sábado, 28 de setembro de 2019

POEMAS DE WILSON ROCHA

Wilson Rocha por Pancetti; livro A forma do silêncio; Wilson Rocha em desenho e colagem de Lygia Sampaio.
MEMORABILIA

Os deuses antigos, os deuses da floresta,
davam a tudo um sentido e a todo ser um destino.
A alma criadora dos deuses estimava
as fontes que as donzelas acolhiam
e os seus longos cabelos derramados
ao regozijo do vento oferecia.
Mas as dádivas dos deuses são precárias.
A primeira imagem da vida no tempo
ao negro sol da morte está unida, tal como
o ter a água uma essência musical 
e terem as pedras a forma do silêncio. p.13


VENUS VICTA

Amata tantum quantum amabitur nulla

Vinha do sonho o teu ser ferido de desejo
e o amor era música ao longo dos teus dedos.
O amor inglório e a vida
que mal contém o sopro da morte.
Agora, as palavras não exprimem o teu nome
nem o vento conhece os teus cabelos.
Só as matérias frias
da água e da noite te possuem.
Só nas formas do sonho é que vives.
E a vida é exílio. O sonho é que importa. p.20


MORS ULTIMA RATIO

A plumagem do pássaro é de um tecido exíguo
e breves são dos frutos as cores gloriosas.
As flores cedo amanhecem para a morte
e as imagens da beleza tristemente se apagam.
Tecendo o fim que a todo sonho é imposto,
o cerco do tempo tece o vazio, o nada
– o vão espaço e a vida perecível. p.23


VOLUPTATIBUS PERFLUENS

A mão tenho metido no teu seio
Camões

Rapariga das colinas, amada entre as cabras
que a longa memória dos deuses não esquece.
Os frutos cantantes, os cabelos e os seios
e seus abismos brandos florescendo.
Com o sol dos dias longos e os pássaros
dava-se o seu ser como uma fonte.
Primavera de vinho e de loucura
era a respiração e o calor de sua nudez,
como o virtuoso Catulo celebrava.
E a nuvem do púbis tinha a cor da rosa-chá,
ó rapariga das cabras, papoula de fogo.
Seus murmúrios de prazer compunham eternidades
(e a nossa fortuna durou um breve tempo)
que a longa memória dos deuses não esquece. p.25


FLOS FLORUM

Torso ágil, corpo grácil e volutuoso
– qual uma donzela de Correggio –
as pernas longas e doces
o alongado do prodígio do colo
e a dignidade de fruto
do contorno dos seios.
O desenho extenuante dos quadris,
o ventre em delírio, nunca saciado,
e as coxas e o esplendor do púbis,
o negror de sua flor, flor das flores. p.30


MORTIS CERTITUDO

O tempo é rude e a vida escassa.
Contudo, nosso é o ar luminoso,
nossos os brilhantes frutos
da terra do paraíso.
Doce é a áspera canção
que a carne em nós esplende.
Ó tu, que é fresca e verde,
amemos, amiga breve, loba e pomba,
amemos, companheira efêmera.
Tudo quanto somos é precário
e qual o tempo passamos,
como os pássaros e as flores
e os rebanhos que vimos.
E como os bosques e os castelos
que os outros ergueram, cairemos,
jazendo, como os brilhantes frutos,
na terra do paraíso apodrecidos.
Na terra, onde a ondulante relva
festejará o nosso esquecimento. p.44


FLORES DIESQUE

a Marilene Martins

Abertos dias, luminosas flores.
A distância do pássaro, nos azuis da tarde,
e a doçura da flor, na eternidade.
Na hora breve tê-la n’alma – que
o que vale à flor efêmera é o ser bela.
Vai-se com o vento o esplendor do dia,
e esse viver da flor é sonho e tempo.
De muitos sonhos juntos sois tecidas, flores,
da beleza que não persiste, só e pura,
desse estado frágil da vida e sua frescura
que dos dias é o fluir ligeiro e vão. p.48


TE CANTABO, FEMINA

Lingua sed torpet, tenuis sub artus flamma demanat...
Catulo

Saber efêmera e bela a criatura
e tomar-lhe dos cabelos a brandura.
Cantar a sábia adolescência e sua glória
quando nos ritos de Vênus refloresce.
Quando o desejo faz arder seu bosque
e nos olhos seus responde o lume.
Não há trevas que apaguem a brasa e a chama
e entre colunas o templo celebra a festa de Adônis.
Abre-se em fogo a rosa e seus acentos
e num fulgor de astros desce o firmamento.
Renascem douradas idades e sagrados perfumes
e vinhedos reflorescem para a língua ardente.
E uma obra dobrada noite tutelar se desdobra
e abriga a face do homem e o seu deslumbrado silêncio.
a deusa ama e suspira e em desejo morre e sonha.
Ó frescura da flor – sua fortuna e alimento –
e o sol da flor e o fogo que a devora
(fogo a queimar-se, fonte da vida, ó bela)
a arder no íntimo da flor, tão flor é ela. p.49


VENI IN ALTITUDINEM MARIS

A Robert Collet Solberg

Alheias ao tempo
as coisas se desenham
em líquida penumbra.
Infalível e perene
é o teu seio, abismo
onde as formas ocultas
restauram a virgindade
das origens.
Desci ao teu recesso,
ventre do eterno,
fui ao teu âmago,
sombra impressentida,
buscando as flores do silêncio
e, cobertas de esquecimento,
frias, esperei que surgissem,
tingidas de sonho. p.53


CANÇÃO DA MENINA AFOGADA

Na sombra difusa,
na areia molhada,
alga ou papoula
na praia encontrada.

Na marinha quietude,
no silêncio da sereia,
jaz na praia
perdida na areia.

Na mortiça transparência
de alga adormecida,
sozinha, sozinha,
na praia esquecida. p.69


CANÇÃO DA MENINA E DO TEMPO

a Maria do Rosario Rocha Pereira

Rosa da roseira
menina em flor,
menina no espelho
de breve fulgor.

Menina no espelho
da vida em flor,
olha quão cedo
perde o fruto a cor. p.71


CANÇÃO SEM TEMPO

a Dora Costa

Um tempo além do tempo
e a todo tempo alheio.
As sementes e os sonhos
que a noite traz no seio.

O outro lado do tempo,
ouro que o sol empresta.
A linguagem dos pássaros
e a glória da floresta. p.72


CANÇÃO BREVE

a Rogéria Mattos

Longa haste,
flor tranquila.
Gesto ou sonho
que breve oscila.

No vão desejo
de um só momento,
face do amor,
beijo e alento. p.88


CANÇÃO DO CEMITÉRIO

Ocultas vozes
tecem o silêncio
de extinta dor.

Humano alento
de longínquas faces
sem manhã nem flor.

Brancas superfícies,
segmentos lisos
que o vento percorre.

Frio, memória, limite.
Só fica o tempo
na solidão de quem morre. p.91


CANÇÃO DO EXÍLIO

a Silvia de Leon Chalréo

Um sabiá cantando
em me coração.
Mar azul, sol amarelo,
luar, tristeza, violão.

E a Bahia tão longe,
negra minha, meu amor.
Dorme, dorme, meu país,
palmeiras, saudades, calor. p.93


O TEMPO NO CAMINHO

Os homens caminhavam mansamente,
pisando a sombra das flores.
Depois, pisaram as flores e os frutos.
Vieram vindo, vieram pisando.
Pisaram terra, povo, coração, rosa.
Pisaram a criança e a mãe.
Pisaram a moça e o que era dela,
o vestido claro, a cabeleira escura.
Pisaram os irmãos, o coração, a rosa. p.98


ELEGIA NA MORTE DO POETA JORGE DE LIMA

Rose of memory
Rose of forgetfulness
T. S. Eliot

Time for you and time for me,
And time yet for a hundred indecisions,
And for a hundred visions and revisions
T. S. Eliot

I

Hora de todas as rosas,
rosas da solidão.
Hora do coração,
hora dor irmão,
hora vivida,
hora da descida,
hora do fim,
hora de mim.

II

Cinelândia sem esperança,
ó pó da lembrança.
Lajes da memória,
Corredores do esquecimento,
ó chão sem aliança,
o consultório acabou.

III

Assim um dia
o poeta iria.
Sozinho partiria
Num sétimo dia.
Os peixes o levaram.
Levaram o que se foi
entre as correntezas,
o que se foi sem voz
para as profundezas.
Agora o poeta solitário
repousa, repousa, repousa,
dentro de cada um de nós.

IV

Cantor de todos os tempos,
todas as coisas, todas as flores,
todos os seres, todos os amores.
Cantava mitos e benditos,
litanias, ladainhas, louvados,
assim cantados:
Louvado seja N.S. Jesus Cristo
e a Mãe d’Ele – Nossa Senhora, minha madrinha.

V

Houve muita noite, muito luar muita varanda,
e ele contou muitas histórias:
Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo
no banguê dum meu avô
uma negra bonitinha
chamada negra Fulô).
Eram história de escravos,
santos, anjos, moleques, soldados,
bichos, meninos, mulheres
negros, donzelas, sobrados.
Histórias do Brasil:
Eram duas meninas de tranças pretas.
Veio uma febre levou as duas.
Casos de Alagoas, sonhos do Nordeste:
Zefa, chegou o inverno!
Casos de ruas, conversa da Bahia:
Bahia de ruas santas de Santo Antônio da Mouraria,
da Verônica, da Oração, da Cruz do Cosme, dos Perdões,
tu, como todo mulher, tens os lugares sombrios mais gostosos:
Baixa dos Sapateiros!
Beco do Guindaste dos Padres!
Barroquinha!
Tabuão!

VI

E agora cresce o silêncio,
um silêncio como um vento, como uma árvore.
Esse silêncio, essa hora, essa agonia,
essa prece, essa queda, essa viagem.
Esse corpo deitado, essa árvore enorme, esse ruído,
esse silêncio, essa música, esse alarido.
Que silêncio é esse, que barulho é esse?
É uma escrava chorando,
é o bispo rezando
e uma procissão passando.
É o Nordeste embalando
um berço despojado.
É Alagoas longe como o céu da infância.
É o Brasil exonerado,
seus países assombrados,
seus territórios selados,
seus campos despovoados
pastoreando saudades.
E assim ficaremos,
e assim escutaremos
a sua voz de outros lados:
Ó meninos, ó noites, ó sobrados! p.111-114


WILSON, Rocha. A forma do silêncio: poesia reunida. Rio de Janeiro: José Olympio: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1986.


Autorretrato de Wilson Rocha
Wilson Rocha nasceu em Cochabamba, Bolívia, em 1921, e faleceu em Salvador-BA, em 2005. Era irmão do também poeta Carlos Eduardo da Rocha, acreano de Brasiléia. Fundou, com outros, a revista Caderno da Bahia, que renovou no após-guerra o panorama das artes e das letras na Bahia. Dedicou-se à crítica de arte desde 1949 e foi membro da Association Internationale des Critiques d’Art, de Paris, e da Associação Brasileira de Críticos de Arte, do Rio de Janeiro. Tradutor de poetas ingleses, norte-americanos, franceses, italianos e espanhóis. Colaborou em numerosas publicações literárias do Brasil, Portugal, Suíça, Espanha e outros países, e nos jornais Diário Ilustrado, de Lisboa, O Estado de S. Paulo, Diário de São Paulo, Correio Paulistano e outros. Esteve vinculado ao Clube de Poesia do Brasil e à Revista Brasileira de Poesia e colaborou nas revistas de poesia Távola Redonda e Cadernos do Meio-Dia, de Portugal, Cuadernillos de Poesía, da Argentina, e Papel de Poesía, do Uruguai. Figura nas antologias Poesía brasileña contemporánea, de Gastón Figueira, Montividéu, 1947; Poemas de amor de poetas brasileiros contemporâneos, de Pedro Moacir Maia, Bahia, 1950; Antologia da poesia brasileira moderna, de Carlos Burlamaqui Kopke, São Paulo, 1953; Antologia poética da geração de 45, de Milton de Godói Campos, São Paulo, 1966, e A nova poesia brasileira, de Alberto da Costa e Silva, 1960. Publicou Poemas, Bahia, 1946, Edições Elo; O tempo no caminho, Bahia, 1950 (ilustrado com 10 desenhos do pintor Aldo Bonadei); Livro de canções, Bahia, 1960, na antologia 20 anos da coleção Círculo da Poesia, de Pedro Tamen, Lisboa, 1977; De tempo soluto, Lisboa, 1963, Livraria Morais Editora, col. Círculo de Poesia, vol. 23, com um retrato do autor reproduzido de uma tela de Pancetti; Carmina Convivalia, Recife, 1980, Edições Pirata (ilustrado com seis desenhos do pintor Ismael Caldas); A forma do silêncio: poesia reunida, Rio de Janeiro, 1986, José Olympio Editora, etc. Hernani Cidade em seu livro O conceito de poesia como expressão de cultura (p.318, 2. ed., Coimbra 1957, Armênio Amador Editor) menciona suas “brevíssimas estruturas rítmicas e estróficas” referindo a faculdade sinóptica de sua poesia. Segundo Murilo Mendes “seus poemas são muito significativos, um verdadeiro oásis neste mundo de máquinas e gigantismo industrial”. “Um poeta autêntico”, afirma Roger Bastide no suplemento literário de O Estado de S. Paulo (13-11-1951).

Leitura complementar:

domingo, 22 de setembro de 2019

LIMIARES de Gerson Albuquerque

O primeiro trabalho que li do professor Gerson Albuquerque foi o “Trabalhadores do Muru, o rio das cigarras” (EDUFAC, 2005). Esse trabalho foi muito importante para que eu pudesse ir amadurecendo o meu olhar sobre a Amazônia, pois, na contramão da “historiografia barroca”, que eu estava acostumado a ler, me deparei com outra abordagem, despretensiosa, ao passo que, perspicaz e profunda, que se insurgia pr’além das abordagens deterministas e maniqueístas: “O Rio Muru não é o mais importante afluente do Juruá, não determina a economia de lugarejo algum, não é o mais longo, muito menos o mais navegável. Não creio, também, que comande a vida de quem quer que seja, indispondo-me aqui, com os determinismos geográficos tão insistentemente cunhados por um certo tipo de historiografia que se pressupõe a interpretar a vida amazônica. Mas, às suas margens, igarapés e centros distantes, centenas de famílias vivem um cotidiano e constroem, a partir de inúmeros e complexos laços de identidade, uma cultura que, sem querer cair na vala comum do unitarismo, criando uma homogeneidade artificial, pode ser qualificada de “cultura seringueira”.” (2005, p.36).
           Em 2017, Gerson publica o seu primeiro livro de poemas, a saber, “Palavras perdidas em meios silêncios” (Nepan, 2017). Apesar de estarmos habituados ao Gerson dos textos acadêmicos, a poesia, todavia, não é algo estranho ao seu trabalho, como sintetizou a grande Ana Pizarro: “Conocíamos al Gerson analista severo de los conflictos amazónicos, conocíamos su palabra sobre el trabajo en los seringales del rio Muru en ese texto bellísimo en donde ya percebíamos al poeta. Conocíamos al Gerson cotidiano que con ojos dolidos nos enseñaba los castañales em su tránsito trágico hacia la extinción, los territorios vaciados de florestas por el avance de la ganadería. Pero también la belleza de los “buriti” que sólo conocíamos en la palabra de Guimarães Rosa. Por todo esto no nos sorprendió la existencia de este perfil paralelo, el de su poesia. Era evidente que afloraba en todos sus gestos. Entonces llegamos a estas Palabras perdidas...” 
            Aliás, “Palavras perdidas em meios silêncios”, juntamente com “O berro”, de Quilrio Farias, a meu ver, constituem os dois grandes e originais trabalhos poéticos surgidos em 2017, no Acre, marcado por tantos poetas sem poesia, que se empanturram de palavras na construção de uma literatura esvaziada de e da vida, “entupidas de farofa de nada”. O livro reúne poemas escritos ao longo dos últimos 25 anos do poeta: “Tecidas no orvalho de muitas madrugadas não dormidas, umas e outras foram faladas. (...) São palavras pós-escritas porque brotadas feito o voo da coruja, após toda uma multiplicidade de vivências vividas na instável condição humana, entranhadas em comprometimentos de seus espaços/tempos próprios”. 
           Agora, dois anos depois de “Palavras perdidas em meios silêncios”, Gerson Albuquerque apresenta ao público o seu “Limiares: manuscrito para um não-livro – nem uma coisa, nem outra” (Nepan, 2019), um livro híbrido que reúne poemas, resenhas, crônicas e contos. Um “não-livro” de um “não-poeta em alucinantes cotidianos magros”. 
            “Limiares” é um livro com gosto e cheiro de gente, das Amazônias, tecido com as dores e as utopias, “inundado de vontades ávidas”, apesar desse tempo do “amor desempregado”. 
            Em seus poemas, por exemplo, perpassa um silêncio. Que silêncio é esse? É, talvez, um silêncio destituído de significados, signos, todavia, grávido de sentidos. 
            O olhar de Gerson é original porque tem aquela agudeza capaz de perscrutar o mais íntimo da gente e da realidade social. Seus escritos revelam sua preocupação e seu compromisso político-sócio-cultural, ao mesmo tempo em que aprofunda/interroga/alarga o próprio sentido da existência. Sua poesia descortina esse “vazio que sangra no interior da gente”, esse “protocolo carente de sentido” em que temos nos transformado. É, antes de tudo, uma escrita de resistência. 
          Esse livro nos permite adentrar ainda mais aos limiares da morada de Gerson Albuquerque, partilhar da agudeza e da generosidade do olhar do poeta, do contista, do cronista e do resenhista, amalgamados na multiplicidade de um mesmo ser humano que, tecendo palavras, é capaz de renovar as utopias.
            I.M.
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“A poesia ainda é mais combate, porque é uma postura ética. Isso incomoda. Aposto que o Gerson Albuquerque não é muito querido por suas palavras perdidas em meios silêncios. Com certeza prefeririam que não houvesse nem palavras nem silêncios. Mas que fazer? Tem gente (sim, tem gente) que ainda sente dor e, se der tempo, consegue sorrir e amar. Cada palavra perdida salva uma vida do silêncio.”
Aldisio Filgueiras
da Apresentação de Palavras perdidas em meios silêncios
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“O universo poético gersoniano alça voos intangíveis, pois os planos de uma concretude incontestável tornam-se imagens singulares e plurais, que cindem as fronteiras da compreensão limitada e rotineira dos cotidianos para pôr em reflexão enlevada as fendas possíveis, incrustadas nos homens e mulheres – transeuntes que, nas tranças e transas poéticas, erotizam formas e amargam solidões. Assim, não há estrelas mortais ou Nêmesis a incendiar as sobras de uma indigência, que clama por justiça, que, angustiadamente, reclama das injustiças, e que, final e poeticamente, ascendem para os planaltos dos seres, que grafam e grifam na eternidade a dor, a saudade, a lágrima e o esquecimento do Outro. E o que é a poesia senão esta corda que, esgarçada para o Alto, arrebenta, espetacularmente, abrindo leitos de sangue, feridas dolorosas e cicatrizes sempre abertas?”
João Carlos de Souza Ribeiro
do Prefácio de Palavras perdidas em meios silêncios


Do livro PALAVRAS PERDIDAS EM MEIOS SILÊNCIOS (Nepan, 2017) 


Minha fratria

Carrego comigo um rosto insepulto de mulher
um gosto amargo de casca de amarelão
Uma cidade que finge cintilando mentiras coloridas
luzes artificiais
praças
monumentos a ladrões de terras
e assassinos de índios

Nasci em Manaus
e nem sei o gosto das águas sujas do rio Negro
Sei que o mar passa longe
e que essa Paris de puta sem dentes
é minha fratria

Carrego comigo um par de pernas finas
um bucho de lombriga e farofa de nada
A eterna tristeza de um olhar cindido
entre o campo de pelada do Baré
o Bairro de Flores
o tabaco mascado de minha avó
e as ladeiras descarnadas da Volta Seca p.19


Não dormidas

Um corpo estático
silêncio de tuas longas noites
Pés descalços meus olhos em chamas p.49


Ode a um prefeito

Todo dia é assim
Prefeito
feche os portões
o portal do céu
a boca do inferno

Chame os seguranças mortos
faça a autópsia
recolha suas armas enferrujadas
suas balas de borracha
espoletas

Oculte suas mentiras
as sobras de seus pratos feitos

Acione a polícia
chegaram os bêbados
os maconheiros
as crias do demônio

Essas crianças mal paridas
cagadas de medo
de tuas bíblias gratuitas
tuas infâmias
teus doutores orando ciência p.77


Retóricas

Meu manifesto é uma dor
oposto ao desamor p.95


Corpo de baile

Desejei naquele vão de teatro
teus olhos ocultos
entre pernas e saias do corpo do baile

Vermelhos
teu batom
tua boca
teu vestido

Pervertidas
minha alma
meus delírios
minha inquieta solidão

Versos brotando aos teus ouvidos
mãos despertando sentidos

Sonhei teu corpo se abrindo
tuas entranhas
tuas pupilas
tuas pernas intranquilas

Verbos penetrando tua alma
encravando-se
na profundidade de tua pele p.129


Do livro LIMIARES: MANUSCRITO PARA UM NÃO-LIVRO – NEM UMA COISA, NEM OUTRA (Nepan, 2019). Agradecemos ao autor por nos ceder gentilmente, e em primeira mão, excertos do livro para, aqui, serem publicados.


Recusa

Ando enojado de agentes públicos,
assembleias servis,
verdades técnicas,
simulacros instituídos.
Ando manco,
o corpo moído,
mas armado pra estupidez cínica de meus ímpares.
Ando engasgado com tudo isso
e mais aquilo das nuvens
e vaidades espalhadas em grupos e redes sociais.
E como não tenho alma,
digo não com o corpo em riste,
sangue nos olhos e as mãos em chamas.
(17/6/17)


Violências cotidianas

Todas as vezes que como carne de gado
sinto o amargor do sangue
a escorrer pelos cantos de minha boca:
sangue de Valdizas,
Odílias,
Wilsons,
Josés,
Chicos.
E me acompanha o espectro da cumplicidade.
(15/9/17)


Pedaços da madrugada passada

Sentei no sol da noite
e um quarto de lua soluçou
restos de prata em meus olhos.

O sol da manhã dormiu no profundo da noite,
incendiando as margens insólitas de minha cama.

Sem lugar pra aportar,
meus amores são partidos.

No amanhecer de hoje,
a noite dançou em mim.

Na claridade da noite,
dança um beija-flor.
Grudado na beira da madrugada,
criei raiz de solidão.

No desencontro da noite,
uma coruja instalou sono de grilo
sussurrando meu desabandono.
(11/8/18)


Sonhos e escritas

Sonhei ser poeta,
inventor de metáforas suaves pras moças de minha rua,
entupidas de farofa de nada,
e para seus irmãos, deserdados pretos, apodrecendo em abarrotadas cadeias públicas.

Sonhei andando pelos bares,
beijando soleiras, mijando postes, mordendo assoalhos no fecundo momento em que subempregados passavam espremidos em paus-de-arara,
para a construção servil.

Sonhei tecendo insípidas escritas
aos amores de cada esquina,
desfalecidos por minhas promessas torpes
inscritas em seus corpos,
enquanto minhas irmãs, engravidadas de fantasias e fantasmas, atravessavam a cidade em entupidos coletivos sujos, roubadas no troco e na borboleta.

Sonhei palavras doces
pra uma imagem herdada da infância,
entre febres de sarampo e frieiras,
imaginando viagens
nos banzeiros dos batelões no Porto de Dona Odete
e nas asas dos aviões no Aeroporto Salgado Filho.

Morri ali,
não-poeta em alucinantes cotidianos magros,
inundado de vontades ávidas,
escritas de palavras silenciosas e outras coisas inúteis.
(3/2/18)


JOANA
Gerson Albuquerque

“Eu mato minha filha e me mato”, pensou Joana Maria e Paiva olhando para o vai-e-vem de hóspedes que entravam e saíam do Hotel Chuí, em meio à umidade e ao calor do inverno amazônico.
Engravidara de um fantasma e, revelada por uma aparição na noite anterior, sabia que se tratava de uma menina.
“Fantasma de três pernas”. Comentou zombeteira, uma amiga de escola. Mas, Joana não lhe deu nenhuma atenção. Sempre ouvira que gente como ela somente tinha direito a não ter direitos e, em contendas com sua índole, passara a assumir essa sentença envolta em um tom de indignada ironia.
Nem bem completara dezesseis anos e não poderia voltar pra casa dos pais: jamais acreditariam na fantástica história de uma virgem engravidada.
No limiar de seu ocaso, permaneceu na rua durante toda a noite e, nas proximidades do quartel da polícia, ouviu vozes acompanhando as sombras que movimentavam a Praça Rodrigues Alves na alta madrugada. Às cinco horas, resoluta e despindo-se de todo o pudor, desceu a Avenida Getúlio Vargas em direção ao Segundo Distrito. No cruzamento com a Epaminondas Jácome, evitou olhar para o mercado municipal, na Praça da Bandeira, e se dirigiu à Juscelino Kubitschek, que unia os dois distritos da cidade, subindo e equilibrando-se no passeio do lado esquerdo da ponte metálica.
Com a intenção de aproveitar a correnteza de um rio que se alimenta de suas margens, deixou-se cair com os olhos firmes nas águas inquietas, o corpo inerte no intransitivo daqueles segundos feitos de espaço. Um corpo rasgado de lembranças, cicatrizes da vida inteira.
Nem bem os raios da luz solar alcançavam as cumeeiras das velhas casas da Rua África, flutuou em suave performance, desaparecendo entre as espumas, balseiros e terras caídas.


Referências
ALBUQUERQUE, Gerson. Trabalhadores do Muru, o rio das cigarras. Rio Branco: EDUFAC, 2005.
ALBUQUERQUE, Gerson. Palavras perdidas em meios silêncios. Rio Branco: Nepan, 2017.
ALBUQUERQUE, Gerson. Limiares: manuscrito para um não-livro – nem uma coisa, nem outra. Rio Branco: Nepan, 2019. (no prelo)