento estético.
Mas o que pretendo narrar, os informes acima não passando de introdução, foi o que aprontou, certa feita, em um congresso contra o álcool, promovido por luminares da Ciência Médica. Deu-se o episódio numa época em que se achava em perfeita e total comunhão com Baco. Nem terá sido por outro motivo que não representava seu Estado no conclave.
Acontece que lá compareceu por conta própria e, antes do encerramento das reuniões, até então revestidas de pleno êxito, pediu a palavra. Queria, com a aquiescência dos congressistas, tecer considerações em defesa do grande réu: o Álcool. Aqueles o desconheciam e a pretensão lhe foi negada, sob o fundamento de tratar-se de um encontro de técnicos.
Insistiu, argumentando que, perante um certame daquela magnitude, havia necessidade de uma discordância, pelo menos simbólica, ao coro de condenações. Afinal de contas, até o mais reles dos bandidos era reconhecido o direito de defesa. Porque o Álcool era o mais reles dos bandidos, decidiu a presidência que o deixaria falar, mas se fosse médico. Provou que era e pôde pronunciar-se.
Foi aí que algo assim como um furacão na floresta ou o fenômeno da pororoca nos grandes rios aconteceu. Subiu à tribuna e, para uma assembleia estupefata, produziu a mais erudita e empolgante conferência em defesa do Álcool que já se pôde conceber, ao término aplaudido de pé e em delírio por todos, inclusive pela mesa diretora dos trabalhos.
É evidente que o congresso não teve condições de prosseguir. Em contrapartida, o orador foi carregado em triunfo e o réu grandemente festejado e servido, sob a forma de drinques, pelos bares da redondeza.


JOBIM, Romeu. Boa tarde, excelência!. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1990. p.111-112

ROMEU BARBOSA JOBIM nasceu em seringal do Acre, em 25 de fevereiro de 1927, filho de Armando de Oliveira Jobim e Francisca Barbosa Jobim. Cursou o primário e o ginásio em Rio Branco e Manaus. Depois foi para o Rio de Janeiro, fazendo o clássico e formando-se em Filosofia e Direito. Redator da Câmara dos Deputados, por concurso, em 1960, integrou a magistratura do Distrito Federal desde 1976. Lecionou, no Rio e em Brasília, Filosofia, Psicologia, História e Português. Iniciou-se nas letras aos quinze anos. Morreu no dia 30 de maio de 2015. Publicou: Justiça: Humor Forense; Em Tom Menor; Pássaros de Meus de meus bosques; Amanhã Cedo é Primavera; Cantos do Caminho; e Entre Crônicas e Contos.

quinta-feira, 7 de março de 2019

O HOMEM DA GUARIBA PRETA NO VOO DE TARAUACÁ À SENA MADUREIRA

Mário Maia (1925-2000) 


No “aeroporto” começou a aglomeração como era de costume. E como sempre, o médico era o último a chegar, despedindo-se sempre às pressas, muitas vezes entrando no avião com os motores ligados. É que mesmo no caminho do campo de aviação, ainda o chamavam aqui e acolá, levando-o a entrar na casa de um e de outro, para uma receita, uma palavra, uma orientação, uma pergunta, enfim, algo que ficasse ecoando em seus ouvidos, como um lenitivo pela ausência completa de um médico naqueles confins. Desta feita não foi diferente; o avião Douglas, da FAB, fazia a curva para a tomada de pista e o coitado do médico, suado e nervoso, esforçava-se para chegar com tempo ao campo, com o paciente que achara conveniente levar para Rio Branco, a capital do Estado. Era um seringueiro, morador no alto Tarauacá, que caíra em uma armadilha para capivara, sofrendo um grave ferimento ao nível do terço superior da perna direita, com fratura cominutiva dos ossos da perna e considerável perda de substância das partes moles. A ferida estava altamente infectada e oferecia um aspecto desanimador, com aquelas carnes estraçalhadas, purulentas e necrosadas; fermentando; putrefatas. Havia nove dias do acidente, quando chegou em Tarauacá, em canoa a remo mocotó. O doutor Melinho nesta ocasião, encontrava-se em Cruzeiro do Sul, a cidade mais ocidental do Brasil, distante uma hora e cinquenta minutos de voo normal, em avião Douglas, a oeste de Tarauacá. Regressava da Vila Japiim, pelo rio Moa, tributário do Juruá, em um casco cedido pelo seu amigo Ário Rosa, juntamente com um bom “cabra” remador, o qual, no banco da frente batia o remo sem descanso, enquanto que, no banco da popa, o médico ajudava, ao mesmo tempo que pilotava a pequenina embarcação de duas pessoas, pelos meandros e pausadas daquele rio. Por ser à noite, mais parecia um vale de breu por entre as matas e o céu escuro lá em cima. Aqui e acolá, batiam-se em troncos fincados no leito do rio ou atravessados com suas galhadas banhando-se nas águas; resultado permanente do trabalho de erosão, que as águas inexoravelmente cavam nas margens, desbarrancando as terras e levando com elas, suas árvores seculares, que se vão enganchando pelos barrancos, conforme a força das águas, forte, nas enchentes das épocas das chuvas de novembro a março, ou branda, nas estiadas de junho a outubro.
Ao chegar da vila e subir o barranco, já agora do rio Juruá (pois que o Moa é seu afluente), no topo da ribanceira onde começa a cidade, havia amigos, a espera do médico que ficara de chegar de dia e já eram 10 horas da noite. Temiam por algum acidente. Porém, as 9 horas de viagem eram mesmo decorrentes das lonjuras dos meandros do rio, que tantas vezes se dobra sobre si mesmo, como fazem todos os rios da margem direita da Grande Calha Mater da Amazônia. Havia um telegrama vindo pelo Farol do CAN, a fim de proceder uma amputação, dizia o signatário, o enfermeiro seu compadre Aldérico.
Felizmente, no dia seguinte era dia de avião de carreira, (Cruzeiro do Sul), e lá se foi o doutor Melinho em um de seus incontáveis voos como ave de arribação, de uma para outra das sete cidades do Acre, muitos, como daquela vez, para prestar socorros urgentes a alguém. Encontrou o enfermo em péssimo estado geral. Vendo sua perna, examinando-a, logo raciocinou; se havia, após nove dias, vitalidade na extremidade distal, para além das lesões; se apesar daquele aspecto feio e impressionante que levou logo o enfermeiro, o padre e o prefeito a pensarem na amputação do membro acidentado, havia circulação suficiente nos dedos dos pés, era porque, pelo menos, um ramo principal da artéria poplítea, estava íntegra, permeável, responsabilizando-se pela irrigação e vitalidade dos tecidos distais com o necessário afluxo sanguíneo, acompanhado de retorno venoso pelo menos suficiente. Desta apreciação, a sua decisão foi a de fazer um tratamento conservador, pelo menos enquanto as condições de circulação no membro afetado lho permitissem. Não procederia a amputação. Esta hipótese ficaria para uma fase posterior se sobreviessem complicações isquêmicas, na evolução do processo de eliminação orgânica dos tecidos macerados e necrosados. Tentaria salvar a perna do enfermo, para uma plástica cirúrgica-ortopédica-reparadora ulterior.
Sob raque-anestesia, na qual era mestre, procedeu uma rigorosa limpeza cirúrgica da região afetada, extraindo inúmeras esquírolas de vários tamanhos, juntamente com incontáveis caroços de chumbo deformados e fragmentados de permeio com partes moles, sem vitalidade, em processo de necrobiose. A tíbia sofreu uma perda de substância muito extensa, deixando uma considerável falta de elemento ósseo, entre os fragmentos proximal e distal; o perônio sofreu fratura simples em dois lugares. Com esse arrazoado durante o ato cirúrgico de limpeza da ferida, era natural que não pudesse fazer um prognóstico animador, do ponto de vista funcional e estético. Entretanto, compreendeu que seria muito, se se conservasse aquela perna viva e a recuperasse, para que no futuro pudesse encaminhar o paciente a algum colega seu, lá do sul, no Rio de Janeiro, a alguma enfermaria de traumatologia, para lhe restabelecer a função de andar.
Após o curativo, o doutor Melinho imobilizou o membro do paciente, envolvendo-o completamente com ataduras gessadas, que encontrou em uma caixa no almoxarifado do Hospital, deixando à vista, apenas as extremidades dos dedos, para o devido controle da circulação, pela observação diária da permeabilidade capilar e a consequente coloração rosada dos tecidos e do leito subungueal. Antibiótico diário e atenção rigorosa. Enquanto isso, a secreção soro-sanguinolenta foi pouco a pouco infiltrando-se no gesso e com o passar dos dias, a cor branca do gesso passou a amarelo rajado e úmido, exalando a cada dia mais forte, um cheiro fétido e nauseabundo. Todos os dias, pela manhã e à tarde, invariavelmente, lá ia o médico olhar e apertar suavemente as extremidades dos dedos do paciente, para verificar o estado da circulação, além dos ferimentos, e, portanto, vida naquelas partes, assegurando-lhe por enquanto, a conservação daquele segmento do corpo. Não havia mais ataduras gessadas para substituir aquelas fedorentas. Os dias se passavam. Era pleno período de chuvas fortes, frequentes, diárias, às vezes duas, três vezes por dia. Passavam-se semanas assim. É o que na região se costuma chamar impropriamente de inverno, muito embora ocorra no fim da primavera e durante todo o verão do ponto de vista astronômico, pois nesse período, em verdade, o sol já atravessou o equador celeste, desde 22 de setembro e caminha para o solstício do verão no trópico de capricórnio, a 23 de dezembro, pico do verão no hemisfério sul. Mas, nas proximidades do equador, na zona tórrida, esses fenômenos meteorológicos de frio e calor, chuva e estiagem, trovoadas e silêncios, tempestades e calmarias, são denominados diferentemente do que se convencionou chamar-se estações do ano, que decorrem da inclinação do eixo da terra sobre o plano de sua órbita. Aqui, no Acre, quando chove (primeiro trovoadas em fins de setembro e no mês de outubro; primeiras chuvas de novembro; muita chuva em dezembro, janeiro, fevereiro e março), o povo chama de inverno; quando não chove, isto é, maio, junho, julho e agosto (em abril e setembro pode chover eventualmente), o povo chama de verão. É interessante de se registrar ainda que, nos meses de junho e as vezes início de julho, frentes frias vindas do polo sul, sobem bordejando a oeste de nosso planalto central, numa faixa de vários quilômetros de largura, estendendo-se entre o nosso altiplano e a vertente oriental dos Andes. Essa faixa fria, de direção Sudeste-Noroeste, alcança o Acre pelo sul, soprando um vento frio, de matar boi no campo, acompanhado de garoa. Às vezes dura vários dias, outras dura pouco, porém, as manhãs amanheciam muito frias. Há intermitência desse fenômeno nesses dois meses, que são os mais amenos, durante os quais, se chover, pode-se considerar que houve milagre. Pois bem, mesmo assim, o povo do Acre considera esse período verão, porque não chove. Ratificando: quando chove, é inverno, quando não chove é verão, embora no primeiro caso, o sol esteja no hemisfério sul e no segundo, ande pelo hemisfério norte, após o equinócio do outono. Nessa época, era dezembro e chovia todos os dias. Há três semanas que o avião não descia, em Tarauacá. Por isso, o doutor Melinho estava aflito naquele dia e ajudava a carregar, apressadamente, a maca improvisada, onde se estendera o enfermo, rumo ao campo de aviação para não perder aquela oportunidade da descida do avião do CAN. Com aquele “inverno” forte daquele jeito, em pleno dezembro, sabia lá quando o campo, que era alagadiço, ia se oferecer para um novo pouso?
O comandante do avião, sabedor do drama que estava ocorrendo ali, naquela cidadezinha, por intermédio do Carrapicho, zelador das cousas do CAN, no “aeroporto”, teve paciência e esperou o médico chegar com seu enfermo.
Os aviões da FAB, no Acre, os que fazem o Correio Aéreo Nacional (CAN), além de ônibus aéreos populares, são verdadeiras ambulâncias, pois, transportando correspondências, valores, documentos oficiais, autoridades, funcionários e povo em geral, transportam prioritariamente enfermos, dos lugares menos assistidos, para os de maiores recursos, e, não raro, do Acre, para o Rio de Janeiro.
Dentro do avião, a poucos minutos de voo, o fedor exalado da perna de Joviniano era quase insuportável para os demais passageiros. As narinas do médico, entretanto, já se haviam acostumado aquele odor.
Com o balanço do avião, em voo de baixa altura, devido ao mau tempo e mais o mau-cheiro da perna do enfermo, vários passageiros começaram a sentir-se mal e vomitavam diretamente no chão metálico, porquanto haviam terminado as sacolas apropriadas para receber as rejeições do estômago.
Um sujeito alto e meio atlético, de cabelos compridos e despenteados, que andava fazendo teatrinho de fantoche pela região, apresentando os personagens de trapo, do escondido por trás de um cobertor de flanela, sujo e encardido, entrou no avião acompanhado de uma macaca preta magra, amarrada pela cintura com os membros compridos, que pareciam estilizados. Com o ronco dos motores, o animal entrou em pânico e começou a gritar estridentemente, com os dentes arreganhados e agarrada solidamente com os pés, os braços e o rabo, ao corpo do seu dono e protetor, parecendo uma enorme aranha caranguejeira a lhe apertar como um polvo. Daí a pouco, o comandante saiu de sua cabine e veio juntar-se aos passageiros, sentados uns de frente para os outros nos bancos laterais de alumínio. Vendo a confusão reinante, as reclamações, o barulho dos comentários em coro dos passageiros, junto com os gritos da macaca, aproximou-se do homem para ajudá-lo a acalmar o ânimo nervoso da bicha. Tentou desvencilhar o “artista” do animal com a intenção de confiná-lo lá atrás no privativo do avião. Porém apavorado, o nosso ancestral não largava seu par por nada, e, cada vez mais, grudava-se de encontro ao seu dono, ameaçando morder o comandante. Nesse ínterim, o avião fazia uma grande curva e passava por algumas nuvens pesadas para ganhar mais altura e se livrar dos sacolejos que estavam deveras incômodos. O aparelho balançava-se, jogando-se em várias direções, bruscamente, como um calhambeque em estrada com costeletas de vaca. O homem que estava de pé atracado com a nossa inferior irmã, desequilibrou-se e caiu por cima do comandante que, sem querer, complicava as coisas, ao procurar ajudar. A guariba, de medo, cagou-lhe a roupa toda, com umas fezes amareladas e escuras, semi-pastosas, e em grande abundância. Parecia haver tomado uma lavagem, de tanta porcaria que expeliu. Acho que havia comido muita banana azada na véspera da viagem; não era possível! Os três, isto é, o homem da macaca preta, o comandante e a própria guariba, formaram no centro do bojo do avião, um bolo único e desequilibrado balançando-se em várias direções, cada qual dos dois homens com uma das mãos segurando no cabo de aço que se estende horizontalmente, ao longo do teto da nave, para servir de apoio aos que viajam em pé, enquanto, com a outra, procuravam se equilibrar, apoiando-se uns nos outros e na macaca, que, cada vez gritava mais, enquanto o avião se sacudia todo. O chão de alumínio estava lubrificado pelos vômitos e eles escorregavam como bêbados. Bamboleavam desordenadamente, sem conseguir equilíbrio. O comandante começou a soltar impropérios. A cara aflita do homem desculpando-se, mais os gestos cínicos e despudorados da guariba, de mistura com aquela imundície que se improvisou de repente dentro do Douglas, criaram um quadro dramático e ao mesmo tempo cômico, causando hilaridade até ao advogado, que, sentado junto ao médico, parou de vomitar por alguns instantes, para rir também. Por fim, com os sacolejos intermináveis da turbulência, desprendeu-se a argola de um dos extremos do cabo e o monte de gente e bicho rolou por cima das pessoas que se apinhavam sentadas de costas para as escotilhas. O bolo foi parar aos pés de Joviniano que se encontrava deitado na maca, estendida no chão do avião, entre os bancos. Umas mocinhas nervosas, gritavam destemperadas pela confusão; uns estudantes gargalhavam e vomitavam ao mesmo tempo; a guariba guinchava. Todos acabaram por se distrair com os solavancos do pássaro metálico, que os arrebatava em seu bojo atravessando as nuvens. Restabeleceu-se o equilíbrio e o avião já não mais jogava. A ordem voltou a reinar. Livrando-se da refrega, o comandante, o homem cabeludo e a macaca preta, os três igualmente lambuzados de fezes e vômitos, conseguiram dirigir-se para as traseiras do avião, em direção ao banheiro; o primeiro, recriminando o segundo, por conduzir aquele animal no avião; o segundo desculpando-se do acontecido, fora do alcance de sua vontade, pois a macaca em terra era tão mansinha! Dirigiram-se ao reservado para se limpar. Lá, deixaram a macaca sozinha, medrosa, aflita, trancada, esgoelando-se em gritos espavoridos, incompreendidos pelos humanos. O comandante, durante a confusão, havia pensado em deixá-los em Feijó. Porém quando passou o temporal, eles já estavam bem além. Sobre Feijó, chovia a cântaros e o avião passou direto a Sena Madureira, o próximo pouso, se não estivesse chovendo, informou o copiloto.
Há uma característica curiosa no Acre desses tempos, nascida, por um lado, das dificuldades nas comunicações fluviais distantes, vagarosas, precárias, obsoletas. Por outro, devido à absoluta falta de comunicação terrestre que interligassem os municípios. Esta característica é a existência de campos de aviação em todas as setes cidades sedes dos setes municípios, em que se divide politicamente o Acre. São pequenos campos de pouso, variando de 800 à 1.200 metros de extensão, por 60 de largura, construídos em um pedaço de terra plana, geralmente numa várzea de pouca drenagem e escoamento das águas, próximo à zona urbana. Alguns desses campos, como os de Sena Madureira, Feijó e Tarauacá, são praticamente dentro das cidades, numa lingueta de terra formada pela curva do rio, entre dois barrancos. Fazem parte não só de suas paisagens fisiográficas, como, essencialmente, influenciam de modo ativo e decisivo na vida social, política, econômica e até mesmo cultural, desses grupos humanos que se desenvolveram no período áureo da borracha, ao longo dos rios: – Acre, Iaco, Purus, Caeté, Macauã, Muru, Tarauacá, Envira, Juruá, Moa e seus igarapés.
É que, nos dias de avião, um grande número de pessoas dirige-se invariavelmente ao campo de aviação para ver o avião passar. O avião, no Acre, tornou-se o meio mais eficiente de comunicação e transporte e assim o será, ainda, por longos anos, até que o progresso venha a rasgar o seio virgem da floresta, implantando estradas que permitem o intercâmbio permanente entre as cidades.
Encurtando com suas possantes asas serenas as distâncias que se interpõem aos núcleos populacionais, lá se vai a grande Águia metálica riscando o azul solitário do firmamento amazônico, tendo o infinito do céu por cima e por baixo o verde sem fim da floresta. Em seu bojo agita-se a vida regional, palpitando em suas singularidades transportando-se daqui para ali, num vai e vem constante de gente sã ou doente, bichos, pássaros, frutas, cereais, móveis diversos, maquinarias, combustíveis, remédios, roupas, mensagens, recados, lembranças, lágrimas, adeuses, enfim, um sem número de pessoas, animais, coisas e sentimentos, em um contínuo movimento de translação. Pode-se dizer que o avião é, para o Acre, o que são os ônibus que ligam as grandes cidades do Sul, a seus subúrbios pobres ou vilarejos. Dentro dele, transportam-se de tudo. E, se é assim, na importância dessas variedades a sua existência se exalta, no transporte de enfermos. É no grande papel de ambulância voadora, que o Douglas e Catalinas se realizam em sua plenitude, como veículos de uma epopeia silenciosa e quase anônima, dos pilotos do Brasil, quer civis, quer militares na conquista de nosso interlande, para a integração do Centro-Oeste e do Setentrião, abandonados em suas majestáticas grandezas e incalculáveis riquezas dormitantes.
Quase que permanentemente, dos sete municípios do Acre, em quatro não existem médicos, nesses tempos do doutor Melinho. Então os que adoecem encontram no avião e na compreensão de suas tripulações, o socorro mais eficiente, transportando-se à capital, onde são atendidos conforme as necessidades e os casos. Nesses misteres não se fazem distinções entre a aviação civil (Cruzeiro do Sul e VASP) e a militar. Tanto as duas primeiras como o Correio Aéreo Nacional (CAN), da Força Aérea Brasileira, multiplicam-se em esforços e boa vontade, para minorarem um pouco as necessidades e ansiedades dos aflitos. Não raro, os pilotos permanecem por longos minutos e até horas com o aparelho no solo, aguardando a chegada de um doente que está sendo transportado em rede, cadeira ou mesmo nos braços de alguém; é um parto complicado, uma criança com coqueluche, é um “empambado” com sezão ou verminose...


MAIA, Mário. Rios e barrancos do Acre (romance). Niterói: Prensa, 1968. p.147-157

sexta-feira, 1 de março de 2019

NOTAS A LÁPIS

José Potyguara (1909-1991)

Hugo Carneiro
Terça-feira passada, 13 de maio, 42º. Aniversário da sanção do projeto que, sob número 3.353 e com a denominação de Lei Áurea, extinguiu a escravidão no Brasil, tive ocasião de assistir um espetáculo dos que mais de perto falam à nossa alma de patriota.
De acordo com resolução governamental recentemente baixada, o exmo. sr. dr. Governador do Território, em circular dirigida a todos os srs. Intendentes Municipais, recomendou fosse, naquele dia içada, pela última vez, e em seguida arquivada a bandeira acreana.
Embora à primeira vista, possa parecer um desamor às nossas tradições, o gesto de s. excia., após exame mais detido, apresenta-se acompanhado do mais patriótico intuito, qual seja, a unificação da Pátria comum e a extinção do injusto sentimento de regionalismo. Espírito culto e inteligente a serviço do mais acrisolado patriotismo, compreendeu, com acerto, o dr. Hugo Carneiro a sem razão da existência de bandeiras regionais e o prejuízo daí advém à fraternidade brasileira.
– Porque uma bandeira para cada Estado, se todos são células do mesmo organismo, fibras do mesmo coração?
– Porque conservar diversos símbolos dentro de uma mesma pátria se, na hora da refrega, marcharemos todos, desde o gaúcho dos pampas sulistas ao filho das florestas do norte, em defesa do glorioso Pavilhão auriverde?
Seria bom que todos os presidentes e governadores das diversas unidades da Federação seguissem o exemplo do jovem estadista que dirige os destinos do Acre, abolindo as bandeiras e os hinos estaduais. Se a pátria é uma única e indivisível, um só deve ser o símbolo.
Foi com estes pensamentos que subi as escadas do Paço Municipal, à tardinha de terça-feira, última, levado pela curiosidade de assistir aquele inédito espetáculo. Quando cheguei, já encontrei lá diversas autoridades convidadas para solenizar o ato. Em frente ao edifício, estava postado um pelotão do destacamento policial e, mais adiante, a banda municipal executava número de seu repertório.
A tarde estava lindíssima; foi aquele um dos mais belos ocasos que já me foi dado presenciar. Contrastando com o tom azul claro de todo o céu, para o lado do poente, colunas de pesados nevoeiros, bronzeados pelos raios do astro rei, refletiam em cambiantes irisados sobre as águas do Tarauacá que deslizavam num murmúrio suave como uma carícia. Parecia que a natureza se havia vestido de galas, ostentando os seus ornamentos mais caros para assistir aquela última homenagem à bandeira acreana.
Às 18 horas em ponto começou a solenidade com o arreamento da Bandeira Brasileira, aos compassos marciais do Hino Nacional. O pelotão apresentou armas e, por alguns minutos, ficamos todos em religioso silêncio, olhos fitos no símbolo da Pátria, corações unidos pelos mesmos sentimentos de fé, de amor e de esperança no futuro do Brasil!
Em seguida foi içada a bandeira acreana. Ostentando os seus dois triângulos separados por uma diagonal a linda bandeirinha, obediente aos impulsos da driça, subiu rápida e, ao atingir o topo do mastro, desfraldou-se por alguns instantes como que abençoando, pela última vez, os filhos desta gleba heroica conquistada pela bravura de indômita de Plácido de Castro.
Da sacada da janela, onde me achava, avistei, no meio da rua, um grupo de mimosas senhorinhas, todas acreanas, que ali se achavam, qual lindo ramalhete de perfumadas flores, ornando aquela última homenagem à bandeira da terra natal. E, cá de longe, pude divisar nos semblantes daquelas jovens o misto de tristeza e de saudade que lhes ia n’alma ao verem pela última vez o símbolo do berço querido.
Fiquei sinceramente comovido e tive ímpeto de lhes dizer as seguintes palavras de consolação: – Minhas caras patrícias, compreendo e partilho as vossas mágoas. Mas não esqueçais que, antes de serdes acreanas, sois brasileiras. Confie no futuro. A bandeira acreana desapareceu, porém a estrela encarnada que nela simbolizava o atual Território do Acre há de reaparecer um dia na esfera azul do Pavilhão Nacional, para representar o futuro Estado do Acre, figurando ao lado da constelação do Cruzeiro, alva e brilhante como as suas 20 irmãs que simbolizam os Estados da Federação.
E, enquanto eu assim pensava, a bandeirinha foi descendo lentamente, aos últimos ecos do hino acreano, a linda e inspirada composição do maestro Mendo Luna que, também naquela tarde, foi executada pela última vez...

Poty
Seabra, 16 – Maio – 1930

A REFORMA, Tarauacá-AC, 18 de maio de 1930, Ano XIII, N.602, p.1

Nota 1: “Notas a lápis” foi uma série de crônicas escritas por José Potyguara publicadas no jornal A REFORMA, de Tarauacá, na década de 1930.
Nota 2: Hugo Ribeiro Carneiro governou o Território do Acre de 15 de junho de 1927 a 3 de dezembro de 1930.